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Robert Walser, o passeador Irônico

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Robert Walser, Mikroschriften, 19322
Entrevista de Philippe Lacadée por Simone Bianchi1
Ensinamentos psicanalíticos da escrita do Real

Phillippe Lacadée no seu livro Robert Walser, o passeador irônico,3demonstra a importância da ironia em Robert Walser. Sua relação irônica com a língua lhe traçou um destino bem particular. Graças à invenção de uma escrita microgramática e o método do lápis – escrita minúscula do lápis sobre os pedaços de papel – Walser conseguiu manter uma imagem de seu corpo e sustentar um mínimo de laço social. O Real que constitui o romance na obra de Walser é também o trabalho do poeta.

Simone Bianchi: Você poderia nos dizer, em poucas palavras, quem foi Robert Walser?

Philippe Lacadée: Robert Walser é um escritor suíço alemão que foi reconhecido na sua vida pelos grandes – Franz Kafka, Robert Musil, Walter Benjamin. Apesar de ser reconhecido como um grande escritor, isso não o afastou do caminho que, como ele próprio dizia, o conduzia a ser um homem ordinário mas, sobretudo, a querer “ser um ravissante zero todo redondo”4, a fim de viver uma vida simples e ser curioso de cada detalhe que sua escrita inspirava. Então, eu tentei mostrar como essa vida tão ordinária e simples é dependente da sua estrutura subjetiva tão original, sem apresentá-lo como caso clínico. Parece-me que ele ilustra a tese de psicose ordinária, quer dizer, uma psicose não desencadeada até o momento onde ele se destabiliza, o que levou sua irmã a hospitalizá-lo.

Simone Bianchi: Você evoca a vida de Robert Walser como uma vida de errâncias e vagabundagem. No seu livro O despertar e o exílio, você nomeia o poeta Rimbaud como “o príncipe da errância”5. Dois poetas que não têm o pai como ferramenta para a grande estrada da vida. Mas o que você mostra bem em Walser é a posição irônica do sujeito.

Philippe Lacadée: Sim, eu proponho ler a sua obra/vida como uma tese sobre a ironia de onde se deduz seu estilo, sua atitude e suas dificuldades em fazer laço social. Ele passa sua vida sozinho, assumindo graças à escrita, sua loucura, o que fez com que durante muito tempo não pode ser chamado de louco. Era uma loucura mais discreta – bem sustentada pelo manejo tão preciso e rigoroso da língua – que acontecia nele caracterizando-o como estranho a si mesmo e aos outros. Mas ele deveria então escrever cada detalhe encontrado na sua língua porque era isso que funcionava como suplência. Walser nos revela no corpo de sua escrita, vivendo-a mais próximo de seu corpo, o modo pelo qual o drama da sua loucura se desempenha no verbo. De fato, ele que se dizia especialista da escuta, sentia um grande sofrimento psíquico em falar com o Outro. De fato, ele dizia: “quando eu quero falar, eu empresto imediatamente o ouvido para ter um auditório”6. Sua relação irônica com a língua lhe traçou um destino bem particular, contrariamente as aparências, como se o seu discurso não lhe permitisse fazer laço social.

Simone Bianchi: Você mostra também como sua posição em relação à língua ensina sobre o autismo.

Philippe Lacadée: Sua posição nos ensina sobre a questão do autista, ou seja, aquele que escuta a si mesmo, como indica muito bem nas crianças Tanner, mas também, notadamente no Brigand, sobre as vozes escutadas por ele, mas que lhe inspirava na criação dos personagens fictícios, especialmente as mulheres. Assim, se Robert Walser escuta a si mesmo, como dizia Lacan do autista, ele admitiria também ouvir as vozes femininas – as quais eram apenas das mulheres que ele encontrara, aquelas dos seus romances – e ficar frequentemente surpreso com ele mesmo pelas suas estranhezas. É a famosa confissão ao médico que se encontra no Brigand que é uma verdadeira lição irônica sobre a esquizofrenia.

Simone Bianchi: Você o apresenta como “o passeador irônico” e você nos diz que o passeio, título de um dos seus romances, foi vital para ele.

Philippe Lacadée: O passeio que organiza toda sua vida é um passeio na língua. Ele passava sua vida andando e passeando, para paradoxalmente, manter-se imóvel e escutar a sonoridade da língua veiculada pelo detalhe do barulho ou a estranheza de uma palavra entendida. Mas também ele parava para falar em voz alta e lá no que ele nomeia o duplo silêncio, ele ressonava com a sonoridade, não da língua articulada ao Outro do sentido, mas à lalíngua, como nos ensinou Lacan, ou seja, aquela do bem dizer antes de ter sentido.

Simone Bianchi: Você ilustra bem como a relação dele com as palavras e a sonoridade foi essencial.

