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As conversações com adolescentes: A arte em contraponto ao império das imagens

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Leila Danziger, É noite, 2009
Laboratório: Trocando em Miúdos • Belo Horizonte (MG)
Elizabeth Medeiros, Lisley Braun Toniolo, Margarete Miranda, Rachel Botrel

Em nosso texto, desejamos investigar se existe um contraponto da experiência com a arte ao império das imagens,que se desenha na contemporaneidade. Para tanto, lançaremos mão das Conversações com adolescentes de 13 a 16 anos, de uma escola pública municipal, situada nas imediações da Comunidade da Ventosa, área de alta vulnerabilidade da cidade de Belo Horizonte1. Buscaremos fazer uma leitura do que disseram os adolescentes sobre a visita à exposição de Leila Danziger, por ocasião do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, ocorrido em novembro de 2014, intitulada: “O que desaparece, o que resiste”.

Em um primeiro momento de nosso trabalho com aquela escola, realizamos uma Conversação com os professores que transmitiriam a proposta aos alunos e os convidariam à visitação. Em um segundo instante, ocorreu a ida ao local da exposição. Por fim, a Conversação com os meninos, para que pudéssemos extrair os efeitos daquela experiência sobre eles. O que desapareceria, o que resistiria daquele encontro com a arte?

A proposta da Conversação, como dispositivo da psicanálise, visa recolher o que cada um diz do que foi vivido, que ressoa no outro, particularizando ou mesmo singularizando a experiência coletiva. O relançar das pulsões, tomando a via das palavras, pode apontar novos caminhos e formulações.

Estranhar e seguir adiante: seria possível copiar a obra de arte?

O que convocaria os adolescentes de 13 a 16 anos a seguir em frente, levando a decisão de percorrer a exposição?

“Uns ficaram lá fora, outros entraram, deram uma voltinha e saíram, e outros permaneceram para ver a exposição”. Os que seguiram, justificaram seu ato como orientado pela “curiosidade”, como o adolescente W:

Vi aquele tanto de jornal, nó, saí da escola pra ver esse tanto de jornal? Eu posso passar numa banca e ver aqueles jornais! Mas eu queria saber o que era o jornal no chão, uma obra assim com um tanto de jornal, coisa que a gente ia jogar fora, ela usa pra fazer poemas, artes… (Fala de W)

Esse adolescente estranha e se deixa impactar pelo que aquela obra de arte relança: o que seria descartado faculta a transformação em arte. A arte invalidada poderia, inicialmente, ser comprada, consumida aos montes numa banca de jornal. Resistiu, porém, a um primeiro estranhamento. Após refletir, sentiu-se desafiado e decidiu: “Fiquei lá pra saber por que tinha esse tanto de jornal lá”.

Na adolescência, o sujeito, às voltas com o estranhamento do real do corpo que muda, lida com certo embaraço e mal-estar.  Construir um perfil, inscrever sua diferença, haver-se com o inassimilável do corpo que se transforma, nem sempre será tarefa confortável. Na contemporaneidade, sob o império das imagens, veicula-se o chamamento a um sujeito universal, com as diferenças tamponadas pela ciência, pelo gozo. Diversas respostas sintomáticas podem então advir, como a recusa, a indiferença ou a adesão massiva aos objetos. Há também aqueles que apostam na construção do novo e se enlaçam ao saber, como o caso do adolescente citado, que questiona e segue adiante.

Leila Danziger, da série “Pallaksck. Pallaksch.”, 2007-2010

Cabe-nos, como psicanalistas, interrogar: do universal ao singular, que possibilidades as Conversações ofertam aos sujeitos de nossa época?

Miller (2008) nos ensina a distinguir o universal como “aquilo que vale para todos”, que ora entendemos como o generalizável das ofertas das redes sociais e das tecnologias. Do universal para o particular, ele esclarece: “Aquilo que nos é particular é o que temos em comum com alguns. O particular é o que permite formar classes clínicas. É o que se assemelha de um sujeito a outro” (p. 59-60). E o singular? Segundo os argumentos de Miller (2008), seria o peculiar da substância gozosa, que culmina no conceito de sinthoma, como resto absoluto de cada um, “ali onde o comum apaga” (p. 60).

Alguns daqueles jovens que se dispuseram a percorrer as obras de Leila Danziger dão mostras de uma busca de particularização da experiência, e, não resistindo à tentação, procuram replicar a técnica da artista: “tentei fazer em casa também”. Mas, algo se esvazia na busca de similaridade especular, e se deparam com a frustração: “a gente fica triste, ela faz tão facinho…”, diz a adolescente S. Ao que seu colega intervém: “mas deve ter sido difícil pra ela fazer também…” Continuam: “quando ela tirava o durex, saía tudo, eu só queria saber como que ela fez. Eu tirava e não saía nada; foi tentar copiar e deu merda”, declara J.

