Skip to content

As Instituições de Acolhimento e o singular da criança e do adolescente

image_print
Imagem: Lake Dissapointment 2007 – Clifford Brooks

“As instituições de acolhimento de crianças e adolescentes” é o tema que anima a Conversação do laboratório O saber da Criança em Campinas. O tema surgiu a partir dos vários questionamentos trazidos por profissionais que trabalham com crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional. Em um dos encontros, chegou-se ao seguinte impasse: Depois da destituição familiar, o que vem? A instituição de acolhimento é família ou não é?

As instituições e os direitos da criança: um pequeno histórico

Nas primeiras décadas do Brasil império a legislação que fazia menção a infância girava em torno da preocupação com o recolhimento de crianças órfãs e abandonadas, estando amplamente ligada à ideologia cristã de caráter assistencial, amparando tais crianças. Isso revela que desde a “roda dos Expostos” colocada nos conventos para receber crianças abandonadas, a administração das instituições asilares estava a cargo da Igreja com o aval do Estado.

Na passagem do Império à República, os juristas sinalizaram a necessidade de criar uma legislação especial voltada para os menores de idade. Era uma das marcas da República: a urgência de intervir, educando ou corrigindo “os menores”, para que estes se transformassem em indivíduos úteis e produtivos para o país, assegurando a organização moral da sociedade.

Até a consolidação do Código de Menores, em 1927, muito se debateu sobre a infância abandonada, a infância criminosa, crianças vadias, ociosas e perdidas que prejudicavam o futuro da sociedade. Em seu artigo primeiro, o código de menores estabelecia que: “O menor de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste Código”. O Código, extremamente minucioso, tinha como objetivo a resolução dos problemas dos menores através dos mecanismos de tutela, guarda, vigilância, educação, preservação e reforma.

Só podemos falar de fato de garantia de direitos na Constituição de 1988, sob a forma do Artigo 227 que manda assegurar, com absoluta prioridade, os direitos das crianças e adolescentes, incumbindo desse dever a família, a sociedade e o Estado, aos quais cabe igualmente protegê-las contra qualquer forma de abuso. Foi com a promulgação do ECA que crianças e adolescentes passaram a ser vistos como sujeitos de direito, em peculiar condição de desenvolvimento e o encaminhamento para serviços de acolhimento passou a ser concebido como medida protetiva, de caráter excepcional e provisório (art.101). O Eca assegura, ainda, o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, prioritariamente na família de origem e, excepcionalmente, em família substituta.

Nesta direção, também é previsto que o serviço de acolhimento de crianças e adolescentes deva ter aspecto semelhante ao de uma residência, estar inserido na comunidade em áreas residenciais, oferecendo ambiente acolhedor e condições institucionais para o atendimento com padrões de dignidade. Deve ainda ofertar atendimento personalizado e em pequenos grupos e favorecer o convívio familiar e comunitário das crianças e adolescentes atendidos, bem como a utilização dos equipamentos e serviços disponíveis na comunidade local.

Uma pergunta surge no laboratório: o que significa garantia de direitos?

Entre o direito da criança acolhida e sua instituição de cuidado, há o que se estabelece pelo judiciário, que de alguma forma normatiza o que é estar o mais próximo possível da vida social e comunitária. Para garantir os direitos da criança, uma hierarquia é estabelecida, e a própria instituição – “a casa” – isto é, as pessoas que nela habitam (trabalhadores e moradores), precisam responder àquilo que o Estado pede, financeira e judicialmente, e ao que a organização gestora preconiza. Para tanto, faz-se necessário estabelecer formas e métodos de trabalho que muitas vezes pedem uma padronização do cotidiano devido ao número de crianças e às rotinas de cada uma delas. Desse modo, a regra aparece como “norteadora” de um bom funcionamento da instituição. Segue-se ali o conceito de igualdade, ou seja, a regra é a mesma e não pode depender da situação, pois a não aplicação da regra para um sujeito resulta em um sentimento de injustiça para os outros, logo: a desordem, a injustiça, a instabilidade e insegurança poderiam ameaçar o grupo. Mas o que fazer com o que escapa? Pois as crianças e os adolescentes apresentam suas singularidades e muitas vezes elas aparecem como transgressoras das regras. E se acolhêssemos a singularidade? O diferente de cada um? Seria isso possível em uma instituição?
Incluir a singularidade de uma criança ou adolescente ainda é um tema delicado nas instituições de acolhimento, pois pode significar não apenas abrir a diferença no grupo de acolhidos, como emperrar o tempo institucional. Aprendemos com as instituições que há um tempo no cotidiano a ser vencido e cumprido.

