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O passado editável Crise da interioridade e espetacularização de si

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Maurizio Savini, gomma da masticare, 2011
Paula Sibilia1

O homem é o único animal capaz de lembrar. Ao menos, isso supomos, e também é o que Friedrich Nietzsche observou em suas Considerações extemporâneas de 1873. Claro que não se tratava, para ele, de uma grande qualidade capaz de enaltecer o gênero humano. “É possível viver quase sem lembranças, sim, e viver feliz assim, como o mostra o animal”, constatava então o filósofo alemão, “mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento”. Por isso, esquecer ruminando seria, para Nietzsche, “a capacidade mais elevada do espírito”.

Pode parecer estranho, mas esse autor  não foi o único a se revoltar contra as tiranias da memória, defendendo em troca as potências libertadoras do esquecimento. Para ter uma ideia das desventuras que o lembrar-se de tudo pode implicar, basta evocar o célebre protagonista do conto de Jorge Luis Borges, Funes o memorioso, a quem a quantidade avassaladora de lembranças, literalmente, o impedia  de viver.

Tudo isso vem à tona agora porque subitamente convivemos com uma máquina monstruosa que parece se lembrar de tudo: a internet. A essa fabulosa qualidade apontam as reclamações que se erguem contra os motores de busca como Google ou Yahoo, em nome do “direito ao esquecimento” nas redes informáticas. O que se pede, em suma, é que sejam apagados certos dados pessoais que se referem a situações do passado e que, embora sejam verdadeiros, o demandante considera que o prejudicam de algum modo.

Em maio de 2014, a União Europeia tomou uma decisão insólita nesse sentido, que provocou intensos debates ao repercutir em todo o planeta. Segundo tais medidas, os buscadores da internet devem atender as petições dos usuários quando estes solicitem que sejam eliminados de seus resultados alguns conteúdos que os afetam de forma negativa. A partir daí, e por toda parte, não cessam de proliferar os processos judiciais que tentam limitar a informação disponível sobre um determinado indivíduo.

Assim, por exemplo, entre os casos que mais ecoaram, estão os de atrizes ou modelos que pedem a omissão de links para sites pornográficos em todas as buscas associadas a seus nomes. Mas não é só isso, pois a diversidade abunda neste âmbito. Existem também aqueles que querem desaparecer dos resultados mostrados por Google porque temem por sua segurança, por exemplo, ou porque desejam proteger sua privacidade, ou porque os associam a episódios de seu passado que não querem que sejam lembrados por ninguém.

Diego Velázquez, 
La infanta Margarita Teresa de Austria, 
1653, Kunsthistorisches Museum, Viena

São inúmeros os ingredientes deste debate, que é muito complexo e está cheio de contradições. Em todo caso, esse reconhecimento tão recente do “direito ao esquecimento” por lei abala alguns alicerces de nossa tradição filosófica e faz surgir a seguinte dúvida. Por ventura estaria se realizando, afinal, em pleno século XXI, aquele feliz desprendimento das garras da memória proposto pelos autores anteriormente mencionados que, não por acaso, marcaram a fogo o pensamento e o imaginário dos séculos XIX e XX?

Talvez sim, em certo sentido, porém não exatamente como eles o enunciaram. Porque o que entendemos por memória e esquecimento, inclusive o que consideramos que seja “ser alguém” e a relação que isso implica com as próprias lembranças, são todas definições que costumam mudar com os vaivens da história. E talvez tenham se reconfigurado de maneira inesperada nos últimos tempos. Nessa perspectiva, não surpreende que figuras como Nietzsche  e Borges tenham se encarniçado contra os possíveis abusos da memória, já que suas obras costumavam disparar agudos dardos aos valores vigentes na época em que escreveram. E, como é sabido, tanto o século XIX como boa parte do XX estiveram, obcecados pela memória.

