O que “praticar o CIEN” quer dizer?

Andrea Lanna

Emelice Prado Bagnola
Laboratório: O saber da criança[1], Campinas-SP.

 

Para ler o efeito da experiência de tratar o encontro com o Real, por meio da participação nas conversações do laboratório, preciso recuperar, de entrada, quando o significante CIEN surge pelo caminho.

Todo o trabalho que temos em uma análise em direção ao Um[2] pressupõe o retorno ao coletivo do nosso mal-estar particular: quer seja este dentro dos assuntos de família ou aquele aplicado a uma comunidade.

Aqui tomo família como o berço das ficções, o espaço onde se constitui o sintoma que na relação entre o eu e o Outro institui a fórmula da fantasia, e do lado coletivo, na estrutura como a de uma cidade[3], os acontecimentos da vida cotidiana, sua política e sua arte, que entram no jogo e também podem produzir marcas no sujeito, inscrições, que determinam os seus modos de gozo.

Desse ponto de vista, a psicanálise se comporta interessada na história dessa trama no ponto onde isso traumatiza e perturba o sujeito, mas também se movimenta para criar espaços simples como o de um laboratório, onde a conversação possa acontecer e dela ver nascer uma questão, que no CIEN chamamos de impasse.

Esta é a primeira imagem que tenho do CIEN: um lugar discreto onde a palavra encontra espaço para circular e é composto por um coordenador que ao mesmo tempo anima a conversação, sustenta um furo que se instala em uma falta e recebe este endereçamento que pede escuta para o que cada participante vem dizer.

O laboratório é para mim um lugar que trabalha na preservação do saber inconsciente, aquele que se depreende através de um tropeço, uma contingência ou por efeito de uma elaboração. Constitui-se como resistência, frente ao empuxo do universal do discurso da ciência, pois segue com sua aposta na subjetividade.

No entanto, talvez essa tenha sido minha primeira curiosidade na participação dentro do CIEN: separar como o discurso da psicanálise pode operar no coletivo, na posição de anfitrião, e iluminar uma construção de saber inter-disciplinar. No segundo momento formular uma questão. O exercício da conversação, praticado no laboratório, pode elucidar o desejo do analista neste dispositivo e produzir efeito extenso à sua experiência clínica?

Em setembro de 2009, estávamos em um serviço de saúde mental infanto- juvenil reunidos para o trabalho de supervisão clínica. Diante da história de um garoto de 13 anos cujas marcas do desamparo foram destacadas ponto a ponto pelos membros desta equipe. Posso dizer que me encontrei diante da primeira construção de um caso clínico na prática com crianças e foi decisivo escutar a direção na voz de uma psicanalista de Orientação Lacaniana: “vocês, se desejarem, podem seguir na conversação desses impasses através de um laboratório do CIEN.”

Escutei como um convite ao trabalho e constatei que o CIEN se interessa pelos tropeços com o Real, presentes no trabalho dos praticantes nas Instituições e oferece durante a conversação um espaço de localização, de construção e, portanto, de elaboração também de uma experiência.

Por Campinas ser uma cidade com um trabalho expressivo na construção da rede de saúde mental, pautado nos ideários da Reforma Psiquiátrica Brasileira, onde uma equipe pode se perceber convocava a dar uma resposta frente ao impossível de tratar e educar, essa tensão aparece durante as conversações. Foi decisivo permanecer de mão dada com a criança na perspectiva indicada por Eric Laurent, “não há dúvida de que, com o apoio das crianças, podemos seguir nossa orientação no discurso”[4].

Verifico que o resultado consiste na mudança de posição subjetiva de cada participante e não do lado das instituições, mesmo que às vezes isso possa ser uma expectativa. Para trabalhar nas instituições com crianças, de forma a comparecer como um Outro manso que acolhe a palavra, neste cenário nacional é preciso fôlego e foi deste efeito que me servi neste tempo de prática no laboratório. Fôlego que me permite delimitar a queda de um trabalho pautado por um ideal presente nas Instituições, para ver avançar um interesse concentrado em como cada um se movimenta em direção a uma causa.

Houve um momento de silêncio, onde notou-se a diminuição no número dos participantes. Nasceu, então, a proposta da exibição do filme “A Céu Aberto”, de Mariana Otero, seguido de uma conversação na cidade, de modo a abrir o tema sobre o saber da criança.

