Zain: uma figura da indignação

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Maria Rita Guimarães

O Cine Cien abriu as atividades do Cien–MG, do primeiro semestre de 2019, com o filme Capharnaum, de Nadini Labaki[1], ganhador do Prêmio de Júri no Festival de Cannes de 2018. Sua narrativa contempla a pesquisa e o debate trazidos pela temática orientada pelo último Enapol em seu título: Ódio, cólera e indignação. A atualidade do filme não é apenas cronológica. Interessaram-nos, de forma especial, os problemas ali testemunhados. Estes correm no fio da navalha de um realismo documental e são aqueles que têm presença permanente no universo das experiências do Cien.

O diálogo do filme que nos inspira a trabalhar é aquele que acontece aos sete minutos da narrativa e em torno do qual o filme é organizado estruturalmente.

– Você sabe por que está aqui? pergunta o juiz.

– Sim.

– Por quê?

– Eu quero acusar meus pais.

– Por que você quer acusar seus pais?

– Por me trazer ao mundo.

Trata-se de Zain, com idade – suposta – de 12 anos. Nesse processo, ele é o autor da denúncia aos pais por “trazê-lo ao mundo”. Anteriormente, noutro processo, ele foi condenado à prisão por ter esfaqueado aquele que viria a ser o marido de sua irmã. Salvá-la daquele casamento arranjado, forçado, tendo ela apenas 11 anos, era seu projeto de vida. Figura de uma Antígona moderna, “a dor lhe servia como óculos escuros”[2], Zain comete a passagem ao ato desesperado pela causa fraterna: sua irmã a preço de galinhas. Sua figura exibe o profundo contraste entre o desenvolvimento físico mirrado e seu destemor na posição de sujeito em busca da possibilidade de restauração de uma frase/palavra na qual há um fora de sentido.

Acompanhando-o em sua trajetória, testemunhamos seu trabalho em responder à questão do que seria uma vida como vida digna e a elaboração de algo avesso à violência, à sua violência, mas também à violência do Outro. Podemos ler isso na passagem do tempo e nas mudanças de posições do sujeito entre dois atos por ele praticados, que destaco como relevantes; entre eles, uma travessia:

1º tempo: a passagem ao ato – tentativa de matar o cunhado – quando o sujeito desaparece na cena, nela restando como objeto a.

2º tempo: o ato de indignação conformado à ética das consequências, própria ao desejo, enquanto princípio da dignidade significante.

Adiantemos que sua acusação aos pais perante a lei é em razão de que seus pais não lhe concedem (e aos irmãos, pois o laço fraternal para ele é um valor sem igual) uma vida que seja vida reconhecível como humana. Não examinaremos os meandros teóricos passíveis de serem levantados pelos termos humanidade/desumanidade, sobretudo no mal-estar da civilização contemporânea. Sigamos Nadine Labaki, que nos pega pelas mãos e nos leva à fronteira mais impenetrável da pergunta sobre se aquela vida é vida que concerne à espécie humana. Rapidamente, podemos enumerar os pontos de degradação registrados pela cineasta:

1- Precariedade absoluta: sobrevivência rebatida à necessidade

O real da fome como pulsão de autoconservação – termos freudianos – impõe um aniquilamento da demanda, para dizê-lo de forma curto-circuitada. No entanto, para além da imperiosa busca de subsistência em pequenos e sórdidos “bicos”, Zain nos escancara a precariedade mais extrema: o anonimato do desejo do Outro. Não há Outro familiar, escolar, nenhum Outro social do qual receber a luz de um olhar. O sombrio da vida segue na servidão ao trabalho excessivo para a obtenção do mínimo do mínimo, a fim de não sucumbir à morte, o que exige transgredir, mentir e se envergonhar cotidianamente; tempo estagnado numa repetição sem futuro.

2- O aviltamento da preposição “sem”

Sem pátria (é um imigrante, mesma situação do ator mirim, que o interpreta). Sem papéis (família clandestina submetida ao ilimitado gozo do Outro em troca de míseros metros quadrados para se esconder). Sem nome (a primeira vez em que é chamado por Zain! foi na prisão).

