Que tipo de criança audiovisual você é? – Casos de produções audiovisuais voltadas para o público infantil

Gisele Camargo

Jon Russo[1]

 

O convite para escrever sobre minhas experiências com a produção audiovisual voltada ao público infantil torna-se uma grata oportunidade à reflexão e ao pensar no trajeto profissional trilhado até aqui.

No ano de 2001, junto com outros dois amigos, decidimos criar um estúdio de produção audiovisual, Usinanimada, voltado principalmente a produção de animações e que tivesse como norte a criação autoral, ou seja, a materialização de nossas próprias ideias. No início das atividades do estúdio desenvolvemos todo tipo de material: publicidade, vídeos didáticos, educativos, mas o objetivo era ter autonomia para gerar conteúdo. Isso aconteceu a partir do ano de 2005 e tentarei ater meu depoimento a duas produções específicas que tive o prazer de conceber e co-dirigir.

Em 2005 a ideia de um programa infantil para a TV começou a martelar na minha cabeça a partir da insatisfação que sentia ao ver o que se produzia para esse público. Vale lembrar que há treze anos atrás não existia a profusão de séries infantis que são oferecidas hoje, nas mais diversas plataformas: TV aberta e a cabo, video on demand, Netflix, Youtube e Aplicativos. E é fundamental salientar um ponto: quando se fala em público infantil estamos tratando de um universo diversificado e multifacetado. De maneira sucinta, quando pensamos no mercado audiovisual, pode-se dividir o público infantil em três faixas etárias: a pré-escolar (de 3 a 5 anos), a escolar (6 a 9) e a pré-adolescente (10 a 12). A linguagem, estética e apelos de uma produção serão direcionados para uma dessas faixas, lembrando que público-alvo é aquele para o qual se pensa a mensagem mas uma produção pode ter uma recepção muito maior, o chamado público potencial. Então voltamos ao ano de 2005 e à minha insatisfação. Alguns fatores que geravam incômodo no conteúdo infantil veiculado na época: ver a criança tratada como coadjuvante e não como protagonista; abordagens maniqueístas de diversos assuntos; e ruídos sonoros, muitos programas eram ensurdecedores, característica que contribuía para calar as vozes infantis. Portanto, o processo de criação se deu a partir do que eu não queria fazer. Foi assim que nasceu o projeto “Que tipo de criança você é?”.

O “Que tipo” foi veiculado na TV Brasil no ano de 2009. Foram 82 episódios, 41 de 3 minutos e 41 de 1 minuto. De 2005 a 2007 tentamos a veiculação em outras emissoras voltadas para conteúdos culturais mas quando se vislumbrava que o projeto ‘sairia da gaveta’ acontecia algum entrave. Em 2008 o projeto finalmente deu certo na TV Brasil, sob direção de Rogério Shareid e minha. Apresento essas datas para ilustrar a demora em se concretizar uma produção audiovisual no Brasil. Essa dificuldade de realização angustia boa parte dos profissionais que trabalham com criação, mas também serve como tempo de maturação de ideias.

A estrutura do “Que tipo” era pautada em entrevistas com crianças, de 6 a 12 anos, de diversas classes sociais, em variados contextos espaciais, falando sobre 41 temas diferentes. O conceito do programa era nunca conseguir responder à pergunta título: que tipo de criança você é? Através da edição dos depoimentos a narrativa se constrói, como se uma criança complementasse a fala da outra, e o resultado era uma abordagem heterogênea sobre os assuntos. As respostas não eram evasivas ou taxativas e sim aberturas a ‘perífrases mentais’. Os conceitos de dialogismo e polifonia do linguista Mikhail Bakhtin serviram como baliza à edição, assim como a teoria da montagem intelectual do cineasta e teórico russo Sergei Eisenstein, que em linhas (muito) gerais defende que “uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição”. Então, a concepção da edição do “Que tipo” era a aplicação do dialogismo bakhtiniano através da montagem eisensteiniana. Mas não funcionou, pelo menos não como se esperava.

O primeiro erro, do ponto de vista do mercado audiovisual, foi não definir bem a faixa etária das crianças entrevistadas – uma criança de doze anos tem interesses diferentes de uma de seis – o que influencia diretamente na atenção dos espectadores infantis. O público adulto ficava fascinado com os depoimentos infantis mas as crianças se dispersavam. O “Que tipo” se propunha um programa infantil de entretenimento, e acabamos por criar um programa documental com crianças, para adultos. Esse foi o primeiro cruzamento entre as esferas da ficção e do documentário no meu trabalho, que se transformaram numa constante e no fio condutor de boa parte do que desenvolvo.

