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Do “nada” fez-se Tutti?

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David Park, Canoe, 1957
Laboratório Infância Errante • Rio de Janeiro (RJ)
Keronlay Machado1

Na ocasião do primeiro encontro com os colegas do Laboratório Infância Errante – CIEN Rio2, em meados de agosto de 2012, compartilhei os impasses gerados a partir do atendimento a uma adolescente em situação de rua, no primeiro dia de trabalho na equipe de “Consultório na Rua” (eCnaR), acontecido no mês anterior. Neste momento, as conversações do Laboratório giravam em torno do tema do Recolhimento Compulsório de crianças e adolescentes em situação de rua, bem como da política de Redução de Danos.

O Consultório na Rua é um dispositivo da Atenção Básica e componente da Rede de Atenção Psicossocial implementado com o objetivo de garantir o atendimento integral à saúde da população em situação de rua, no âmbito do SUS. O trabalho é itinerante, in loco e tem como base de suporte uma Clínica de Saúde da Família. Como Terapeuta Ocupacional minha inserção na eCnaR se deu enquanto residente, no último semestre do curso de Residência Multiprofissional em Saúde Mental.

Tutti estava em situação de rua e chegara à Unidade Básica de Saúde em busca de atendimento, com insuportável dor de dente e intoxicada por crack. Apesar de sua gritante vulnerabilidade, ela não demandou nenhum cuidado para além da “dor de dente”, nem abrigamento, nem tratamento para cessar o uso de drogas. Nada. O não retorno da adolescente para os atendimentos agendados e a ausência de demandas me trouxeram inquietações e questionamentos quanto à clínica que seria possível realizar naquele dispositivo.

Assim, o impasse gerado a partir do caso de Tutti de “como cuidar de quem não deseja ser cuidado?” foi levado para conversações realizadas entre os integrantes do Laboratório por alguns encontros, através da circulação “acalorada” da palavra, com a contribuição da experiência de cada profissional e da particularidade de cada especialidade. Acalorada porque, de alguma forma, era um impasse comum à prática de cada sujeito ali presente.

Miquel Barceló, Bodegón amb 3 peres

Ao colocar o impasse em palavras, na roda de conversa, em que cada um fala de uma posição diferente, através de discursos diferentes, pude formular meu mal estar na seguinte pergunta: “como cuidar de quem não deseja ser cuidado?” O que se desdobrou em: “impossível cuidar de quem não deseja ser cuidado”. Esse foi o efeito que recolhi da conversação para minha experiência, que contribuiu para eu sair da posição de uma suposta “impotência” e “nada” demandar da adolescente que não queria “nada”.

Dessa forma, os desdobramentos do retorno de Tutti, ocorrido alguns meses depois, foram o efeito da mudança de minha posição e a afirmação da aposta na singularidade do sujeito, no vínculo e nas conversações com meus colegas do Laboratório, neste momento relatado, diante do impasse de cuidar de quem (a princípio) não deseja ser cuidado.

Participar das conversações do Laboratório Infância Errante tem possibilitado o refinamento da clínica produzida em meu cotidiano de atendimento à População em Situação de Rua, furando etiquetas impostas pela burocracia institucional e pela política, que insistem em massificar os sujeitos.

 


Referências Bibliográficas
1 Terapeuta Ocupacional
2 Os profissionais que participam do Laboratório Infância Errante são: uma psiquiatra coordenadora do setor de tratamento em dependência química de uma clínica particular; uma psicóloga que trabalha na superintendência de atenção hospitalar do município do Rio de Janeiro; uma psicóloga; um psicanalista e uma psicanalista supervisora clínica na saúde mental do Rio de Janeiro. Nosso campo de investigação é a criança e o adolescente que vivem em condições de risco, tais como fugas, errâncias e toxicomanias.
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