Inclusive Sigmund  Freud, autor de uma das teorias mais bem-sucedidas sobre o que significa ser humano na era moderna, atribuiu à memória um papel despótico: podemos não nos lembrarmos de algo,ou acreditar que o esquecemos, mas tudo o que vivemos nos constitui de um modo profundo e crucial, alimentando o que somos. Mesmo se um determinado episódio não se encontra esclarecido no nível mais imediato da consciência, admite-se que tudo o vivido está abrigado em substratos ainda mais profundos de nossa essência. E não há o que fazer: ainda que pensemos que não nos lembramos, estamos feitos dessa matéria tão esquiva como insistente.

No entanto, muita água correu debaixo da ponte desde aquelas vitorianas épocas, e é provável que nossa relação com a memória já não seja a mesma. Embora hoje, mais do que nunca, sejam erguidos museus, eventos ou parques temáticos para prestar culto a toda sorte de acontecimentos do passado. Isso, sem deixar de lado a encenação espetacularizada de épocas inteiras, enquanto infinidade de material jornalístico ou bibliográfico, bem como cinematográfico e televisivo, também se ocupa do assunto.

Para não falar dos blogs, dos perfis nas redes sociais e das toneladas de fotos que acumulamos para documentar cada instante de nossas peripécias vitais, ou de seja lá o que for.

De modo que o desejo de registrar e arquivar parece ainda muito presente em nossa cultura, mas o curioso é que tudo isso convive com uma novidade: as ferramentas para apagar lembranças. Nesse sentido, a reivindicação do “direito ao esquecimento” que estourou recentemente na internet, não parece estar sozinha nessa tendência. Vários experimentos científicos procuram descobrir uma substância química que seja capaz de eliminar reminiscências dolorosas dos cérebros daqueles que sofrem de “estresse pós-traumático”, por exemplo. É a esse esforço que alude o filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, dirigido por Michel Gondry em 2004, cujos personagens recorrem a uma empresa que vende esse tipo de serviços para solucionar, de modo indolor e com alta praticidade, a tristeza de uma desilusão amorosa.

Freya Jobbins, Kerri Anne, 2013, série “dollfaces”

Não é casual que, justamente agora, surjam esses sonhos de uma memória editável ao gosto do consumidor, como se a própria vida fosse uma história contada num suporte digital, cujos episódios desagradáveis pudessem ser apagados – ou melhor, deletados –  com a eficácia típica dos computadores e por livre decisão de cada um. A metáfora acabou se aderindo ao referente, de modo que a Timeline de Facebook não representa mais a epopeiade seu protagonista por meio de uma série de imagens cuidadosamente selecionadas. Agora, ambas as substâncias — vida e relato audiovisual — se fundem e  se confundem nessa biografia informática.

Tratadas como arquivos digitais, as lembranças deixam de ser aquele ingrediente etéreo
e misterioso que nutria a interioridade de cada indivíduo. Essa essência oculta e enigmática era claramente analógica, incompatível com qualquer dispositivo eletrônico e incapaz de se converter em informação. Por isso, exigia outras técnicas de deciframento: as viagens introspectivas e as evocações retrospectivas, por exemplo, como rituais cotidianos para se conhecer a si mesmo, procurando dar um sentido coerente ao caótico fluxo de acontecimentos que compõem toda e qualquer vida.

Mas algo parece ter mudado bastante nesse panorama. Quando se opera segundo a lógica informática, se ninguém lembrar que algo aconteceu – inclusive consigo mesmo – porque esse dado foi eliminado tecnicamente, então, pode-se agir como se isso nunca tivesse ocorrido. Algo comparável ao que acontece quando se recorre ao bisturi para modelar o próprio aspecto físico, por exemplo, ou quando alguém edita a “linha do tempo” em sua página de Facebook, ou quando lhe exige a Google que deixe de mostrar imagens e textos vergonhosos a seu respeito.