Sem nome (demarca uma diferença essencial: já não se trata da indigência provocada pela exclusão/segregação reinantes na condição de sem papéis, como imigrantes: sem estatuto legal em outro território; portanto, sem trabalho ou acesso aos bens sociais como saúde e educação. Trata-se aqui da demissão de um pai que, embora capaz de uma transmissão, sucumbe ao exercício da paternidade e apenas consegue repetir o insuportável de sua vida tal como o “modo como fui criado”; isto é, “pessoas cuspiam em mim na rua; eles me tratavam como um animal”. Um pai, o qual acreditou que sua condição “homem” adviria com os filhos, que seriam sua “espinha dorsal”. “Mas eles me fuderam, partiram meu coração. Eu amaldiçoo o dia em que me casei”.

3- Insulto

Se Zain não é um nome pronunciado por seus pais, ele é substituído por “bastardo, inútil, pedaço de lixo” e outras injúrias.

Jacques Alain-Miller nos deu o matema do insulto:

(S(a))

–––––––––

(A barrado)

Tal fórmula, Miller nos esclarece, refere-se ao momento do desfalecimento do Outro como lugar dos significantes. Portanto, quando emerge o ser do sujeito como a e surge do fundo da língua um significante que marca o momento do impossível de dizer, “aí onde o próprio ser excede as possibilidades da língua” [3].

Por que excede as possibilidades da língua? Busco entendê-lo pelas palavras de Miller: “O insulto é uma tentativa para dizer a Coisa mesma, para que ela possa ser cernida como objeto α e, dessa forma, captar o Outro, isolá-lo, atravessá-lo em seu ser, em seu Dasein, na merda que é”[4]. Coagulado no insulto, eis a merda que Zain é como dejeto no mundo.

A tragédia Édipo em Colono “De preferência, não ter nascido”.

“Eu os acuso por me trazerem ao mundo” pode ser pensado como equivalente contemporâneo ao mé phunai de Édipo em Colono? Poderemos nos aventurar por este caminho, porque se sabe que o mé phunai se inscreve quando é descoberta a extensão do insuportável da vida:

“A Lacan, a paixão pelo nó borremeano, serviu para chegar a essa zona de existência, a mesma zona de Édipo em Colono, na qual se apresenta a ausência absoluta de caridade, de fraternidade, de qualquer sentimento humano”.[5]

Phunai é um verbo de duplo sentido: significa ser nascido, e mé phunai quer dizer não ter nascido. A tradução de Lacan, segundo versão brasileira dos seminários, varia: “De preferência, não ser”[6], “pudesse eu não ser nascido”[7] e “não ter nascido”[8], mantendo presente não somente a articulação do excesso de sofrimento e a possibilidade de nos maldizermos, mas também a de um caminho próprio, diferente de um destino:

“Desejar ‘não ter nascido’ não é o mesmo que querer morrer e também é diferente de querer cometer suicídio. Significa ter em conta a dificuldade de amar a vida. Freud não era ingênuo a este respeito: falava do ‘dever de viver’, não falava da felicidade de viver”.[9]

Zain, sem palavra e com seu destino de merda, ainda mantém seu sentimento de pertinência à espécie humana e sua recusa à vitimização social – posição de seu pai –, que o levam a apresentar sua indignação ao mundo.

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A indignação de Zain

No tempo de sua privação de liberdade – não mais que antes, mas agora com grades aparentes, exteriores a seu corpo –, aquelas da instituição prisional do Estado, Zain é arrebatado pela palavra do Outro.

Zain, por que você está ligando?

O que posso fazer para você?”

“Eu quero que os adultos me escutem”, responde.

Palavra inaugural de uma demanda: ser escutado. Em que esse ato de acusação aos pais, feito por Zain, pode ser tomado no campo da ética das consequências[10] e como um ato de indignação?

Éric Laurent definiu a indignação “como um sentimento experimentado como um valor diante de algo que atingiu outro valor. Há um toque de real, porém, sublimado, mais simbólico”[11].

