HISTÓRIA DO CIEN BRASIL

Autor: Thom Bradley Imagem: electric-skateboard-in-the-sun https://burst.shopify.com/
Autor: Thom Bradley
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O Contexto:

Rio de Janeiro, 2011. Uma experiencia de um laboratório do CIEN contextualiza a época e testemunha efeitos de uma conversação inter-disciplinar realizada em uma escola pública, a partir da demanda de um ator e professor de teatro.

O texto:

 “Aceleração”  – ou corpos que agitam

Ana Martha Wilson Maia e Duda Ribeiro
Laboratório “A criança entre a mulher e a mãe”

“Estou com um trabalho em um colégio e preciso de você. Está sendo muito difícil trabalhar com estes adolescentes. Eles não respeitam limites”.

O convite do ator, diretor e professor de teatro foi imediatamente aceito, afinal a psicanalista e o ator já haviam trabalhado juntos num Projeto[1], e esta nova oportunidade se transformou em uma das mais ricas experiências decorrentes da proposta inter-disciplinar do CIEN. Este texto apresenta alguns momentos das conversações realizadas com o objetivo de transmissão de efeitos deste dispositivo.

Ao longo da história, as modificações no discurso do mestre promoveram mudanças no laço social e novos sintomas apareceram nesta época a que Miller (2005) se refere como o tempo do Outro que não existe, daqueles que não se enganam com o Nome do Pai e com a existência do Outro. Deste modo, o sujeito se encontra imerso nos semblantes e o simbólico já não pode organizar a civilização nem a experiência analítica, como nos tempos de Freud ou da primeira clínica lacaniana.

Referindo-se à expressão freudiana, Miller (2004a) aponta que os sujeitos contemporâneos estão desorientados desde a dissolução da “moral civilizada”. Os pós-modernos e os hipermodernos, os desinibidos e os neodesinibidos… todos estão desamparados, sem bússola, sob a ditadura do mais de gozar que devasta a natureza, acaba com o casamento, dispersa a família e modifica os corpos, diz ele. A inexistência do Outro ecoa nos impasses com que os profissionais dos Laboratórios do CIEN se deparam atualmente, em suas práticas cotidianas, inseridos nas áreas da saúde, da educação, da justiça e da assistência social.

Corpos que agitam

Da queda dos ideais e dos representantes de autoridade decorre a fragilidade da figura do professor, evidenciada nas escolas e universidades.

“A turma que escolhemos tem nos dado muita preocupação. Eles têm entre 12 e 16 anos, repetiram um ou mais anos e são dispersos, agitados” – nos relata a diretora do colégio. “Nós tivemos que criar uma turma para eles e demos o nome de turma da Aceleração porque estão atrasados. São os nossos piores alunos”.

A psicanalista pergunta quem são estes adolescentes. Moram nas comunidades próximas ao bairro em que se localiza o colégio, favelas conhecidas quase que internacionalmente por meio do cinema: Rocinha, Vidigal e Cruzada São Sebastião. Alguns são filhos de nordestinos e de outros pais que vieram para o Rio de Janeiro em busca de melhores salários. Eles convivem com sérios problemas relacionados ao tráfico de drogas e segundo a diretora, por terem se desiludido com o “sucesso intelectual” destes filhos que geralmente são os mais velhos da prole, os pais “desistem” deles e os destinam à função de “olhar” os mais novos. Estes jovens começam a trabalhar cedo em subempregos e sem uma mínima escolaridade, visto a acirrada competição do mercado, dificilmente ascendem de cargo. Assim, a turma Aceleração se circunscreve numa temporalidade, são os atrasados e, numa forma de segregação: desde o lugar na família, o sujeito aí é um resto, o pior, com o que não se sabe o que fazer.

As aulas de teatro se iniciam. Com a dificuldade esperada, o professor se apresenta, expõe o que deseja obter com as aulas e como serão encaminhadas. “Faremos uma Leitura de Peça”, propõe ele. Entre moças e rapazes, os adolescentes não sossegam: tapas, puxões de perna, um derruba o outro, chave de pescoço, gritos e correria. Dois ouvem MP3, cada um com uma parte do fone de ouvido, como se nada houvesse. As moças conversam ou se jogam no chão, lutam, em uma mistura de disputa e sedução. O professor eleva a voz, repete que ninguém é obrigado a participar. Consegue fazer com eles dois exercícios de improvisação. A psicanalista é apresentada justamente como uma psicanalista que irá participar deste trabalho e alguns se aproximam para saber um pouco da “professora”, forma como se dirigem aos adultos no colégio. Ela passa depois a ser chamada de Ana. “Pode?” – perguntam os alunos. E assim, uma diferença é marcada, Ana não é uma professora e Duda é um professor de teatro. Que consequências decorreriam disto?

