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A História do Cien Brasil

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Contexto:

A escuta forma parte da palavra é um – dentre vários- produtos do trabalho de Conversação com professores da Escola Maria das Neves, realizadas pelo Laboratório a-PALAVRAR .
Uma chamada à escola para que ela se “encarregasse” de “ensinar o sexual” promoveu tal mal estar que seus diretores e coordenadores, por sua vez, demandaram a intervenção do Laboratório. Por dois anos -2006/2007 – entrando em 2008, o trabalho se realizou com regularidade quinzenal, na própria escola. Os participantes do Laboratório igualmente se reuniam entre eles, nas quinzenas alternadas à Conversação, para o debate dos efeitos e das consequências possíveis da experiência.

Contextualização do mal estar surgido na Escola Maria das Neves pela demanda recebida:

A decisão do Ministério da Educação de transformar em matéria curricular os chamados “Conteúdos Programáticos Nacionais” quanto ao tema da Sexualidade, foi justificada pelo “crescimento dos casos de gravidez entre adolescentes e o risco de contaminação pela AIDS”, “cabendo aos educadores desenvolverem uma ação crítica e reflexiva sobre o assunto.” Os impasses que se apresentaram à escola foram analisados por nós de duas maneiras:

1:- Situação ideal. Assim era designada – e desejada – pelos professores, a situação na qual transmissão dos conhecimentos dos conteúdos programáticos seria possível: uma classe cujos alunos seriam mais “controláveis” em suas manifestações, físicas e/ou verbais. No caso, os conteúdos do aparelho reprodutor eram repassados como cumprimento do que é exigido como objetivo oficial: prevenção de gravidez na adolescência, de doenças sexualmente transmissíveis/AIDS. Qual o impasse? Os mesmos alunos “dóceis”, mantinham-se na total indiferença pelo conteúdo, num absoluto “num tou nem aí” demonstrando de tal forma que a transmissão concernia mais ao politicamente correto do ao que “tudo você gostaria de saber e nunca teve coragem de perguntar?” A situação ideal era solidária à higienização da noção de sexo, de tal forma que se transmita epistemicamente sem sequer haja “risinhos” na classe.
2: “Situação de risco”: Assim era designada – e evitada – a transmissão pelos professores do “ensino do sexual” (como diziam), encontrava como obstáculo impeditivo à sua realização a presença do não-programado. O ineducável que se abre em um leque bastante amplo de situações de presença de gozo, obscenidade, insulto, fazia tremer o professorado. Qual impasse? Não se chega ao “aparelho reprodutor”, na disciplina de Ciências, não concluindo a transmissão dos conteúdos esperados para o currículo desta. A inibição será o sintoma dos professores.

O texto:

A escuta forma parte da palavra

Maria Rita Guimarães.
Responsável pelo laboratório a-PALAVRAR

O caminho verdadeiro segue por sobre uma corda, que não está esticada no alto, mas se estende quase rente ao chão. Parece mais determinado a fazer tropeçar, do que a ser transitável. Kafka

O argumento convocatório ao trabalho trouxe-me as seguintes palavras de Lacan.

“Boca ingênua cujo elogio há de ocupar meus derradeiros dias, abre-te mais uma vez para me ouvir. Não é preciso fechar os olhos. O sujeito vai muito além do que o indivíduo experimenta ‘subjetivamente’: vai exatamente tão longe quanto a verdade que ele pode atingir e que talvez saia dessa boca que você já acaba de fechar outra vez” (LACAN,1953, p.266).

Nelas está anunciado que mais além do indivíduo está uma verdade, em vias de se fazer conhecida – amputada, conforme sua natureza -, mas saída pela única boca que poderia proferi-la: o sujeito. Nessa presença fugidia do sujeito reside toda a diferença entre a oferta e demanda da palavra generalizada e aquela que visa a que um sujeito compareça a meio dizer sua verdade. Ingênua boca que torna o inconsciente “audível”, a nos ocupar até nossos derradeiros dias. Inconsciente e palavra: um é o objeto descoberto pela psicanálise e outro é seu instrumento operacional.

Nosso objetivo é compartilhar, de forma breve, o esforço a que se dedica o laboratório a-PALAVRAR em sua prática para estar à altura de seu nome. Faremos sua apresentação resumida para seguir na tentativa de demonstrar o modo de trabalho via uma pequena vinheta prática.

