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Autor: Philipp Trubchenko- Imagem: https://unsplash.com

Da maconha ao “campão”: as palavras como invenção

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Autor: Philipp Trubchenko- Imagem: https://unsplash.com
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https://unsplash.com
Bárbara Snizek Ferraz de Campos[1]
Renata Silva de Paula Soares[2]

O Laboratório Ciranda de Conversa[3] foi solicitado para realizar conversações com a turma de 5° ano de uma Escola Municipal de Curitiba. Em um primeiro momento, as professoras da turma foram escutadas, trazendo inúmeras queixas, que variavam de dificuldades de aprendizagens à negligência, drogadição nas famílias e violência sofrida pelos alunos no ambiente social e familiar. O relato retratava a experiência da infância dentro de uma favela organizada, grande parte, em torno do tráfico de drogas e da violência. Relatavam a grande dificuldade em lidar com a agitação e a agressividade dos alunos, bem como o que suscitou a procura pelo Laboratório: um acontecimento insuportável para as professoras. Três alunas, Kika, Ana e Maria haviam sido flagradas fumando maconha no banheiro, durante o contraturno. Ou seja, mesmo em uma comunidade centrada no tráfico, a escola se propõe a ser um lugar de proteção, um refúgio. O ideal é que as drogas não contaminem a escola e a primeira infância, mas foi necessário um evento que furasse a barreira do ideal da escola.

Já nas apresentações, as meninas demonstram desconfiar do motivo pelo qual o Laboratório foi chamado, pois contam que aprontaram demais e não podem mais frequentar o contraturno. Contudo a conversação inicia com as crianças falando sobre o uso do celular. Um dos meninos toma a palavra: “eu não sei a hora de sair do celular, mas minha vó fica a noite toda namorando no celular. Fica de conversinha: oi querido”. Quando pontuamos sobre a dificuldade da criança em se regular sem um adulto que se responsabilize por lhe impor um limite, uma aluna diz que às vezes é a própria criança que tem que dizer: chega! Nesse momento, as crianças consentem com a oferta da palavra e não mais se colocam, apenas, a partir da agitação de seus corpos. As crianças que resolviam seus impasses com chutes, empurrões e socos, ousam falar sobre seu desamparo diante da inconsistência do Outro. Miquel Bassols[4] aponta que, da perspectiva lacaniana, devemos nos aproximar e escutar as crianças como sujeitos que podem se fazer responsáveis por suas experiências de gozo, e não apenas como objeto de gozo do Outro. Nesta ideia está o centro do que é uma invenção para a criança, tornando a elaboração de um saber inédito possível. Também está o cerne do CIEN, que ao oferecer o dispositivo da palavra às crianças, aposta em seu consentimento com o dizer.

Autor: José Fernando Carli Imagem: abstract-color https://pt.freeimages.com/
Autor: José Fernando Carli
Imagem: abstract-color
https://pt.freeimages.com/

Em uma conversação depois, um dos alunos diz: “eu sei o esconderijo de vários maconheiros”, e o resto da turma nos conta que “moiô”, “XL” e “cerveja” são gírias que funcionam como senhas, usadas também pelas crianças, para anunciar a chegada de policiais. Não mais no lugar passivo de vítimas do tráfico, mas como participantes da dinâmica da comunidade, as crianças seguem falando sobre seus encontros com a violência. Escutamos uma criança contar que a mãe limpou sangue de tiro na parede de sua casa, outra relatar que a polícia em uma operação, disse para ele: “sai da rua filho da puta”, e que ele, sabendo que não se provoca policiais, não respondeu. Todos têm uma história que envolve violência, armas, sangue, briga ou morte para contar. Demonstram conhecer e seguir os códigos do local e como se comportar para evitar conflitos e perigos, quando os embates acontecem. Já se mostram capazes de falar a partir de seus lugares de sujeitos em meio a uma estrutura social tão organizada em torno do tráfico. Logo em seguida, nos contam que na escola existem maconheiros de 12 anos. Ana parece bastante nervosa, fazendo sinal de silêncio para os colegas. Quando diz: “moiô” aos colegas, perguntamos: “moiô, Ana?” Kika chega bem nesse momento, escuta e faz cara de susto. Todos riem. Pontuamos que já entendemos que três meninas da sala fumaram maconha no banheiro, mas que ninguém vai nos contar quem foi, porque não se cagueta ninguém. Assim é que são as coisas na Vila. Kika diz: “fui eu, a Ana e a Maria. Eu acendi e já apaguei porque a tia chegou. Deixei no bolso e me levaram para a diretoria”. “Depende do lugar que você vai fumar, não dá nada. Aqui na escola deu”. No término dessa conversação, Kika se dirige a uma das participantes, pede para conversar separadamente e conta sobre impasses de sua existência.