Apresentar o trabalho de uma Instituição na Bélgica que por princípio se orienta pela palavra da criança e introduzir o tema também da transferência em uma conversação do laboratório ampliada foi uma nova aposta, modo de relançar o trabalho para colhermos os efeitos.

Um CIEN que de início bateu à porta da Instituição para ofertar o encontro na conversação, mas também um laboratório que abriu sua porta para avançar na compreensão de seu funcionamento.

Um discurso interdisciplinar que faz furo e constrói um trabalho entre o momento que o CIEN se interessa pelo o que ocorre dentro das instituições, e um outro momento em que os participantes que empreendem um trabalho nas instituições com crianças, se interessam pelo CIEN.

Inicialmente o laboratório habitou Instituições de saúde pública e saúde mental, depois foi para praças comunitárias de forma itinerante, ano após ano, e, por último, chegou nas instituições de acolhimento, abrigo ou casa lar. Nos últimos três anos, trabalhamos entre os encontros no laboratório e dele com a cidade por meio das questões: qual o efeito de dar a palavra à criança? Depois da destituição do poder familiar: a instituição é família ou não é? E por último: Da universalização ao singular – O que nos orienta no encontro com a criança?

O que produziu esta disponibilidade de abrir o trabalho do laboratório na cidade? Ânimo para prosseguir com a construção deste passo a passo.

Em tempos de tecnologia virtual e velocidade digital, o CIEN abre um intervalo e produz uma pausa na rotina cotidiana, para que novos convidados e os participantes do laboratório, possam enxergar um modo de existir da criança e do trabalhador na instituição, e se deixar afetar pela experiência de cada um com a palavra e sob transferência. Assim, foi possível que as normas, os protocolos e as rotinas com seus comitês de ética tirassem uma folga para que a experiência com a subjetividade, que é a nossa aposta, pudesse realizar um plantão de forma singular.

Em Campinas, a prática no laboratório opera como um exercício que formaliza o compromisso com a prática da psicanálise na cidade e um interesse pelo vivo dos assuntos na cidade. Para isso o ritmo de trabalho instaurou um automaton desde os encontros locais do laboratório uma vez ao mês até o momento que ao lado da coordenação do CIEN São Paulo, convidados da EBP/AMP e com o apoio do CIEN Brasil, sustentamos juntos o encontro do laboratório “O saber da Criança” aberto para o público para que esse exercício nos permita avançar nessa invenção.

É na formalização dos encontros que o Campo Freudiano, encarnado na experiência do Laboratório, abre espaço para que o seu funcionamento possa ser afetado e questionado de modo a tocar o que é caro na experiência: o saber e o furo no saber inconsciente da formação do analista.

A conversação permite criar uma intimidade na fronteira, ou fenda, entre o medo da criança e esse Outro barrado que deixa um resto e um impossível de dizer também na experiência de cada um que inventa, no laboratório, algo de si no percurso.

Como nos ensina Lacan em seu Ato de fundação: “A nos atermos ao mal-estar da psicanálise, a Escola pretende oferecer seu campo não ensina somente a um trabalho de crítica, mas à abertura do fundamento da experiência, ao questionamento do estilo de vida em que se desemboca.”[5]

Portanto estar no CIEN é praticar a experiência simbólica de estar com um “Outro brincante” do Campo Freudiano. Uma brincadeira séria inspirada no Fort´da[6]de Freud, que nos permite novas associações, novos ensaios e novos enlaces onde a repetição e a palavra interessam e produzem movimento no corpo do sujeito.

 

 


[1] MILLER, Jacques-Alain, “A criança e o saber” In: CIEN digital – Hífen, janeiro de 2012.
[2] LACAN, Jacques,. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p. 15.
[3] LAURENT, Éric. “Cidades analíticas”. In: A sociedade do Sintoma. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007, p.91.
[4] LAURENT, Éric. “Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana”. Belo Horizonte, Scriptum, 2011, pág 43.
[5] LACAN, Jacques. “Ato de fundação” In Outros Escritos,. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pag. 244.
[6] FREUD, Sigmund. “Além do princípio do prazer (1920)” In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud, XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996