Apresentação dos propósitos do Laboratório a-PALAVRAR.

O a-PALAVRAR se orienta pela política do impossível em seu trabalho junto a uma instituição educacional. Falar desta maneira nos permite situar sua perspectiva de trabalho: pela presença do sujeito, do desejo e do real. Real que é, justamente, esse impossível. Implica dizer que mantemos o oco – ou se preferirem- o buraco, como estrutura que se revela operadora da subjetividade. Sobretudo porque nos cabe, delicadamente, estabelecer condições para que os parceiros de outras disciplinas que participam do laboratório não desconheçam o fato de que o impossível não deve ser reduzido à condição de impotência. Sobretudo somos advertidos de que os tempos atuais estão regidos por uma estrutura burocratizada, que é uma ordem de ferro – para lembrar a expressão de Lacan -, que substitui a antiga ordem que se deduzia do amor ao Nome do Pai, e, por conseguinte, nela, o lugar do desejo é cedido ao gozo.

A tarefa da Escola como um trabalho da civilização

Como pode o gozo entrar no vínculo social? Por via do sintoma. Por meio do sintoma sabemos por onde se deixa manifestar a dimensão do gozo que “escapou”, aquilo que não se apreende no governável, no analisável e no educável: é o aspecto ingovernável, inanalisável e ineducável por sua própria estrutura e que o sintoma, digamos assim, herda.

O que escapa ao standard das normas cria impasses.

Temos, na atualidade, uma realidade sexual humana praticamente oposta ao tempo das descobertas freudianas.

Tal desregulação libidinal da sociedade em que vivemos re-convoca a Educação a produzir novas formas de regulações para o sujeito, no campo sexual, possivelmente baseando-se em seu papel histórico. Se outrora havia uma “medida”, uma proporção que estava sustentada por um Outro – que a Escola encarnava – em nome desse lugar a ordem governamental lhe encarrega de “ensinar o sexual” aos jovens e crianças, como matéria curricular. Falamos da decisão do Ministério da Educação e os chamados “Conteúdos Programáticos Nacionais”. Trata-se, portanto, da educação pública, o que supõe o Estado docente, responsável pela educação laica gratuita.

Essa chamada à Educação para o ensino dos conteúdos sexuais é justamente o ponto que produziu o trabalho do Laboratório a -PALAVRAR. Apenas menciono o fato de que o objetivo da “orientação sexual” dos Conteúdos Programáticos Nacionais é invalidado pelos professores porque os alunos sabem mais que a gente sobre sexo,- elas dizem-, porque muitos já têm experiência em jogos sexuais e alguns já têm vida sexual ativa. Este saber que o professorado imputa ao alunado foi deduzido, também, pelos problemas gerados na escola por comportamentos de natureza sexual, inadequados à instituição.

Vinheta prática

Em uma das conversações do a-PALAVRAR com os professores surgiu o seguinte relato:

Um aluno de nove anos, recém-chegado à escola, já está consagrado como “tipo assustador”. Por quê? De forma recorrente, à fala da professora esse menino intervém e sua fala é sempre relativa ao sentido sexual do termo empregado por ela. O exemplo apresentado nessa conversação diz respeito à interrupção sofrida em aula de língua portuguesa quando era usada uma poesia como material de ensino. Um verso continha a palavra “pintor” e, nesse momento, o aluno acrescenta a palavra “pinto”. A professora se diz “assustada”, não sabe o que fazer e faz o de sempre, ainda que inócuo para o aluno: manda-o para fora de sala.

A palavra circulou entre muitos participantes sem que uma fala inédita indicasse um corte na ideia unânime do “impossível” que esse aluno era, até o momento em que outra professora – embora estivesse solidária à colega em relação à condição de “assustada” – introduz o fato novo de que o comportamento do aluno, em sua presença — trabalham em equipe de três — não apresentava o comportamento de apenas falar com a intrusão do sentido sexual das palavras. Esse dizer novo sobre o aluno “assustador” funcionou como ponto de estofo no fluxo das interpretações morais da conduta do aluno. No entanto, os efeitos surgidos desta conversação apenas puderam verdadeiramente se apresentar na ocasião de posterior encontro. Neste, o relato da reincidência da conduta do aluno com a mesma professora foi colorido pelo frescor de sua posição: invés de se sentir afetada pelo assustador, aproveitou a ocasião e passou ao conteúdo dos vários sentidos das palavras.
Este singelo exemplo pretende ser suficientemente capaz de nos indicar os momentos em que os professores se “assustam” no exercício da transmissão de conhecimento e saber. A partir desses momentos chegam à impotência que irá obstruir a passagem a nova forma de resposta.

