Héteros: o que faz furo?

Autor: Gong Ty Imagem: https://burst.shopify.com/
Autor: Gong Ty
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Franciele Gisi M. de Almeida[1]
Anna Luiza de Almeida Silva
Vânia Brito Gomes[2]

O Laboratório Digaí-Escola trabalhou em seus encontros os limites e possíveis efeitos de uma Conversação em três tempos ocorrida no Ensino Médio Técnico de uma Escola Federal situada na região metropolitana do Rio de Janeiro. Estas conversações se deram a partir de um problema ocorrido em uma turma com a criação de um grupo de whatsapp autodenominado “héteros”. Um aluno participante desse grupo resolve contar aos colegas sobre as imagens e comentários ofensivos que estavam sendo feitos a respeito deles, pois “passaram do limite”. O grupo do qual falavam era composto de meninas (uma delas lésbica) e um menino gay, em sua maioria negros. Havia comentários ofensivos sobre o fato do menino ser gay, sobre a aparência das meninas e referências a que fossem agarradas a força.

Essa situação gerou comoção na escola e culminou em reuniões da equipe pedagógica com professores, alunos e pais dos alunos. Constatado o impacto do ocorrido nos próprios participantes do grupo e a decisão de tratar a questão no âmbito da escola, produziu-se como primeira resposta um imperativo superegóico de “tudo dizer” e uma expectativa de reparação através de pedidos de desculpa. No entanto, uma assistente social percebe o excesso que estava se produzindo ali e faz um corte na reunião da equipe pedagógica com a turma, apontando que haviam chegado a um limite e que agora isso poderia ser tratado comigo, psicóloga da escola, quando retornasse das férias. Ao voltar, ouço estes relatos e a avaliação de alguns professores e da equipe de que a questão havia se resolvido, não sendo mais necessário falar sobre o assunto. Apesar disso, alguns alunos me vêm dizer que havia coisas a falar e proponho, então, alguns encontros.

Nas discussões do laboratório, localizamos um momento inicial importante da conversação na fala de uma das meninas alvo das ofensas, de que gostaria que os colegas falassem, cada um, sobre o que ocorreu, pois sua imaginação proliferava ao se perguntar: “por que eu?”. Mesmo que esta pergunta remetesse a algo de sua fantasia e não pudesse ser respondida inteiramente na conversação, ela abriu questões importantes. Foi um convite a falar fora do imperativo de confissão e perdão, um convite a elaborar um saber sobre o que ocorreu, no um a um.

Os meninos do grupo “héteroscomeçaram a dizer que não sabiam o que acontecera, não se reconheciam no que estava escrito nas mensagens, “saiu do controle”, repetiam. Aqui constatamos uma dimensão de gozo que pode se revelar nas manifestações de violência dos adolescentes, como nos aponta J-A. Miller[3], ao indicar que nem tudo é sintoma a ser interpretado.

Aponto como algo importante o fato dos meninos não se reconhecerem naquelas ofensas. Um deles diz que estava em silêncio até ali porque constatava que não poderia desfazer o que havia feito, então optou por ficar em silêncio até que tudo passasse. Pontuo que se não havia como desfazer, havia algo a falar, inclusive a partir do que ele não sabia. E assim eles falam mais um pouco, principalmente os alunos alvo do grupo. Os participantes do grupo “héteros falavam com mais dificuldade.

Autor: Andrew Beierle Imagem: abstract-utility-cover https://pt.freeimages.com
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Num segundo momento, o aluno e a aluna que foram alvo principal das ofensas apontam como causa para o que ocorreu um desejo não assumido dos meninos por ele (que é gay) e uma inveja dela (que é lésbica) porque ela saberia como se aproximar das meninas. O manejo desse momento foi difícil porque apesar do tom ser de brincadeira entre eles, havia também muita agressividade e alguns comentários obscenos. Fui tentando cortar para que a conversação seguisse e para dar abertura para que outros falassem. Aponto para o fato de que a sexualidade é uma questão para todos. Eles concordam, muitos riem. Um deles fala no grupo: “eu nunca transei, grande coisa”, mais risadas. Quase um alívio, pois aparece para todos o óbvio que até ali se esforçavam para evitar.

No terceiro encontro, há menos tensão entre eles. Contam que algumas conversas têm acontecido entre alunos depois da aula e estão se acertando, outros não vão mais se falar, segundo explicam. Alguns alunos me procuram depois da aula. Na conversação uma aluna conclui: “já está bom, o que tínhamos para resolver aqui, se resolveu, agora cada um lida com suas questões”. Concluo neste ponto.

O que pudemos extrair no Laboratório foi como a criação desse grupo de whatsapp pode ter vindo em resposta ao embaraço destes alunos com a própria sexualidade, a partir do encontro com o estilo afirmativo daqueles que falavam abertamente de sua sexualidade e das soluções que encontraram.

Localizamos que a conversação produziu furos na consistência destes grupos. Os meninos que precisaram se afirmar como “héteros” marcaram uma diferença com “homofóbicos” e puderam falar a partir do não saber sobre o excesso e a violência que havia se produzido naquele grupo. A aluna e o aluno, principais alvos das ofensas, puderam reconhecer que “às vezes também exageram”, ao contar de suas supostas aventuras sexuais ou nas provocações aos colegas, se implicando assim no estilo singular que assumem diante das situações difíceis que encontram. Essa posição não desconstrói seu modo próprio de estar no mundo, mas permite um deslocamento do lugar de vítima, que aquela situação poderia cristalizar. Apostamos que a conversação produziu algumas brechas para que algo retornasse como questão para cada um sobre o embaraço com a própria sexualidade.

 


[1] Psicóloga da escola, responsável pela conversação e psicanalista, participante do Laboratório Digaí-Escola.
[2] Psicanalistas, participantes do Laboratório Digaí-Escola, do qual fazem parte: Mirta Fernandes, Bernadete Mara, Lucia Thomaz, Gricel Osorio Hor-Meyll, Marcia Crivorot e Cleber Cruz.
[3] Miller, J. A. “Crianças violentas”, in Opção Lacaniana 77, agosto 2017.