Philippe Lacadée: As palavras impostas e a vontade das palavras que ele deduziu da sonoridade, eis em torno do que gira toda a sua escrita. Escrevendo: “As palavras, que eu estou prestes a pronunciar, têm toda uma boa vontade delas”7, ele testemunha quantas vezes ele foi parasitado por essa língua que veiculava os pensamentos e as palavras, e obedecia uma sonoridade que apenas ele entendia.

Ele está comprometido com as palavras pela maneira de enodar o seu gozo ao significante mestre, recusando-o de modo irônico através de sua posição subjetiva: ser a garçonete. Assim, foi o genial comprometimento com as palavras, até mesmo se representar com as palavras que revelavam a escrita na palavra, que se tornou o servo. Ele poderia dizer: “Eu gozo, então eu obedeço”. De fato sua obediência consiste em consentir ser o representante da escrita do mestre, enquanto criança que alugava a bela pluma encontrando a solução: se transformar em garçonete “para fazer a menina, então meninando alegremente sem parar”8. “Quando eu exercia realmente as funções de um “homem que faz tudo”, eu tinha dúvidas que um “romance do Real”, poderia sair deste fragmento de vida, que de um ato do Real poderia sair um ato literário? Oh, não de modo nenhum”9.

Simone Bianchi: O que quer dizer a simplicidade aparente da escrita dele?

Philippe Lacadée: Este homem que nos encanta pela simplicidade de seus escritos, pela precisão de suas palavras, pela “sua depravação da língua”10, pela seriedade de suas palavras mas, sobretudo pela lição de ironia, encontra na escrita de sua pluma a maneira de se manter numa certa saúde mental: “Onde está a saúde, onde está a doença?”11. O que não cessa de se escrever. Escrever se coloca mais perto do seu corpo, como se sua existência se definisse em torno da escrita que lhe proporciona uma felicidade singular ou que o rejeita como um parceiro muito caprichoso: “um homem que não rabisca pode apenas beber seu café de manhã? Tal homem ouse a respirar mal.”12 Não se falaria dele como um trabalhador, um faz tudo, um romancista manual, “ um torneiro que escreve, que corta, bota, forja, recorta, bate, digita ou crava as frases juntas”, um passeador, “um ouvidor o mais genial”, um folhetinista. Esse “solidário mundano” mas, sobretudo esse “homem estranho”, se dedicava a incarnar até a morte, já escrito no seu romance As crianças Tanner13, a substância viva que falta à escrita. Tudo o que se tem a dizer é eclipsado pelo ato de escrever: “apareceu que ele era mais apto a escrever e viver dos romances. Nossas imaginações são exatamente reais tanto quanto as nossas outras realidades”14.

Simone Bianchi: Você fala de uma crise da escrita e do estatuto particular desses textos miniaturizados ao extremo.

Philippe Lacadée: É uma escrita secreta e privada, onde vemos o reflexo dos distúrbios psíquicos de Walser que os conduziram desde 1929 ao Asilo Waldau e que, como pensava Carl Seeling, não merecia que a decifrássemos? Não, esta escrita miniaturizada não é um sintoma de uma doença mas, ao contrário, seguindo ao pé da letra as palavras de Walser, um meio de cura, significando para Walser a possibilidade de conservar e de renovar em permanência sua força criativa. Graças a Lacan podemos fazer de sua escrita miniaturizada o equivalente do Sinthoma de Walser, a invenção que lhe permite “curar-se literalmente” e alcançar “a singular felicidade”15. De fato Walser se colocava a escrever assim desde o que ele chamou de “sua crise da escrita” e “seu período de decadência”, surgidos de modo brusco durante os seus últimos anos em Berlim, onde ele experimenta um deixar cair do corpo, um verdadeiro tormento vivido sob o modo de uma falha da mão. Ele teve que deixar a cidade em 1912 para retornar à Berna, onde ele gostava de ouvir a si mesmo na sonoridade de lalíngua.

Simone Bianchi: Por que ele inventa o método do lápis?

Philippe Lacadée: Ele inventa então o seu método do lápis que lhe permite miniaturizar sua escrita. Esse processo do lápis tem uma significação muito precisa: mantê-lo na ilisibilidade e fazer calar “essa coisa incongruente que saía da pluma”, essa escrita na palavra que, de repente, colocava-se a dizer alguma coisa – equivalente das epifanias de Joyce – e que o perseguia.

Robert Walser, Mikroschriften, 19322
Robert Walser microscripts courtesy de Robert Walser Archive, Bern courtesy New Directions and Christine Burgin

Simone Bianchi: Você poderia precisar o que você nomeia “o lago acústico”, que parece ter uma importância na vida dele, no nível do “território do lápis” tornar-se o território sonoro dele.