Creio que se aproxima ao que foi assinalado anteriormente em referência ao princípio da dignidade significante. A indignação tomada por essa perspectiva – como princípio – indica uma categoria abstrata, válida para todo ser humano. Diferentemente dos demais termos que compõem o título do último Enapol, não se trata de uma paixão.

Qual a incidência de um sentimento de valor para Zain, um valor soterrado até o momento em que as ondas sonoras do rádio fazem ressoar e repercutir tal valor com as palavras: “Este relatório sobre injustiças contra crianças tocou profundamente nosso público. Você quer comentar sobre o que você acabou de assistir?”.

Para Zain – façamos a hipótese –, o sentimento, o valor de pertinência ao humano foi atingido de forma avassaladora: sua irmã morre por não poder receber cuidados médicos.

Não tinha documentos que lhe permitissem ingressar no mundo “dos direitos humanos”. Como se a dignidade pudesse ser relativizada e sujeita às normas burocráticas. Sabíamos dos infortúnios de Zain desde o início, mas, agora, com seu ato, ele nos mostra que o valor contido no sentimento da indignação não é um dado “ao humano”: é-lhe preliminar; daí, poder classificar-se como princípio o irredutível humano, o sentimento de pessoa em sua particularidade e singularidade.

Parece importante localizarmos a questão da singularidade do sujeito como sentimento requerido por Zain nas cenas em que reprova os pais, – e de forma dura o fez na visita de sua mãe na cadeia! – por trazerem mais um filho ao mundo. Seu pedido de que não mais trouxessem filhos ao mundo foi interpretado por muitos daqueles que escreveram análises críticas do filme como um posicionamento da cineasta totalmente equivocado, já que estaria sendo – também ela – segregacionista, ao afirmar, pela boca de Zain, que pobres não podem ter prole numerosa. Vemos, por tais interpretações, realizadas em nome do politicamente correto, um humanismo sem crítica, o silencioso movimento bem-intencionado, sem dúvidas, que favorece a causa do que, a partir de Lacan, chamamos a forclusão do sujeito.

 


[1] Ficha técnica: Nome: Cafarnaum. Nome original: Capharnaüm. Cor da filmagem: Colorida. Origem: Líbano. Ano de produção: 2018. Gênero: Drama. Duração: 121 min. Classificação: 16 anos. Direção: Nadine Labaki. Elenco: Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw e Nadine Labaki.
[2] Youcenar, Marguerite. Antígona o la elección. In Fuegos. Tradução Emma Calatayud 1. ed. Buenos Aires: Suma de Letras Argentina, 2005. p. 51-56.
[3] Miller, Jacques-Alain. Seminário El Banquete de los analistas. Curso (1989-1990) Orientação Lacaniana, ensinamento pronunciado no Departamento de psicanálise de Paris VIII. (Inédito). p. 54.
[4] Idem, Ibdem.
[5] Miller, Jacques-Alain. O real no século XXI. In Scilicet: um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p. 32.
[6] Lacan, Jacques. O seminário Livro 7: A ética da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1988. p.367.
[7] Lacan, Jacques. O seminário Livro 8; A transferência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1992. p. 295.
[8] Lacan, Jacques. O seminário Livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. 2016. p. 107.
[9] Huler, Susana. Nous ne comprenons pas les djihadistes lls ne nous comprennent pas non plus. Lacan Quotidien, 464. Disponível em: <www.lacanquotidien.fr>. Acesso em: 30 jun. 2019.
[10] Conforme Miller (2017, p. 98): “Só se pode referir precisamente o ato a suas consequências. […] Por isso, no instante de passar ao ato, na medida em que não é passagem ao ato, leva-se em conta a reação do Outro, o que diz e o que vai fazer” (Miller, Jacques-Alain Política Lacaniana. Compilação Silvia Tendlarz. Buenos Aires: Colección Diva, 2017).
[11] Laurent, Éric. Entrevista concedida a Ana Lydia Santiago (Parte 5). Boletim OCI#7. IX Enapol. Circulação por Veredas em 01/07/2019.