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Editorial

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Hilma af Klint
Siglia Leão – Editora

 

Caro leitor,

Mais um Cien-digital está aí, na rede.

Esse número se apresenta justamente no auge de um tempo fervoroso, em que o discurso é comandado pelo racismo e pelo ódio à diferença, em que a palavra está ameaçada em sua livre circulação. Ou ainda, tempo de um discurso à parte, onde não há palavra, reina a pulsão.

Nesse contexto, como contingência ou interpretação precisa de um momento já anunciado, o tema da VI Manhã de Trabalhos do Cien-Brasil cai muito bem. Seu argumento, que abre esse Cien-digital 22, incide justamente sobre a fala, a singularidade e a diferença; sobre o dizer do sujeito, sobre o ato e a palavra. “Como cada criança e cada jovem pode constituir e sustentar seu lugar frente à intolerância?” é uma das perguntas norteadoras dos trabalhos a serem apresentados no próximo dia 23 de novembro, no Rio de Janeiro.

E qual o estatuto da palavra no CIEN? Outra pergunta norteadora da VI Manhã e principal fio condutor dos diversos textos deste número, que buscaram cingir o que da Conversação faz efeito. Sob esse crivo, convido-os inicialmente à leitura inspiradora e elucidativa do texto de encerramento da Conversação Internacional do CIEN 2017: Os laços sociais e suas transformações, na rubrica Hífen. Ali, Juan Carlos Indart nos brinda com pontuações sobre o estilo de conversação do CIEN, ressaltando que ela produz, nas “encruzilhadas” de um grupo, um deslocamento, uma transformação, compondo um estilo “através do qual se consegue dissolver a tensão pulsional no imaginário”; “uma conversação na qual se intervém para não deixar cristalizar um S1”. Ainda, em suas perspectivas para o Cien, J-C Indart aponta para a “dignidade singular”. Já Beatriz Udenio recupera uma indicação de Alejandro Daumas para precisar o lugar dos laboratórios, “uma cozinha, onde coloca-se a mão na massa, suja-se, e não o palco das “celebridades”.

A partir de então, o leitor pode deliciar-se nas diversas cozinhas brasileiras. Do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, os diferentes Labor(a)tórios testemunham suas experiências e relatam os desafios diários da vida em um abrigo, na escola, no hospital e instituições afins, perguntando-se: como inventar saídas próprias e originais diante dos obstáculos? Como não ser afastado de sua mais intima diferença? Como dizer do próprio desejo, do mais particular no meio da massa? Como operar uma saída da estereotipia institucional? Como trazer os alunos para o laço com a escola? O que se pode diante de impasses resultantes da política do paratodos? Quais as conseqüências para os profissionais de escutar a voz singular de uma criança? E respostas vão aparecendo, sendo tecidas na medida do um a um, quando o arriscar-se toma corpo. Arriscar-se a ir além do que “reza a cartilha”, apostar no savoir-faire de cada profissional e incluindo os desvios do protocolo, permitindo que as questões ecoem fora dos termos tecnocráticos.  Ou ainda, como nos diz Emelice Prado Bagnola, em uma bela construção de seu encontro com o CIEN, na rubrica Contribuições: “permitir que as normas tirassem uma folga para que a experiência com a subjetividade pudesse realizar um plantão de forma singular”.

Na rubrica Historia do Cien no Brasil, Mônica Hage também fala de sua entrada no CIEN, seu instante de ver e as elaborações que se seguiram, com a aposta no corte. O traço da política do Cien seria fazer dos restos, corte na rotina do trabalho dos profissionais, “deixando a experiência aberta, em suspenso a um tempo de compreender” e “inserir a conversação nessa abertura”.

Em Órbita, dois textos nos remetem ao entorno do CIEN, a experiências afins que brotam na cidade, que podem nos tocar e de onde podemos extrair ensinamentos. Na contra-corrente da estrondosa massa midiática, Jon Russo nos fala de sua prática audiovisual interessada no dizer da criança e de sua tentativa de recolher um saber de cada uma delas. Ele nos leva, no passo a passo da criação, a entrar num outro tempo.

Já Ana Lydia Santiago, a partir da rede Zadig, fala da lógica contemporânea do racismo, como apontou Lacan, que “consiste em rechaçar no Outro um modo diferente de gozo”. O convite a diluir a tinta do discurso racista por meio da palavra está lá. Aponta-nos uma arma potente: a conversação. A ‘associação livre coletivizada’ como um discurso que, ao acolher a trajetória singular de uma vida, resiste às ideologias, utopias, ideais e práticas que gravitam em torno da uniformização dos modos de gozo.

Por fim, remeto-os à ENTRE-vista de Daniel Roy sobre a especificidade do CIEN, sua relação com as outras instâncias do Campo Freudiano e sobre nossa VI Manhã. Ele nos lembra que a “coisa violenta” existe para cada um dos seres falantes e retoma Lacan para dizer que “nas instituições onde há ‘em situação variável, uma relação baseada na liberdade’, constatamos que as passagens ao ato são finalmente muito raras”.

Que nos tempos que se aproximam, o CIEN resista, em sua extensão, como um avesso real da vida contemporânea. Que sua vigência permaneça vigorosa!

Boa leitura!

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