O encontro com a criança na instituição: invenção e solidão.

Camille Kachani

Cláudia Regina Santa Silva
Laboratório: O saber da criança – Campinas/SP[1]

 

O laboratório O saber da criança vem traçando sua caminhada na localização de impasses dos profissionais que, trabalhando em algumas instituições, ficam divididos entre o que é apresentado a partir de uma normatização e o que é dar voz ao singular. São instituições como escolas, unidades de saúde mental infanto-juvenil, estabelecimento de acolhimento de crianças e adolescentes, aos quais o laboratório tem acesso.

No percurso de nosso laboratório, durante os últimos anos, temos percorrido temas diversos, sobre os quais apareceram questões importantes. Hoje problematizaremos o tema aqui proposto, da norma e o singular: qual o efeito de se dar voz às crianças, sobretudo para os adultos que estão ao lado delas? Seria possível arriscar a hipótese de que às vezes se misturam com o que escutam, principalmente diante dos relatos das crianças, carregados de sofrimento? Escutar uma criança, seja na instituição de acolhimento ou na escola gera consequências, o que se dirá de se considerar, para além da escuta, o desejo do profissional de que o singular desta criança tenha um lugar? Uma aposta de que cada criança não se perca no anonimato das regras generalizadoras? A questão não gira em torno da existência ou não das regras e normas, que lá estarão com um papel a ser cumprido, mas, sim, de como a instituição vai ou não atendê-las.

De um lado, localizamos profissionais que respondem seguindo à risca a disciplina que detém um saber sobre o trabalho com a criança (Leis de diretrizes e bases da educação, conteúdos pedagógicos e cronogramas, orientações da assistência social, Sistema Único da Assistência Social-SUAS, e as próprias normas internas que cada instituição vai traçando). De outro lado, profissionais que arriscam ir além daquilo que “reza a cartilha”.

Momento importante para o laboratório O saber da criança, foi trazer para as Conversações a distinção entre universal e singular, diferenciando que o universal seria o que marca o “para todos”, o que está do lado da norma, da regra. O singular seria o saber ou a invenção de cada criança frente a esse Outro social.

Em recentes conversações abertas para a cidade (“A instituição de acolhimento é família ou não é?”[2], “Da universalização ao singular: o que nos orienta no encontro com a criança?”[3], “A agitação nos corpos dos adolescentes”[4], realizada em Ribeirão Preto em conjunto com o laboratório Afinarte.[5]), temos interrogado como se dá, nas instituições, o manejo do universal/singular, do “para todos” e do “um a um”, tanto para o adulto como para a criança. Interrogamos, ainda, os efeitos das intervenções do laboratório nas instituições e na cidade.

Um tanto de universal é necessário. No CIEN, não podemos deixar de escutar o saber das disciplinas que compõem um laboratório. Há saber constituído na psiquiatria, na pedagogia. Quem chega ao CIEN, chega com uma pergunta, um “não sei bem o quê”, mas sei que incomoda e me traz um mal-estar. Esse mal-estar, muitas vezes localizado como queixas que causam desconforto e até sofrimento, induz o “não saber”, motor de uma construção possível de solução para aquele sujeito.

O convite a falar, conversar sobre o mal-estar implica que o profissional muitas vezes se reposicione frente à disciplina que o marca. Mas não significa que esta marca da disciplina o deixe. Entendemos que uma professora entra professora em um laboratório e sai dele como professora… Contudo, apesar de inserida no universal da disciplina, seus traços de invenção própria podem ser localizados nas Conversações, que acolhem lampejos do singular existentes em sua prática com crianças. Isto requer que este profissional subjetive o que realmente o orienta nesta empreitada. Os momentos quando é possível escapar do discurso do mestre, permitem que o que é mais próprio de si e também do encontro com aquilo que é próprio daquela criança advenha, dando a chance a um novo saber. O sujeito, mesmo na norma, no universal, pode se abrir às questões, ao diferente. Muitas vezes o que angustia é olhar para aquilo que rompe um sistema, diria até um sistema fechado, que vem muitas vezes hierarquizado por instâncias que estão longe de seu alcance (leis de diretrizes e bases, LOAS -Lei orgânica da Assistência Social) e até mesmo a organização da instituição enquanto modelo que se reproduz a partir de um saber disciplinar.

Os impasses que surgem daí, trazem sujeitos interessados nesta abertura, naquilo que dentro de uma universalização pode gerar uma invenção própria naquilo que orienta o encontro com a criança. Um novo impasse caracteriza-se então: como, diante da possibilidade de escutar o que a criança tem a dizer, e que muitas vezes o que ela diz pode levar ao para além da norma, podem os profissionais transmitir essa invenção para uma instituição onde a maioria dos profissionais apresentam-se normativamente herméticos.

Nesse percurso, chegamos ao ponto que tem orientado as conversações no laboratório: Como manejar a solidão que vem aparecendo nos relatos de alguns participantes do laboratório, que tendo se interessado pelo traço singular da criança se deparam com instituições que têm dificuldade de escutar, e que não querem saber daquilo que é de cada um.

 

 


[1] Participantes do laboratório: Ana Tridico (professora) Lilian Matsumoto (enfermeira) Cláudia Santa (responsável pelo laboratório) Emelice Bagnola (enfermeira-psicanalista) Nataly Pimentel (psiquiatra) Mariza Silva (professora) Camila Morelli (psicóloga) Sibele Campos (psicóloga) Cristina Campos (professora) Eleida Campos de Faria (psicóloga) Daniel Salvador (psicólogo) Bianca Bedin (psicóloga).
[2] Conversação em 2016 com a presença do psicanalista Marcus André Vieira do Rio de Janeiro.
[3] Realizada em 2017 com a presença das psicanalistas Cláudia Reis e Glaucineia Gomes.
[4] Realizada em 2018 com a presença das psicanalistas Cláudia Reis e Cláudia Regina Santa Silva.
[5] Laboratório do CIEN, realizado na cidade de Ribeirão Preto. Responsáveis: Cláudia Reis e Silvia Sato.