Para o teórico Bill Nichols, “todo filme é um documentário”, partindo-se da ideia que a captação de imagens e sons são registros de um determinado contexto espacial, cultural e social realizados em um tempo delimitado, reflexo de uma realidade específica. Por outro lado, Christian Metz, em seu ‘Significação no cinema’, defende que todo filme é uma ficção, a partir do momento que se considera a presença do aparato tecnológico de captura de imagens e sons como um canal mediador entre quem observa e quem é observado. As questões sobre as unidades de produção documental e ficcional remontam aos primeiros filmes dos irmãos Lumiérè, percorrem toda a história do cinema, passam pelos suportes de difusão eletrônica como a TV e o vídeo e chegam às plataformas interativas digitais. Na produção audiovisual contemporânea nota-se o constante imbricamento entre esses universos, exemplos como os mockumentaries ou doc-paródias (filmes que se revestem de técnicas documentais mas que são encenações pré-roteirizadas), ou o fenômeno das fake news, potencializado pelos meios de difusão das novas mídias.

A segunda experiência que tive com a criação de conteúdo para séries infantis retoma, em certos aspectos, linhas soltas do “Que tipo de criança você é?” e mais uma vez o encontro entre o documentário e a ficção. Aconteceu na concepção da série “Lala”, co-dirigida com Thomas Larson.

Lala é uma série voltada para o público pré-escolar, produzida com técnica mista de animação. A protagonista é uma menina representada por uma boneca animada em stop-motion, mais conhecida como ‘animação de massinha’. Seus amigos Toni, Foguete e Zima são brinquedos animados por computador e o diferencial da série é utilizar desenhos e depoimentos reais de crianças na elaboração dos roteiros.

O processo de produção dos episódios começa com oficinas realizadas com crianças de 6 a 8 anos. A faixa etária mais alta que a do público-alvo visa garantir o interesse das crianças mais novas. Nessas oficinas os participantes são incentivados a desenhar livremente a partir de temas dados pelos diretores. Além dos desenhos são feitas gravações de áudio. Esse material serve como substrato para a definição dos roteiros e os desenhos são refeitos por animadores, buscando a maior fidelidade possível com o traço infantil. De 2010 até 2017 produzimos 40 episódios de aproximadamente 2 minutos de duração cada. Nesses episódios experimentamos estruturas narrativas diferentes, em clipes musicais, poesias, um programa de entrevistas feito por Lala e seus amigos. Neste momento estamos formatando a série em episódios de 7 minutos que englobam todas essas possibilidades narrativas testadas nos episódios de menor duração.

No caso da série Lala temos um universo ficcional protagonizado por uma menina de 6 anos de idade, que dá vazão à sua imaginação e criatividade, junto com seu irmão caçula, o Tato, e seus amigos Toni, Foguete, Zima e Massinha (que são seus brinquedos) em seu quarto de brincar. Esse microcosmo serve como canal para expor os desenhos e depoimentos coletados nas oficinas artísticas. Nos últimos episódios utilizamos também ideias para a composição das músicas. A colaboração das crianças no material desenvolvido está em confluência direta com alguns aspectos da produção audiovisual voltada para as novas mídias.

O filósofo Pierre Lévy chama de Revolução Digital o fenômeno desencadeado com a popularização da internet e da sociedade interligada em rede. Esta revolução compreende as mudanças observadas nas relações humanas e no ambiente virtual, o ciberespaço. Essas mudanças influenciaram não só a maneira das pessoas se relacionarem, mas também a forma de consumirem, se expressarem e apreenderem o mundo à sua volta. Uma das transformações mais significativas no âmbito das comunicações é a da inteligência coletiva e da cultura participativa. Henry Jenkins é um dos principais expoentes dos estudos midiáticos das novas mídias e o autor da obra ‘Cultura da Convergência’, na qual analisa a construção e a apreensão de textos culturais audiovisuais. Jenkins pontua a modificação de paradigmas na estrutura comunicacional preconizada pelos meios de comunicação de massa, notadamente o rádio e a televisão. A base emissor-mensagem-receptor, estratificada e unívoca foi substituída pela via de mão dupla entre emissor e receptor, transpondo-os aos papéis de usuários no contexto virtual. Nos dias atuais os fãs ou consumidores de uma série ou texto cultural audiovisual não se contentam em receber os conteúdos de forma passiva. As novas mídias possibilitam a participação por parte dos fãs, seja na geração de novos conteúdos relacionados à seus objetos de adoração, ou no compartilhamento e circulação de informações. Podemos citar os exemplos da séries Game of Thrones e da franquia Star Wars, que teve de se atualizar aos novos modelos de consumo por parte dos fãs.