A naturalização, entre nós, de todas essas atitudes, sugere algo inquietante. A matéria que nos constitui parece ter mudado sutilmente para transmutar-se em outra coisa, ao se redefinirem os pilares que sustentam a história pessoal de cada sujeito. Já não é algo cujos vestígios são guardados no mais recôndito do próprio lar — como se fazia com o álbum de família ou com o diário íntimo de antigamente, por exemplo — ou então “dentro” das entranhas mais profundas de cada um. Em vez disso, agora parece se tratar de uma espécie de capital que se deve administrar com o propósito prioritário de mostrá-lo.

Ian Davenport, Ingleby Wall Painting (after Carpaccio) – detalhe, 2011

Ou seja, em lugar daquele tesouro que devia ser protegido na intimidade para dar consistência ao eu, trata-se de um relato cuja função primordial consiste em ser visto. Isto é, que os outros o assistam como se fosse um espetáculo e que o testemunhem com seus próprios olhos; e, na medida do possível, que também o “curtam” clicando nos botões adequados ou fazendo comentários afirmativos.

De fato, já não se guarda quase nada para sempre, nem na interioridade impalpável da alma nem na privacidade do lar. Não se conservam fotos impressas, cartas ou diários, por exemplo, pois tornou-se imprescindível mostrar logo tudo nas telas e, em seguida, descartá-lo para renovar o perfil. É preciso exibir tudo o que se é; ou, mais exatamente, o que se está, clamando sempre pela aprovação alheia. Ainda com mais exatidão, dir-se-ia que é necessário mostrar tudo o que se deseja que os outros considerem que se é, para assim receber o seu almejado apoio com o polegar para cima.

Além disso, cada vez existe menos diferença entre aqueles pares que antes se consideravam opostos e excludentes: essência e aparência também se confundem e se misturam nestas novas práticas vitais, sem privilégios morais para a primeira nem desprezos para a segunda. O importante é que se somos algo, então tudo isso tem que estar à vista; porque se não se mostra e os demais não o enxergam, então nada nem ninguém poderá nos garantir que existe.

Ante essa importante e curiosa mutação, o fato de que algo tenha acontecido ou não, parece perder relevância. Também muda a maneira em que uma lembrança do passado afeta o presente, sem necessariamente se afixar de modo indelével na “essência interior” de seu protagonista. O que mais importa, agora, parece ser outra coisa: o efeito que tudo isso produz nos outros; em suma, como os demais o veem.

Daí que as reivindicações atualmente em curso em torno ao “direito ao esquecimento” também costumem se apresentar sob outro rótulo: o “direito à autodeterminação informativa”. Neste caso, o que se defende é a faculdade de cada indivíduo para administrar por si mesmo a divulgação e o uso dos dados referidos à sua pessoa. Esses sonhos de autonomia também levam a marca do contemporâneo. Essa ilusão de controle total, porém, não cessa de nos desapontar, dando ressonâncias inesperadas às sagazes teorias de Gilles Deleuze sobre o mundo contemporâneo.

Cabe lembrar que esse filósofo francês recorreu à expressão “sociedades de controle” para designar o “novo monstro”, como ele mesmo ironizou naquele breve e contundente ensaio publicado originalmente em 1990. A que se referia? À gradual implantação de um regime de vida inovador, que vai se distanciando dos modos de funcionamento tipicamente modernos e industriais , ou seja, daquilo que Michel Foucault nomeara “sociedades disciplinares” em seus estudos publicados alguns anos antes.

Essas novidades começaram a se delinear nas últimas décadas do século passado, com o apoio crucial das tecnologias eletrônicas e digitais, para configurar uma organização social mais compatível com o ágil capitalismo de final do século XX e princípios do XXI; isto é, um sistema regido pelo excesso de produção e pelo consumo exacerbado, pelo marketing e pela publicidade, pelos fluxos financeiros em tempo real e pela interconexão em redes globais de comunicação. E, sobretudo, marcado pela decadência de certos estabelecimentos básicos da sociedade moderna — tais como a escola, a fábrica, a prisão e o hospital — enquanto a empresa se entronizava como um  modelo que impregnaria todas as demais instituições, ao contagiá-las com seu onipresente “espírito empresarial”.