Antes do início da segunda aula, a psicanalista conta que a turma foi apresentada para ela e para ele como a turma Aceleração e pergunta se sabem a razão deste nome. “Nós todos repetimos”, alguns respondem. Ela continua: “É, foi o que nos explicaram, que estão atrasados. O que vocês pensam sobre isso? Proponho que possamos conversar um pouco sobre repetir, aceleração, atrasados, etc., em quatro encontros que acontecerão no horário das aulas de teatro”. E a aula começa, no mesmo ritmo, entre empurrões, socos, risadas, queixas. Quando conseguem parar e ouvir o professor, gostam dos exercícios e se divertem.

Estas aulas se baseiam em exercícios de dramaturgia selecionados para a adolescência. Muitas vezes em círculo, enfatizam a troca de olhares, o momento de prestar atenção no outro, a colaboração na construção da cena, desde o jogo do “fala o nome e troca de lugar”, ou o jogo do “sai quem sabe a hora certa” (um de cada vez), entre outros, até o Exercício do Palhaço que, surpreendentemente, eles adoram: “ele (o palhaço) tem que perder para o outro rir”, explica o professor. Estes adolescentes criam situações de humor sem nenhum mal-estar por terem que ficar no lugar do sem jeito, do que fracassa e desperta, por isso, muitos risos. Ao longo das aulas, repete-se o “atraso”. Um tempo é sempre perdido.

Foto: Brodie Vissers Imagem: skateboarders-onlooker https://burst.shopify.com/
Foto: Brodie Vissers
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“E se fosse diferente?”

Na primeira conversação, alguns alunos chegam com cara de contrariados, mas abrem o verbo quando a psicanalista pergunta “e aí, o que pensaram?”. Uma moça conta que a professora não gostava dela e nem ela da professora, porque detestava levar coques na cabeça e passou a matar aula. Outra diz que repetiu por “faltas justificadas”: madrinha de casamento de uma prima que mora na zona norte, sem dinheiro para as passagens, a mãe decidiu que ficasse na casa da tia até que o vestido fosse feito pela costureira. Mas como a prima mudou de costureira duas vezes, perdeu um mês de aulas. “Minha mãe foi falar com a professora, explicou que eram faltas justificadas”, diz certa de que foi injustiçada. Alguém pergunta: “mas que bobeira, você repetiu por isso?”. Outro aluno diz: “é a mimada da sala, os pais fazem tudo o que ela quer”. O professor de teatro pergunta o que ela acha de ter repetido o ano por estas faltas e a adolescente já não afirma com firmeza que foram justificadas.

Um aluno diz que “não conseguia escrever com letras de mãos dadas”, as letras cursivas, e a professora lhe dava listas enormes de frases para treinar. Um dia, cansado, disse a ela que não queria mais escrever, que não conseguia com esta letra. Muito brava, ela teria cravado as unhas em seu braço. A mãe fez sucessivas reclamações para a coordenadora, mas a situação ficou sem saída para ele.

Outro rapaz se lembra de um momento que teria sido decisivo: em uma das brigas com a professora, discutiram aos gritos e ela o empurrou pelos ombros. Como é muito alto, ao perder o equilíbrio, caiu por trás de uma mesa e só se recorda de ter impulsivamente reagido a socos.

Diversas são as versões vitimadas destes adolescentes que agem como se as consequências estivessem longe de suas responsabilidades com relação ao que fazem com seus desejos. Há um real em jogo, os corpos que agitam no colégio não são apenas os dos adolescentes desta turma. E esse real perpassa pelos alunos, pelos professores, pelos pais, pelo professor de teatro e pela psicanalista nas conversações. Os acontecimentos de discurso deixam traços no corpo (Miller, 2004b). O que se vê nesta turma são corpos que agitam.

O Outro mau, que persegue, é personificado na segunda conversação por uma determinada professora, a “X”. Descrita como má e severa, é culpada por todos pelas reprovações. Muitas histórias são relatadas, o professor faz algumas perguntas, pequenos comentários e a psicanalista termina lançando a questão: “mas alguns repetiram mais de uma vez, outros não estudaram com ela. Afinal, é sempre por culpa do professor que um aluno repete de ano?”.

A aula seguinte é bem confusa. Duas moças se xingam no pátio, brigam antes de entrarem no auditório em que são dadas as aulas de teatro. Um grupo se faz a favor de uma, enquanto a outra quer ir embora. O professor a acolhe e pede silêncio a todos. Contam que a professora “X” xingou a turma durante a exibição de um filme.

O nome da professora retorna na conversação. O professor pergunta se já ouviram falar de uma peça intitulada “A aurora da minha vida”[2] e resume para eles a trama. Um deles diz que com essa professora que tiveram, fica fácil fazer uma professora. “Mas a ideia não é fazer igual” – explica o professor. “E se fosse diferente?” – pergunta a psicanalista. Decidem criar os esquetes com uma personagem baseada nela, na professora “X”, mas inventando outras características, nome e soluções para cada um. A psicanalista corta a conversação. Eles ficam com o professor e escolhem seus personagens: o bagunceiro, o nerd, o chato, o dedo-duro, o comportado, o líder, o dorminhoco, a marrenta, o descolado, entre outros.