É possível perceber um desajuste das identificações que deram lastro aos sujeitos[5]. Dar a palavra a garotos de uma Vila, “vítimas” do tráfico, para que pudessem falar de sua relação com o tráfico, sem pretensão educativa, foi a verdadeira aposta no dom da palavra e no alcance do dispositivo das conversações. A partir desse momento, as crianças, em uma clara mudança de posição, passam a dizer que estão “mais favoráveis” e a nos contar que o campeonato de futebol da escola vinha tomando uma importância central para a turma. A escola é localizada ao lado de um campo de futebol muito importante na comunidade, o “campão”, e eles discorrem sobre a importância de conseguirem jogar uma partida por lá. Enfim, eles estão falando da descoberta de possibilidades para a agitação de seus corpos. Há algo a ser feito com esses corpos que se chocavam indiscriminadamente com a violência.

Em uma das nossas últimas conversações, um dos meninos conta como controlou sua vontade de bater no irmão mais novo, trancando o menino no armário. Outro diz que está com mais paciência: “antes se tinha um empurro eu já brigava, agora eu converso, peço desculpa”. Quando um menino dos mais briguentos da turma diz que: “faz uns dois mês que não brigo”, outro colega retruca: “ele briga falando”. O menino traz, então, um saber inédito: “às veiz xingamento dói mais que tapa na cara”. As crianças mudaram sua relação com a palavra e entenderam que falar faz diferença, pois, ao mesmo tempo que pode doer mais do que um tapa na cara, a palavra pode lhes trazer um novo sentido à vida. “Um ganho de saber que abre para propostas inéditas, trazendo um a-mais de vida ali onde reinava a pulsão de morte.[6] Assim, temos a invenção dessa turma, feita de palavras que valem muito, que às vezes doem, mas que valem a pena. Quem sabe, a invenção de maneiras de viver a vida, que como as partidas de futebol no campão, valham a pena serem vividas.

 


[1] Psicanalista, Especialista em Saúde Mental, Psicopatologia e Psicanálise – PUC/PR, Mestre em Antropologia Social – UFPR. barbarasnizek@gmail.com. Participante do Laboratório Ciranda de Conversa/CIEN-PR
[2] Psicanalista Praticante, Correspondente da Delegação Paraná – EBP,  renataspsoares@gmail.com. Coordenadora do CIEN-PR
[3] O Laboratório Ciranda de Conversa realiza conversações com os profissionais que atuam em instituições escolares, assim como com as crianças e adolescentes, possibilitando que coloquem em palavras as situações de impasses e mal-estar. Seus participantes são Andréa Neves, Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Eugênia C. Souza, Flávia Cera, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Suely Poitevin, Stephanie Abrão Gorte, Valéria Beatriz Araujo, Willie Anne Provin.
[4] Bassols, Miquel (2017) Trauma e Real, o que as crianças inventam. pg. 53, 56. In. Brown, Nohemí, Macêdo, Lucíola, Lyra, Rodrigo. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017
[5] Laurent, Éric (2017) Retornar à definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual. pg 44. In. Brown, Nohemí, Macêdo, Lucíola, Lyra Rodrigo. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.
[6] Rêgo Barros, Maria do Rosário Collier. A Prática Interdisciplinar do CIEN. pg. 111. In. Brown, Nohemí, Macêdo, Lucíola, Lyra, Rodrigo. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.
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