“Que fazer?” a pergunta é legítima, sobretudo em algumas situações extremas, obscenas, pois se constata uma crise generalizada em termos de valores da autoridade, crise instaurada em qualquer âmbito da organização social. A Escola e os educadores estão nela submetidos.

Se a autoridade está em declínio, como exercer o papel e a função pelos quais se está responsabilizado? Em situação de violência em sala de aulas, dirigida aos colegas ou mesmo aos professores, diante de atitudes e condutas inadequadas desde o ponto de vista das regras sociais, que fazer? E quando o aluno não se interessa pelos estudos e “não-há-o-que-fazer” – para interessá-los? Não há respostas, senão a resposta, diante da situação, de começar a construir respostas. A Escola poderá saber-fazer algo com o sintoma, com a particularidade do sujeito, caso dele se aproxime com os aparatos da cultura. Caso o interpele de maneira direta, só conseguirá sua fixação.

O que fazer? A construção de resposta pela Conversação

No texto “Qual autoridades para quais punições?” Eric Laurent, após esclarecer os dois sentidos opostos do termo autoridade, isto é, de um lado a autoridade repressora e do outro a permissiva afirma: “há libido que circula quando os nomes chegam a inverter seus sentidos. (…) Estamos odioenamorados da autoridade”. (LAURENT, 2004, p.140).

Essa pulsão, na vertente do ódio, é algo presente nas relações professor-aluno, na dimensão do suspense: a qualquer momento ocorrerá o que se espera, ou que se sabe que irá acontecer. A presença do não-programado, do ineducável, isto é, – a contingência – transforma-se em situação de risco porque efetivamente abre-se um leque de situações de obscenidade, insulto e injúria. Cria-se igualmente um impasse na difusão do saber: no caso, o que preconiza o Programa do Ministério da Educação sobre orientação sexual.

O a-PALAVRAR não poderia se empenhar pela palavra junto aos professores sem situar a questão da autoridade no âmbito das relações educativas e sem indagar o que passa em termos de discurso social. A título de exemplo, tomemos o que sucede quando o Estado como poder coloca em funcionamento leis que tentam comprometer os pais e fazê-los responsáveis pela manutenção de seus filhos na escola, apoiado, sobretudo, pela distribuição de um plusfinanceiro para a renda familiar. Tal fato, provavelmente, terminará promovendo um desvio do enfoque, atingindo mortalmente, inclusive, a própria ideia que a criança terá do que seja a função da educação: muitas vezes, vai-se à escola para aumentar a renda familiar e não para se integrar no que há de comum na cultura.

Aparentemente, não há mesmo muito para ser compartilhado – não há muito “em comum” da cultura – quando o discurso prevalente da sociedade atual é o discurso consumista. Então, de modo bastante consistente com esse discurso, as crianças e adolescentes pobres, – alvos da referida lei – longe de acreditarem que há esperança em um futuro melhor, “instruídos” pelo discurso capitalista, tornam-se – mais facilmente? – consumidores: de drogas, o exemplo clássico e, consequentemente, de jogos reais de vida e morte.

Podemos dizer que aprendem rapidamente a arte de viver no mundo dos valores atuais, justificando, embora de modo trágico e contrário, a célebre frase da filósofa Hanna Arendt, na qual diz: “o objetivo da escola será o de ensinar às crianças como é o mundo e não instruí-los na arte de viver.”

Não poderemos explicitar uma distância entre fazer incidir a ação pedagógica na ‘arte de viver’, e a ação de promover recursos possíveis a que o sujeito se vire de modo mais próprio ao convívio social, mais adequado ao ‘comum “da cultura? Percebemos que é fácil deslizar de um ao outro. Se o objetivo da escola for educar os modos de gozo, os estilos de vida, ela se encarregará do uso da autoridade moralizante – ou falsamente permissiva – , passando facilmente à ação que em outras disciplinas recebe o nome de controle social.