Choi Jung Hyun, keyboard viper, 2008

Como parte desse movimento, entraram em crise as figuras de autoridade mais tradicionais (pais, chefes, mestres, Estado), de modo que o antigo sistema de poder centralizador — que exercia uma vigilância vertical e internalizada por meio de regulamentos e culpas — também caiu em declínio. Contudo, essa transformação não significou uma liberação total das velhas amarras; ou pelo menos, não foi apenas isso o que aconteceu. Junto com esse afrouxamento, abriu-se o horizonte para a implantação de um tipo de controle mais sutil e eficaz, que opera em todo momento e lugar, graças à espantosa ubiqüidade dos dispositivos digitais de comunicação e informação. Em síntese, trata-se de um poder descentralizado e distribuído pela totalidade do tecido social, como Deleuze vislumbrara com tanta perspicácia há um quarto de século atrás.

Contudo, esse controle sobre a fatal insegurança da vida é mais uma armadilha extremamente lucrativa que um fato consumado — ou algo que alguma vez possa vir a se consumar de vez. O mercado , a tecnociência e os meios de comunicação selam, todos os dias, uma aliança tácita para manter essa dinâmica em funcionamento. Um movimento estimulado, ao mesmo tempo, pelo temor  ao inimigo (ou ao simples acaso) e a promessa de que sempre será possível afugentá-lo tecnicamente. Os mais variados artefatos estão à nossa disposição, conforme nos é explicado todo dia, para que possamos com eles “controlar” o caótico acontecer da vida.

Porém, além dessa potência que emana do bem-sucedido “mito cientificista”, agora também vivemos na “sociedade do espetáculo”. Quer dizer, aquilo que Guy Debord entrevira já faz quase meio século. Em plena agitação das rebeliões contraculturais, esse autor notou que estava se engendrando esta nova configuração sociocultural, política e econômica, uma de cujas definições mais citadas afirma que “o espetáculo é uma relação entre pessoas mediada por imagens”. Quase nada do mencionado nestas páginas teria sido imaginável no longínquo ano de 1967; no entanto, tudo isto talvez sugira que algo daquela ácida previsão está se cristalizando agora. Com alguns ingredientes imprevistos, sem dúvida, mas é inevitável associar o que acontece hoje em dia com aquilo que Debord intuiu, com furioso desdém, numa época em que recursos técnicos como a internet não habitavam sequer os mais audazes relatos de ficção científica.

É muito peculiar a combinação que atualmente se dá entre essas duas vertentes: a incitação ao espetáculo de si mesmo, por um lado, e os sonhos de controle total com ajuda da tecnociência, por outro lado. Os conflitos que essas novidades suscitam não deixam de causar toda sorte de perplexidades. Assim, por exemplo, em meio à proliferação de estratégias de visibilidade que todos estamos intimados a colocar em jogo cotidianamente, com o propósito de projetar perfis atraentes e capazes de conquistar o maior número de olhares, de cliques no botão “curtir” e de seguidores, cabe se perguntar se é possível ter algum controle sobre aquilo que se difunde acerca de si mesmo.

Ana Kesselring, Corpotopias, 2011

Essa pergunta evoca os casos, cada vez mais frequentes, de fotos ou vídeos de pessoas famosas em atitudes sensuais, muitas vezes sem roupas ou praticando atividades sexuais, que de repente “vazam” e são divulgadas pela internet, transformando-se imediatamente em notícias de alto impacto — pelo menos, por uns poucos dias. Algo semelhante acontece com o fenômeno do bullying, outra manifestação bem contemporânea, embora seja habitual dizer que não se trata de nenhuma novidade, mas de uma atualização do clássico “assédio escolar” que sempre teria existido.

No entanto, não é por acaso que hoje o constrangimento se multiplique exponencialmente com essa virtual exibição em inúmeras telas e que, em consequência, possa chegar a ter efeitos descomunais. Quando se dissemina pelas redes informáticas, a humilhação diante de uma exposição vergonhosa se torna ainda mais asfixiante, pois o que antes costumava ser de ordem privada — limitando-se às paredes da escola ou da casa, por exemplo — subitamente se joga no âmbito público com um alcance potencialmente infinito.

