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Me inclui fora dessa! – a bússola que cada um inventa.

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Georg Bazelitz, Torso Frau, 1998
Rômulo Ferreira da Silva1

As experiências que tive no CIEN me marcaram e, juntamente com a experiência em cartéis que me parecem bastante próximas, deram-me a possibilidade de trabalhar na saúde mental _ seja como psiquiatra, como chefe de serviço e mesmo supervisor de equipe_ de uma forma muito mais rica do que antes havia experimentado.

Reunir pessoas interessadas em um tema que nos apresenta problemas, para tentarmos soluções nas quais não há prevalência de um saber específico, e que respeite as singularidades dos envolvidos, não é fácil.

Finalizar minha análise e me deparar com o dispositivo do passe me possibilitou retomar quais foram as bússolas que pude inventar ao longo do meu percurso de vida. Foi possível, também, a partir disso, rever minha experiência clínica com crianças, principalmente no que diz respeito aos casos graves.

Desde minha formação psiquiátrica na área da infância e adolescência era procurado como aquele que daria uma resposta médica a esses casos. Colegas psicanalistas me encaminhavam essas crianças com o intuito claro de que eu receitasse medicamentos. Afastei-me dessa clínica. Não sabia muito bem o que fazer diante dessas demandas.

O Ministério da Saúde vem paulatinamente, há mais de uma década, introduzindo métodos de avaliação e classificação precoce dos transtornos de desenvolvimento da infância. Divulga uma “cartilha” que orienta como abordar essas crianças. Atrelado a esse movimento, vem ocorrendo aqui e ali, tentativas de colocar como prioridade a abordagem cognitivo-comportamental. A psicanálise ainda não está proscrita, porém, tendo em vista o que ocorre fora do Brasil, chegaremos lá. A posição abordada no CIEN, diante de tais questões, me fez retomar a possibilidade de atender essas crianças.

Anselm Kiefer, Lilith, 1987-89

Só retornei a receber crianças com mais frequência, inclusive os ditos autistas, muito próximo ao meu final de análise. Chegar a um significante sozinho, sem ter mais o que dizer em análise, proporcionou a vivencia de um gozo autista ao qual a análise não demandava mais nada. Era um vazio total. Diante desse silêncio, não demandar nada ao S1, mostra um pouco da clínica que podemos adotar diante do autismo.

O dispositivo do Passe não é demandado àquele que termina sua análise. Mais uma vez o silêncio. Ficar só com o sinthoma poderia me afastar do laço social, inclusive no âmbito da Escola Una. Por não ser exigido que fosse feita qualquer articulação sobre a posição autística, já que o Outro perde sua consistência e se apresenta inexistente, um passo foi desejado: o Passe.

Deparei-me com a possibilidade de falar livremente, da necessidade de expressar ao meu entorno, minha experiência para sair do autismo. A contingência da experiência do Passe, na oferta que a psicanálise de orientação lacaniana propicia a quem chega ao ponto final de sua análise, me alavancou a desejar tratar o impossível e refazer meu laço no uso da lalíngua. Catar os restos, os objetos caídos e reconectá-los aos significantes possíveis é uma abertura para o que podemos fazer diante dos autistas que nos chegam para tratamento.

Mesmo não tendo sido um caso tão grave na infância, considero interessante observar a bússola que criei para seguir na via da minha empreitada infantil, ou seja, conquistar todas as mulheres.

Inaugurado num universo masculino, mas do qual pude escutar coisas horríveis a respeito dos maridos, de minha mãe e de minhas tias, tentei cair fora dessa série que me aguardava. Aliás, era esperado por elas como um ser que responderia muito mais ao modelo do avô materno do que ao do meu pai.

Foi um primeiro momento de dizer: “me inclua fora dessa!”

Ao tentar ser diferente, busquei a via de ser o garoto bonzinho que respondia às demandas e me comportava de forma feminina, no sentido de não perturbá-las com minha diferença. Minha bússola foi dizer “sim”.

Essa marca perdurou até a adolescência quando a questão da sexualidade se colocou e foi necessário escapar do compromisso com essas mulheres e novamente dizer: “me inclua fora dessa!”

Algo do real se apresentou. A história do meu nascimento ganha força, mas agora, de maneira a me colocar diante da morte naquilo que foi a significação dada pelos médicos: ter salvo minha mãe de um possível câncer.

Ao invés do sim, do bonzinho e salvador; e podendo-se até pensar que se tratava de uma desorientação, minha bússola foi o enfrentamento com a morte.

Por um lado um empuxo à morte e por outro a onipotência de poder dominá-la.

A afirmação da escolha da carreira de medicina demonstra bem essa bússola.

Elida Tessler, “Você me dá sua palavra?”, 1994-2010

A partir dos comentários de Eric Laurent sobre o meu passe, pude retomar as brincadeiras infantis, nas quais, as galinhas eram objetos de pesquisa. Essas pesquisas diziam respeito à sexualidade e à morte. Assim, pude recompor após a análise o que havia, desde então, nesse movimento de enfrentamento com a morte.

É talvez, num terceiro momento de dizer “me inclua fora dessa”, que aparece uma busca da análise. A partir daí, não mais uma busca de bússola como nos movimentos anteriores, mas uma decisão de que o real seja a possibilidade de “bússola”.

Um ponto interessante é que para aqueles que conheceram a criança, o adolescente e mesmo o jovem adulto, que hoje pode contar essa histoeria , parece difícil acreditar que a ideia de suicídio esteve tão presente ao longo da vida. Era uma maneira de viver muito intimamente a relação com a morte.

Pode haver pessoas que inventam bússolas mais interessantes. Apenas na minha experiência analítica é que pude ficar livre das bússolas inventadas na minha neurose. Quisera eu ter iniciado minha análise mais cedo!

 


1 Agradecemos a Rômulo Ferreira da Silva a amabilidade de nos testemunhar sua experiência de passe, transmitindo-nos a partir da frase: Me inclui fora dessa. Rômulo é Analista da Escola – A.E. – desde abril de 2012.
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