Garantir o acesso a baladinhas, aniversários, “rolezinhos” com a turma sem que isso seja uma questão que esbarre no viés da proteção ainda é difícil. Quais garantias para a adolescência acontecer o mais próximo da vida social e comunitária?

Vale lembrar que se algo errado ocorre “não se cumpriu o papel da instituição”, e aceitar a diferença, primeiro passo para a inclusão do singular, significa aceitar riscos, incluindo os que a criança e o adolescente podem correr.

Durante uma conversação, foi apontado que em alguns Serviços de Acolhimento Institucional são utilizados termos como “pais e mães sociais”. Instigantes nomeações, pois abrem perguntas: o que é ser uma mãe social e um pai social? Os profissionais que nas instituições trabalham precisam ter algo de materno e/ou paterno para cuidar das crianças? A conversação no laboratório girou até o ponto de localizarmos que seria necessário a presença de um afeto, um interesse afetuoso de um adulto por aquela criança, nas palavras que surgiram das disciplinas presentes no laboratório.
Para refletirmos sobre essas questões, recorremos a um trecho do argumento do VIII ENAPOL que esquentou a conversa: “Tendo em vista os encontros e desencontros causados pelos deslizamentos do desejo humano, o laço social encontra na família um referente necessário a partir do qual homens e mulheres se tornam mães, pais e filhos – com suas desinências – para fixar, baseados nele e em seus corpos, as versões singulares do mal-entendido entre os sexos, pautados nas respostas de suas fantasias inconscientes” .

Como isto se dá em uma instituição? Questão que surge, à medida em que existem tanto os bebês que crescem institucionalizados como crianças que chegam em diferentes idades e já com um percurso na vida. Como levar em conta o que a criança traz de sua vivência familiar antes da destituição e o que fazer quando esta precisa re-significar toda sua história, agora em uma instituição?
É na família que a criança constrói seu modo de estar no mundo e é pela fala dos adultos sobre ela que esta construção acontece. Ser acolhido torna a criança filho do Estado e, portanto, sujeito às normas protetivas reguladas pelo judiciário, proteção esta que a família, quando da destituição de seu poder, não garante mais.

Lacan, em “Nota sobre a Criança” , coloca que a família é responsável por uma transmissão “que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”. Seria esse desejo que não é anônimo então o interesse genuíno – como colocado no laboratório, um interesse afetuoso – de um adulto por um traço singular que determinada criança apresenta na instituição? E também, que “entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Embora as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio sejam com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na educação precoce, na repressão dos instintos e na aquisição da língua, legitimamente chamada materna. Através disso, ela rege os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico […]” 

E, como essa transmissão ocorre, se ocorre, na instituição? O que os adultos que nela trabalham falam sobre e para as crianças acolhidas? É preciso estar atento ao fato que a marca colocada socialmente nas crianças institucionalizadas, principalmente naquelas que estão destituídas do poder familiar e já não encontram perspectivas de serem adotadas, pode recair sempre sobre suas faltas e “aquilo que a família não deu”, o que dá corpo à massa de crianças e adolescentes sem família ou fora da norma, contribuindo para a exclusão e derrisão de possibilidades.

 


Roda dos Expostos: Cilindro de madeira colocado nos Conventos e Casas de Misericórdia para receber crianças abandonadas pela família.

Trecho do Argumento do VIII ENAPOL in: http://asuntosdefamilia.com.ar/pt/template.php?file=Argumento.html

Lacan, J. (1969). “Nota sobre a criança”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. P.369

Lacan, J. (1969). “Os complexos familiares na formação do indivíduo”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. P.30.
Back To Top