Nesse contexto, as reivindicações pelo “direito ao esquecimento” parecem justíssimas.
No entanto, aqui emerge outra das complicações deste assunto: como consegui-lo? Como obter, de fato, esse apagamento tão buscado nesses casos? Se a espetacularização de si mesmo se legitimou e se generalizou, a pretensão de manter algum controle sobre os próprios dados em suporte digital torna-se cada vez menos plausível — ainda mais quando se trata de imagens, esses materiais especialmente inflamáveis que se multiplicam e circulam despertando grande avidez. Talvez os dois componentes dessa equação sejam incompatíveis, de modo que a única forma de controlar o que se diz sobre si mesmo — incluindo aí o que cada um conta ou mostra acerca de sua própria vida — seja se abstendo não só de fazer circular, mas também de produzir qualquer documento digital a seu respeito.

Algo altamente improvável, que talvez possa até ser digno de pesadelos para boa parte dos sujeitos contemporâneos; ou seja, aqueles que se converteram em loquazes autores, narradores e personagens de si mesmos. Vale notar que essas criaturas — os personagens — nunca estão sozinhos: sempre há alguém que observa tudo o que eles fazem, alguém que segue com avidez seus atos e gestos, seus sentimentos e pensamentos, até suas emoções mais minúsculas ou banais. Sempre há um espectador, um leitor, uma câmara, um olhar sobre o personagem que tira dele seu caráter meramente humano. E, para poder existir, ele precisa fervorosamente desse olhar alheio.

Já na vida das pessoas de carne e osso, nem sempre há um público disposto a observar suas ações — nem as heróicas, nem as miseráveis, e menos ainda as trivialidades cotidianas. Com muita frequência, aliás, ninguém nos olha. Nesses casos, não temos testemunhas do que somos. Isso não seria muito grave e até poderia significar um alívio, se não vivêssemos imersos numa cultura como a contemporânea. Isto é, uma sociedade na qual a verdade sobre o que somos deixou de brotar prioritariamente da interioridade , ou seja, de algo que teríamos zelosamente guardado “dentro” de cada um de nós e que constituiria a própria essência. Em vez disso, cada vez mais, cabe ao olhar alheio o poder de irradiar essa verdade, ao avaliar tudo (e tão somente) o que cada um é capaz de mostrar.

Daniel Escobar, ‘The World’, 2014, Foto: Simone Catto

As redes sociais são meios perfeitos para consumar esse jogo. No entanto, mesmo dispondo desses recursos e usando-os ativamente, se ninguém constata ou — ainda melhor — festeja nossa existência traduzida em valiosas imagens, se são poucos aqueles que nos “seguem”, os que clicam em “curtir” ou deixam algum comentário positivo diante da última selfie que postamos na internet, então, como garantir que somos alguém?

Embora os personagens às vezes pareçam estar sozinhos, não é o que de fato acontece: eles sempre estão à vista. Absolutamente tudo em suas vidas deve acontecer sob os olhos gulosos de algum espectador ou leitor, ou então dos mais atuais seguidores, amigos ou fãs. Sozinhos, eles não existem. Somente são ou estão quando alguém os observa: sob esse olhar tão  cobiçado, eles ganham sua fantástica vitalidade. Como resistir, portanto, a esse anseio atual de se mostrar e mendigar aplausos, se o mundo nos converteu em verdadeiros personagens?

Por isso, o anonimato não é uma possibilidade viável hoje em dia, supondo que alguém pudesse chegar a desejá-lo. Entre tantos cruzamentos de dados e redes de informações, se um cidadão do globalizado século XXI quisesse se manter na obscuridade do invisível, provavelmente lhe seria muito difícil. O velho sonho da ilha deserta, por exemplo, não parece mais factível; aliás, ele nem sequer é imaginável hoje em dia como pura fantasia… pelo menos, não sem wi-fi, e portanto com acesso aos apetecidos — mas também temidos — portais de Google ou Facebook.