Uma contingência interrompe as conversações e as aulas no colégio, a implantação do projeto de pacificação do governo do Rio de Janeiro. Os moradores preferem aguardar os acontecimentos e os alunos não saem de casa no dia da aula de teatro. Há ainda feriados, o professor adoece e depois é a psicanalista que não deve ir porque a imunidade dele está baixa e pode pegar sua gripe. No retorno, volta a pergunta “por que será que dizem que vocês são atrasados?”, quando a agitação impede que a palavra tenha lugar. Algumas vozes dizem, em pontos diferentes da sala: “é que nós não conseguimos prestar atenção em nada”. Já não é por causa da professora “X”, trocam ideias o professor e a psicanalista, quando estão sozinhos, depois da aula.

O último encontro era também o último dia de aula para eles, embora todas as outras turmas já estivessem de férias. “De novo estamos atrasados” – diz um rapaz implicado nas conversações. Uma moça acrescenta: “era para termos ficado nesta turma seis meses, ficamos um ano!”.

“Qual o seu sonho?” – o professor propõe uma filmagem. Em círculo, deitados de frente para ele, os alunos se enfileiram de barriga no chão e contam: jogador de futebol, empresário, advogado, modelo, atriz, cada um inventa uma “história” com nome, idade, onde mora, para que estuda. Quando todos já haviam se apresentado, um se vira para o professor e pergunta: “e você, Duda, qual o seu sonho?” Desta vez, é ele que surpreende. “É poder viver cada dia, um após o outro, dando aulas, como estas que dei para vocês, atuando, dirigindo e estar com meus filhos e amigos”.

O professor que não sabia “impor limites para adolescentes” e se escondia por trás de um blábláblá, quando começava a discorrer infindáveis ensinamentos que ninguém parava para ouvir, foi encontrando uma forma diferente de se colocar ao longo das aulas e das conversações. “Eu fiz muitas cirurgias, um transplante de órgão, estou feliz por estar com vocês e termos finalizado este trabalho”.

A despedida se dá com palavras escritas à caneta nas camisas dos uniformes escolares, “marcando” no corpo uma “troca de desejos” com votos de Feliz Natal e felicidades no novo colégio. O tempo deles ali terminou. Não importa se aprenderam ou não, a lei não permite que permaneçam nesta turma. Eles têm que passar de ano. Uma máquina aparece para capturar este momento em imagens. Abraços, beijos, são tiradas muitas fotografias.

O tema do VIII Congresso da AMP, que acontecerá em Buenos Aires em abril de 2012, lança desde já uma série de questões a respeito da fragilização da ordem simbólica no século XXI. O empuxe à passagem ao ato está presente na busca desenfreada de satisfação, no gozo “prometido” pela ascensão do objeto a na civilização. Desta experiência relatada pelo ator e pela psicanalista, fica a pergunta: o que ocupa hoje o lugar do Outro que não existe na escola?

 


Bibliografia
Laurent, É. As paixões do ser. EBP-Bahia e Instituto de Psicanálise da Bahia. 2000.
Maia, AMW. “Esse Outro que me agita no seio de mim mesmo”, en-cena. V ENAPOL. Rio de Janeiro, 2011.
Miller, J-A. Uma fantasia. Conferência no IV Congresso da AMP. Comandatuba, Bahia. 2004 (a).
Miller, J-A. Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo. Opção Lacaniana nº 41, p.50. Dez/2004 (b).
Miller, J-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós. 2005.

[1] O Projeto “Vida, louca vida” foi realizado em um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico no Rio de Janeiro, em 2003 e 2004, coordenado por Ana Martha Wilson Maia que escreveu o argumento para o roteiro da peça com o título “Loucos somos todos nós”. O roteiro foi escrito por Roberto Cunha e Duda Ribeiro com a produção de técnicos da instituição. Dois pacientes escreveram um esquete e um outro fez o cenário. Além das aulas de teatro dadas aos pacientes durante um ano e meio, Duda Ribeiro dirigiu a peça. A experiência está descrita em: Maia, AMW. “Esse Outro que me agita no seio de mim mesmo”, en-cena. V ENAPOL. Rio de Janeiro, 2011.
[2] Junto com “No Natal a gente vem te buscar” e “Um beijo, um abraço, um aperto de mão”, esta peça de Naum Alves de Souza faz parte da trilogia dedicada ao tema memorialista que retrata a experiência de alunos e professores, em uma sala de aula nos anos 70, mostrando um sistema escolar repressor através da relação entre os personagens.