Quando finalizamos os primeiros 20 episódios da série Lala fizemos um ciclo de exibições coletando opiniões das crianças, sobre os temas, quais estruturas narrativas agradavam mais, até sobre a aderência com os personagens. O Massinha é disparado o personagem preferido do público. Ele é feito de massa de modelar verde e pode se transformar em qualquer coisa. No clipe da música Leão ele foi um felino de diversos tamanhos e um novelo de lã. Nos episódios Massinha assumiu formas tão variadas quanto um periscópio, lâmpada, pandeiro, E.T, sapo. É justamente a capacidade de transformação que encanta as crianças, a relação mágica de um objeto sumir e assumir outra dimensão. Numa perspectiva filosófica pode-se dizer que é um pouco isso o que a criança faz com seu entorno, a recodificação de signos em outros contextos. Esse processo fica mais claro durante as entrevistas para composição dos roteiros.

As entrevistas são captadas como conversas espontâneas e livres sobre os mais variados temas. Realizo uma pauta mental mas no momento de captação o assunto pode tomar rumos inesperados. Uma das entrevistas mais curiosas foi sobre a China. Nós queríamos saber o que habitava o imaginário infantil sobre esse país. A conversa começou tratando de aspectos mais conhecidos da cultura chinesa, como a culinária. A diferença cultural indignava uma das meninas que se negava a comer sapo e cobra e ela sabia que isso acontecia porque um tio dela já havia estado na China. Na opinião dela e da amiga o ideal seria comer doces, até porque essa era a “religião” delas. Pra entrar na religião das duas, tinha de responder um questionário, se não gostasse de doces estaria fora da seita. Esse é um exemplo das conexões feitas durante o processo de pesquisa.

Em um outro momento tratamos do tema Tecnologia e ficamos surpresos ao perceber que não são todas as crianças que curtem aparatos tecnológicos, pelos mais diversos motivos. Uma delas nos contou que o grande problema era a bateria, que acabava logo, então ela preferia brincar com coisas que não dependiam da energia elétrica. Ainda sobre esse tema ouvimos que o Google sabe muita coisa mas foi o homem que colocou tudo lá. Pode-se pensar no caráter curioso e “engraçadinho” de tais falas, mas elas demonstram muito mais do que uma aparente superficialidade. A apreensão de um objeto (tema) pode acontecer de diversas formas, muitas vezes vem à tona a reprodução de um discurso notadamente adulto, como opiniões sobre política. Mas o que tentamos é quebrar o discurso reproduzido provocando a criança a dizer o que ela pensa sobre aquilo, desvinculando sua opinião da fala dos adultos. Em uma das entrevistas tratamos do tema Teatro e em determinado momento o menino com que conversávamos disse que “amava” o teatro musical; diante do palco ele podia se desligar do mundo real e sonhar por pelo menos uma hora e meia. Mas mesmo sendo fã dos musicais ele também gostava de peças mais sérias pois era muito importante ter um espírito crítico sobre a realidade. Talvez a termo “espírito crítico” tenha sido ouvido em alguma conversa entre os pais ou familiares mas a conexão feita entre o teatro musical e as peças mais sérias é uma forma de aproximação realizada pela própria criança.

Um dos maiores desafios nesse momento é utilizar as plataformas digitais de modo cada vez mais participativo. O próximo passo será a produção dos episódios de 7 minutos e prevemos a criação de canais mais diretos de pesquisa, através do envio de materiais via redes sociais. O objetivo é usar as plataformas digitais para potencializar a coleta de material documental e também ficcional, aproveitando ideias do público na composição das músicas e das narrativas.

O cineasta alemão Win Wenders diz que sempre fez o mesmo filme, perseguindo uma mesma ideia. Tento modestamente aproximar-me desse olhar. Tanto a série “Que tipo de criança você é?”, quanto a “Lala” são tentativas de investigar a riqueza do universo infantil e propor cruzamentos entre a realidade da criança e suas projeções imaginárias. Esses universos nem sempre apresentam linhas divisórias claras, por isso essa investigação é tão instigante. No meu caso, creio que esse seja o principal fio condutor e estímulo para trabalhar com crianças e para crianças.

 

 


BIBLIOGRAFIA
BRAITH, Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Editora Contexto, 2011.
EISENSTEIN, S. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2009.
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2012.
NICHOLS, B. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
Internet – Que tipo de criança você é? Disponível em: https://vimeo.com/album/2003253

[1] Gustavo Russo Estevão (Jon) possui graduação em Comunicação Social – Radialismo e Televisão, especialização em História da Educação e mestrado em Imagem e Som. Leciona desde 2001 em cursos de graduação e pós-graduação de Comunicação, assuntos referentes à criação e produção audiovisual. É sócio-diretor dos estúdios Usinanimada e Lala Produções Artísticas, nos quais atua como roteirista, produtor e diretor.