Isto parece ser, de fato, o ponto culminante daquilo que Walter Benjamin denominara, em seus escritos da década de 1930, “o triunfo sobre o anonimato”. Acompanhando o percurso de seu famoso flâneur pelas ruas deParis, o ensaísta alemão descreveu alguns mecanismos de controle administrativo arduamente implantados na Europa do século XIX, como os processos de identificação dos indivíduos e o reordenamento urbano das populações. Todos movimentos imprescindíveis para a modernização do mundo então em andamento. Naqueles textos, o autor constatava algo fundamental para o projeto moderno: “um homem se torna mais suspeito quanto mais difícil seja encontrá-lo”.

Com a transição do paradigma analógico para o digital, as tecnologias de processamento de dados reduziram muito mais ainda as possibilidades de permanecer oculto, alheio ao controle, fora da abrangência das tentaculares redes. Não apenas porque não é mais possível se esconder, mas sobretudo porque quase ninguém deseja fazê-lo. Por isso, as novas ferramentas informáticas parecem concluir o processo iniciado pelas técnicas criminalísticas da época comentada por Benjamin, como a assinatura, a carteira de identidade e a fotografia. “A história de detetives surge no instante em que se assegura essa conquista, a mais decisiva de todas, sobre o anonimato do homem”, afirmava o filósofo ; “a partir daí, não se pode mais pressentir onde acabarão os esforços para fixá-lo no falar e no fazer”.

Contudo, o ponto mais extremo dessa trajetória talvez possa ser vislumbrado na exposição por livre vontade que se consumou nos últimos anos através de canais interativos como as redes sociais da internet ou os aplicativos para celulares, que permitem manter um circuito de contatos permanentemente ativado. Através desses dispositivos, todos os dias, milhões de indivíduos comunicam toda sorte de dados sobre si mesmos, inclusive textos e imagens pessoais de diversa índole, além de “seguir” as informações relativas a quantidades crescentes de gente interconectada.

A maioria costuma adotar tais práticas com prazer, cumprindo rituais de cotidiana devoção, e não porque alguma autoridade os obrigue a fazê-lo como um sofrimento imposto sob o peso da lei. Pelo menos, isso acontece até que a situação fique complicada e mostre, de repente, sua face mais obscura. Então, a tecla delete será vista como uma ambígua promessa de solução absoluta. E o “direito ao esquecimento” aparece como uma válvula legal que procura cumprir essa impossibilidade.

Google é um poderoso emblema desse conflito. O buscador mais usado da internet parece ser não apenas um oráculo que tudo sabe, mas também uma instância legítima  — ao menos assim legitimada, inclusive pelas instituições jurídicas mais respeitadas e poderosas do mundo — para administrar as referências pessoais de seus milhões  de usuários de todo o planeta. Tentar lhe colocar barreiras jurídicas, no entanto, pode resultar tão inócuo como problemático.

Certamente, o debate continua. No entanto, talvez esta polêmica tão atual em torno do “direito ao esquecimento” na internet, seja um novo indício de uma mudança histórica de enorme magnitude e complexidade, que vem se concretizando há algum tempo e cujos sintomas estão por toda parte. Em suma, e como já foi insinuado: a verdade não emana mais do interior de cada um, como costumávamos pensar até pouco tempo atrás, mas do olhar alheio. Inclusive no que se refere a algo fundamental: quem se é, quem se foi e quem se poderia chegar a ser.

Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Paula Sibilia

 

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1Paula Sibilia é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) e do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, autora dos livros O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais (2002), O show do eu: A intimidade como espetáculo (2008) e Redes ou paredes: A escola em tempos de dispersão (2012), todos publicados também em espanhol. É mestre em Comunicação (UFF), doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ) e em Saúde Coletiva (UERJ). Em 2012 fez pós-doutorado na Université Paris VIII, da França. Atualmente é bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo CNPq e Jovem Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ, além de coordenar o PPGCOM-UFF. www.paulasibilia.com.
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