Philippe Lacadée: Assim, seu território do lápis torna-se seu território sonoro, seu lago acústico16 o qual ele mantém, já que o encontramos ao longo dos seus escritos, ao ponto de fazer um livro, “Seelend”, enquanto se protegia através da miniaturização de sua escrita. Neste sentido, ele esclarece o lugar e a função da letra no último ensino de Lacan. Digamos que graças ao território do lápis, ele inventa do que se proteger do seu território da escrita, lá onde ele “ouve a si mesmo”, espaço de gozo, que ele nomeará seu lago acústico, espaço de escrita reduzida a uma letra, enquanto recusava a escrita do significante também portador de sentido lisível pelo Outro. Sua carta à Max Rychner na qual ele revela o modo pelo qual se dissolve para ele a escrita da pluma, permite melhor compreender o que estava em jogo na sua escrita – “Toda história do meu trabalho e da minha vida” – e a maneira pela qual ele soube se servir da escrita para tratar a sua grande sensibilidade à sonoridade do significante, ao que ele entendia das palavras17.

O “dito-esquizofrênico” como dizia Lacan, parece ter encontrado a saída da escrita para se manter no laço social. A invenção do seu método do lápis lhe ofereceu um novo recurso frente ao seu “dito-esquizofrênico, tomado sem o recurso de nenhum discurso estabelecido”18.

Simone Bianchi: Você demonstra nos dois capítulos como a escrita, às vezes tão simples e estranha de Walser, ilustra a teoria da dupla escrita no ensino de Jacques Lacan.

Philippe Lacadée: A lição clínica de Walser mostra como o seu modo de escrita é também uma verdadeira lição clínica sobre o gesto da escrita e da teoria da dupla escrita, contida no ensino de Jacques Lacan como Jacques-Alain Miller soube nos demonstrar. O método do lápis esclarece essa teoria da dupla escrita como restauração do sentido mas, também do significante e do saber. O significante pertence à palavra. O significante, em sua natureza, não é senão que o suporte fônico do sentido.A posição subjetiva de Walser é sua relação com a sonoridade do significante e a fonação. O significante, antes de tudo, é um fenômeno de fonação, e é a isso que Walser é muito sensível. Se sua escrita de pluma já tinha valor de sintoma para ele, o método do lápis e a escrita miniatura que se deduz, tem valor de sinthoma para nós.

Simone Bianchi: Enfim seu livro presta homenagem ao poeta como aquele que está à frente da psicanálise.

Philippe Lacadée: É nisso que o poeta, por estar à frente da psicanálise, nos esclarece: sua escrita miniatura, radicaliza de algum modo, os dois modos da escrita, ou seja, o significante e a letra; ela marca a distinção entre a escrita que não fala para ele e o desenho da escrita miniatura.

Tradução: Simone Bianchi.

1 Essa entrevista foi publicada na Revista Horizon n°55, Paris, Junho 2011.
2 Carta, 15×10 cm, do redator literário da Neue Zürcher Zeitung, Capa com micro escritas a lápis de Robert Walser em 1932. Courtesia de Robert Walser Archive, Bern e Cortesia do New Directions and Christine Burgin
3 Lacadée P, Robert Walser, le promeneur ironique. Enseignements psychanalytiques de l’écriture d’un roman du réel, (Préface de Philippe Forest), éditions Cécile Defaut, 2010.
4 Walser R., L’institut Benjamenta, Paris, Gallimard, L’imaginaire, 1960, p.33.
5 Lacadée P., L’éveil et l’exil, Enseignements psychanalytiques de la plus délicate des transitions, Nantes, Editions Cécile Defaut, 2007, p.37.
6 Walser R., Dimanche à la campagne, cité par Peter Utz in Robert Walser, Danser dans les marges, Genève, Editions Zoé, 1998, p.265.
7 Walser R., Le territoire du crayon, Microgrammes, Carouge-Genève, Editions Zoé, 2003, p.44.
8 Walser R., Le brigand, Paris, Folio, Gallimard, 1994, p.164.
9 Walser R., Walser à propos de Walser, Nouvelles du jour, Carouge-Genève, Editions Zoé, 2000, p.46.
10 Benjamim W., Robert Walser, Œuvres II, Folio Essais, 2000, p.156.
11 Walser R., Le territoire du crayon, op. cit., p.103.
12 Walser R., Walser à propos de Walser, Ibid.
13 Walser R., Les enfants Tanner, Paris, Gallimard, Folio, 1985.
14 Walser R., Le brigand, op. cit., p.74.
15 Walser R., Le territoire du crayon, op. cit., p.35-36.
16 Walser R., Les enfants Tanner, op. cit., p.276.
17 « Les mots que je m’apprête à prononcer ici ont leur volonté bien à eux », in Le territoire du crayon, op. cit., p.44.
18 Lacan J., « L’étourdit », Autres écrits, Paris, Le seuil, 2001, p.474.
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