Um comentário à época:

Comentário para a-Palavrar

Célio Garcia

Raramente nos deparamos com invenções, novas formas simbólicas para nossas ações coletivas. Creio ser o caso desta vez. O território onde se passa a ação coletiva é uma instituição educacional. A dificuldade de se chegar à prática pretendida não será das menores, já que o conjunto de instituições nesse campo é regido pelos “conteúdos programáticos nacionais” estabelecidos por instância superior. O que significa propor como lema “lei e desejo”, em contrapartida ao lema habitual da instituição educacional que é “lei e ordenação.”

Freud já havia dito ser a educação uma profissão impossível. Pois bem, nossa Escola- a Escola de Lacan- pretende praticar uma política do impossível. Para tanto, ela apela para o sujeito, para o desejo, para o real. O real sem lei, o desejo não ordenado e o sujeito que conhece a lei (Se ele não a conhecesse, como conheceria a transgressão?).

Contrariamente à ideologia liberal que afirma ser necessário o mercado e seu aparato financeiro, a ação coletiva a que me refiro, tem em mente, em oposição ao necessário, um outro possível, justamente em contradição a esta exclusiva do necessário. Para a ideologia liberal o possível é subalterno ao mercado, necessário. Na verdade, o mercado ao oferecer gadgets nas prateleiras pretende regular o gozo, à maneira consumista.

Já há certa contradição entre regular e consumir. Mas, vamos adiante. Sabemos que distribuir o gozo é operação já tentada pelos regimes totalitários. (O nazismo foi explícito nesse sentido). Na realidade, só o fantasma era atendido. Não podemos excluir todas as formas de violência, diz nossa Escola, contrariamente à promessa feita no reino da política de segurança em sua edição atual. Ou seja, acrescenta nossa Escola: temos que aprender com a nova subjetividade niilista trazida pelo jovem infrator, pelo jovem drogadito, pelo “tipo assustador”, e outros. Quando falamos de sujeito, é ele também.

Como vimos, encontramos desde o início, termos como negação de muita coisa que estava em funcionamento na instituição. Negação, para a ação coletiva proposta, não inclui entretanto, destruição. A destruição é frequentemente o resultado final dos tais “conteúdos programáticos nacionais” declarados pela instituição educacional, precisamente ao encobrir as contradições. Estou falando dos que abandonam a instituição escolar, os repetentes, os reprovados.

Como então operar? Operamos graças à parte afirmativa da negação, isto é, a subtração. A negação associada à subtração despoja o sujeito dos predicados acrescentados (bom aluno, mau aluno; mau caráter, bom menino; menino que sabe [de sexo], menino inocente; menino hiperativo, menino tranquilo); ela dispensa tipologia frequentemente de inspiração psicológica, assim como os estereótipos, os preconceitos, as classificações. Os tipos fundados nos mitos nunca são inocentes.

Vamos ver!


Texto publicado em TERRE DU CIEN– Journal du Centre Interdisciplinaire sur L’enfant. Mars 2009, p.31.

A escola oferece cursos para alunos dos 1º, 2º, 3ºciclos do Ensino Fundamental pela manhã e tarde e para Jovens e Adultos à noite. Na ocasião, na escola estudavam aproximadamente 400 alunos.
2:Participantes do a-PALAVRAR: Clara Maria Macedo de Paula, Psicopedagoga; Licínia Paccini, médica generalista PFS e hebiatra; Maria das Graças Sena, psicanalista; Maria Aparecida Farage, psicanalista; Maria Rita de Oliveira Guimarães (responsável); Susana Teatine, psicanalista. As Conversações acolhiam profissionais de outras disciplinas, conforme convite ou demanda de presença.

LACAN, Jacques. Conferência em Genebra sobre o sintoma, em Intervenciones y Textos 2, Ediciones Manancial, Buenos Aires,1988, p.133.

“Retenhamos dessa lógica do efeito a posteriori justamente o que se opera como efeito de “trans-formação” para um parceiro de uma disciplina, que relata um momento de encontro com uma criança, uma situação precisa que lhe faz pensar que ele poderia falar disso nesse espaço da conversação interdisciplinar. É esse relato de testemunho que nomeamos vinheta prática, insistindo sobre o fato de que é no a posteriori do relato que se encontra, devido ao dispositivo do laboratório, o efeito de transmissão possível” Philippe Lacadée, em CIEN_DIGITAL 2

Comentário de Celio Garcia como efeito de sua escuta na apresentação do trabalho – a seu convite- no Seminário mensal que mantinha com o nome “Psicanálise e Política”.
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