O que haveria de peculiar na arte que resistia à cópia? Miquel  Bassols (2015) nos lembra da operação de reversibilidade da arte, desde o século passado, que vagueia de sua experiência de sacralização do gozo com a imagem, para o seu avesso, que provoca o despedaçamento da imagem do corpo. Para ele, a arte contemporânea pode, então, revelar o mais íntimo de quem a vê, no mais exterior do império das imagens: “mostrar o que não se vê, mostrar o próprio olhar como o objeto que só aparece como ponto cego de representação”.

Os adolescentes distinguiram as especificidades subjetivas da artista, mobilizados pela incerteza que a impossibilidade da reprodução incitava. Outra vez, a arte produzia neles furos pelo deslocamento especular, apresentando um virtual não mais unificado. Refletiram: “ela deve ser muito paciente, ela é cuidadosa e paciente”. Outro jovem intervém: “ela estava desocupada”. Ao que a adolescente K retruca: “eu acho totalmente o contrário, eu já acho totalmente ao contrário, ela foi cuidadosa, ela se entregou pra arte dela, ela viu na folha de jornal o que ninguém viu”. A jovem busca o esboço de uma conclusão, presumindo os efeitos singulares na relação da artista com sua obra.

No transcorrer das Conversações, os adolescentes debatem e levantam o contraponto das consequências das imagens consumidas nas redes sociais e a arte.

As redes sociais: “quem tem muita curtida vira pop star!” E repete…

Eu tenho que existir na rede social. Quando eu não existo na rede social, eu passo a não existir na sociedade. Eu tenho que estar na rede social pra todo mundo me ver. Eventos, festas, competição de quem tem mais amigos. Quando ganhamos poucas curtidas nos sentimos excluídos. A curtida te dá um lugar de popularidade. A imagem do perfil está mais próxima da mídia, se você não tem curtida, está excluída (Fala de S).

Por que a compulsão da busca do olhar do Outro social? A vivência imaginária em massa seria uma tentativa de substituir a carência do olhar particularizado, que estearia um lugar do sujeito no mundo, “implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”? (LACAN, 2003, p. 373).

Leila Danziger, Para ninguém e nada estar, série Diários Públicos, 2006-2010

Debora Nitzcaner (2014), diz: “Do século XXI, podemos apreender o que significam as variedades de oferta de gozo; porém, há uma dificuldade, não é praticável o sem igual. Não estamos mais na época do imaginário depreciado em relação ao simbólico; é o imaginário uma vez que ele nos dá as coordenadas fundamentais para viver nesse mundo” (p. 198).

Esses adolescentes caminham dizendo dos seus modos de funcionamento contemporâneo, que chegam a ganhar versão particularizada ou sintomática, até, nas Conversações: “Às vezes acordo sobressaltado e olho depressa no celular – que está comigo na cama – pra ver se é alguém postando ou confiro quantas curtidas tive”, diz J.  Momento em que K intervém, também revelando algo seu: “Você não fica chateadinha quando tem somente duas curtidas?” E esclarecem: “A imagem do facebook é para os outros, é pra preencher um vazio, o vazio da aceitação. Mais do que amizade, uma insegurança. Aí, se você tiver tantos amigos… Pela foto eu finjo uma coisa que não sou. Quem tem muita curtida vira pop star”. Outro diz: “Se postar de tal jeito e ganhar muitas curtidas, você faz outra vez. A gente dá uma maquiada na foto, pode ser feia, você vai no aplicativo, coloca um símbolo e fica esperando: já curtiram? Torna-se repetitivo. Um vício”

Sim, “fingir”, colocar um véu imaginário que transfigure o real e possibilite certo tipo de laço com o Outro, ainda que virtual? A jovem K pondera: “Fútil, né? Se você parar pra pensar…”. Demarcamos, naquele momento da Conversação, o descompasso entre o sonho de ser pop star e o vício que repete, insiste na mesma imagem. Provocados, os adolescentes se reportaram à experiência da exposição e enunciaram: “Na arte você pode ser você mesmo. Você expressa você mesmo. Ela (a artista) colocou pra quem quiser ver, tem gente que vai olhar e pensar – “até eu faço isso”, mas do jeito que ela fez é diferente”, conlui S.

Tatuar a palavra no corpo: uma solução que busca significação?

Outro ponto é destacado pelos jovens da experiência com a obra de arte de Leila Danziger. Refere-se a uma instalação em que um vídeo apresenta imagens acompanhadas da palavra pallaksch 2. A adolescente K disse ter ficado tão impressionada que tatuaria pallaksch em seu corpo. O que não poderia “desaparecer” na relação com a imagem despedaçada do corpo adolescente, que buscava uma inscrição unificadora nas minúcias do real do corpo, vivificado/mortificado pela tatoo? Aquela palavra emprestaria uma ficção de verdade à adolescente em uma tentativa de significar a relação do falasser com o mundo? Segundo eles, a palavra pallaksch queria dizer “sim” e “não”. Disseram também que poderia significar “não ter uma voz e só aceitar sim e não”. O jovem T introduz: “Talvez algo relacionado ao nazismo. Era sim e não. Você não podia falar nada, você só recebia ordem e acabou”.

Deslocam da história da guerra para suas experiências atuais: “Hoje existe a liberdade de expressão, mas, se você atinge alguma coisa superior, com certeza vão te calar”. Inscrever a palavra no corpo seria, portanto, uma resposta possível diante do fazer parte de uma cultura que amordaça o sujeito? Não pudemos explorar com eles, entretanto, naquele momento, quem seria essa “coisa superior”, esse Outro que faz calar.

rap, a escrita: resposta possível

Na sequência da Conversação, o jovem W, expressa sua construção:

“Peguei a fita branca, queria escrever uma letra de música que eu compus. Eu li o jornal todo primeiro, tentei tirar os escritos, não deu. Aí eu escrevi uma letra à mão, já não lembro de cor – falava sobre a guerra, sobre a cultura de hoje em dia, que tá muito fraca”. Contesta:

Lá fora a cultura deles é vista como diferente, melhor. Dos povos que não são brasileiros. Nós aprendemos inglês, eles aprendem uma língua avançada além do português. Eles não têm a preocupação de aprender o português, porque não é valorizado, não é reconhecido. (Fala de W)

E interroga: “Por que o inglês é conhecido no mundo todo, e não o português? É como se o Brasil fosse desvalorizado”.

Quis inscrever algo seu, de valor, e escreveu um rap que colou, então, na porta do seu guarda-roupa. Pedimos que nos enviasse. Ele escreve a partir do que a obra de arte lhe causou, singularizando a experiência.

Leila Danziger, da série “Pallaksck. Pallaksch.”, 2007-2010

O Museu do jornal

Ano passado
Fui ao museu
Foi aí
que tudo aconteceu.
Chegando lá
Vi uma papelada,
Entrei e pensei:
Olha que palhaçada!
Depois de uns minutos
Vi em uma tela
Uma moça artista
Mais que a cinderela.
Tirar palavras do jornal
Pra mim, aquilo era sensacional!
Achei que era mágica
Porque a letra sumiu
Não acreditei
Quando vi aquilo no Brasil.

Os adolescentes, ao dizerem de sua experiência com a obra de arte, nas Conversações, deram mostras de sua importância como maneira de resistir às circunstâncias universalistas do império das imagens que os poderiam calar. Tal demonstração firma a posição dos participantes do CIEN de seguir em frente.


Referências bibliográficas
BASSOLS, M. (2015). O império das imagens e o gozo do corpo falante. Documento on-line na Seção Textos do site do VII ENAPOL. Disponível em: http://oimperiodasimagens.com.br/pt/faq-items/o-imperio-das-imagens-e-o-gozo-do-corpo-falante-miquel-bassols/
LACAN, J. (1969/2003). Nota Sobre a Criança, In: _____.Outros EscritosRio de Janeiro: Jorge Zahar.
MILLER, J-A. (2008). Coisas de Fineza em Psicanálise. Documento on-line na Seção de Textos do site do IPSM-MG. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/horizontes/textos/licoes.pdf
NITZCANER, D. (2014). Imaginário. In: MACHADO, O. ; RIBEIRO, V. L. (org.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum.

1 Os professores da Escola Municipal Salgado Filho dão valor especial ao trabalho envolvendo as artes, por apostarem em seus efeitos “restauradores” na educação das crianças e adolescentes. Alguns projetos são ali desenvolvidos utilizando-se dos recursos da literatura, artes plásticas e ações no dia-a-dia, como a “Campanha do lixo”. Adotam o viés reflexivo, sempre com uma chamada ao olhar e ao dizer. Em 2011, um trabalho literário dos alunos intitulado “A África que existe em mim” ficou entre os dez melhores da Rede Municipal de Educação. “Desafios? Muitos.”, ressalta a professora de Língua Portuguesa, Fernanda Flores, coordenadora do trabalho, na abertura do prefácio do livro, que traz em seu interior artigos e ilustrações dos meninos. À escola, nossos agradecimentos pela parceria com o CIEN.

2 Expressão retirada pela artista da poesia “Tübingen, Janeiro”, de Paul Celan (1961)
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