História do Cien Brasil

Íris Helena – Prêmio PIPA

Contexto: 

“O CIEN e a sua política: a aposta da conversação é uma aposta sobre o corte?” é um texto produto de trabalho realizado em cartel escrito em 2013. Ao comentar o que traz Lacan, no Ato de Fundação, que “para a execução do trabalho adotaremos o princípio de uma elaboração sustentada num pequeno grupo”, Miller destaca que o cartel é o meio para executar esse trabalho, e não o fim em si mesmo. E foi, então, esse meio que elegemos para iniciar o nosso trabalho, “investigativo”, movidos pelo desejo de saber o que era o CIEN – uma sigla de quatro letras, e “decifrá-las” apenas não era suficiente para iniciar o que avistávamos no horizonte. Era preciso o trabalho de elaboração, partindo do que se apresentava como questão para cada cartelizante, cujo resultado seria o produto de cada um.

Assim nascia o Cien na Bahia. Mas tudo começou num instante de ver. Foi em Salvador, na III Manhã de Trabalhos do Cien Brasil, cujo tema “Furando Etiquetas”, ao trazer reflexões sobre as questões e impasses que também vivenciávamos em uma Instituição de Saúde Mental, nos instigou bastante.

O nosso trabalho foi se construindo aos poucos. Fizemos o primeiro movimento com um Cine-Cien, em 2013, a partir do documentário Infância sob controle, e convidamos para o debate a colega Ana Martha Maia, enquanto membro da Comissão de Coordenação e Orientação do Cien Brasil.

O entusiasmo foi tomando conta de um grupo, e o cartel foi a maneira que encontramos para começar a trilhar o nosso percurso. Do cartel, não sem o seu produto, o de cada um, partimos para o primeiro Laboratório. Nesse momento fervilhante do Cien na Bahia chegamos a ter dois cartéis constituídos e, em seguida, dois Laboratórios.

“A Causa Freudiana não é Escola, e sim campo – onde cada um terá liberdade para demonstrar o que faz com o saber que a experiência deposita.” Esta frase de Lacan que está no seu texto D’Écolage nos permite fazer uma articulação entre a experiência do trabalho em cartel e a experiência do Cien, na medida em que ambas podem vir a recolher, quer seja na forma de um “produto”, ou de uma “invenção”, algo que será sempre próprio e singular de cada um.

É a partir deste contexto da História do Cien na Bahia, que os convido a ler o texto, produto de uma elaboração provocada por um imenso desejo de saber e fazer a experiência do Cien acontecer!

O texto:

O CIEN e a sua política: a aposta da conversação é uma aposta sobre o corte?

Mônica Hage Pereira

O Cien (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança) é uma instância internacional, ligada aos Institutos do Campo Freudiano, que foi criado em 1996 por Jacques-Alain Miller e é coordenado por Judith Miller. Lacan[1], no Ato de Fundação da EFP, define três seções de sua Escola: a seção de Psicanálise Pura, a seção de Psicanálise Aplicada à terapêutica e a seção de Recenseamento do Campo Freudiano. O CIEN está inserido nesta última, que tem como função, dentre outras, a de estabelecer uma articulação com as ciências afins. Funciona na forma de laboratórios de investigação, que elegem um tema de pesquisa, causando a conversa entre seus integrantes, geralmente profissionais de diversas disciplinas: médicos, psicólogos, juristas, professores, etc. O laboratório busca abordar, de forma inter-disciplinar, as dificuldades encontradas pelas crianças e adolescentes no laço social.

No cotidiano do trabalho institucional, quando o real se apresenta sob a forma de um impasse, o CIEN poderá propor um convite à conversação visando fazer acontecer a experiência inter-disciplinar. Temos aqui os três princípios do CIEN: o impasse, a conversação e a inter-disciplinaridade.

Pensando sobre as Instituições, com Laurent[2], vemos que elas “são necessárias a partir do ideal do dever humanitário. Mas, há que precisar que este imperativo moral, esta chamada ao universal, se impõe quando o discurso do mestre já não pode tratar uma contradição. As instituições recusam os nomes dos restos impossíveis de tratar. O “incurável”, caracteriza as instituições sanitárias, o “ineducável” o Ministério da Educação, o “incivilizável” o Ministério da Justiça…”

Desses “restos impossíveis de tratar”, quem se ocupará?

Esses “restos” fazem corte na rotina do trabalho dos profissionais, fixadas nos protocolos institucionais, deixando a experiência aberta, em suspenso, a um tempo de compreender.

O traço da política do CIEN é inserir a conversação nessa abertura, nesse intervalo.

A conversação é um dispositivo clínico, criado nos anos de 1990 por Jacques-Alain Miller, com a finalidade de abrir o campo da investigação ao diálogo da Psicanálise com outros discursos que incidem sobre a criança. Na conversação trata-se de uma “associação livre coletiva”.

Segundo MILLER[3] (2005):

[…] A associação livre pode ser coletivizada na medida em que não somos donos dos significantes. Um significante chama outro significante, não sendo tão importante quem o produz em um momento dado. Se confiamos na cadeia de significantes, vários participam do mesmo. Pelo menos é a ficção da conversação: produzir — não uma enunciação coletiva — senão uma associação livre coletiva, da qual esperamos um certo efeito de saber. Quando as coisas me tocam, os significantes de outros me dão idéias, me ajudam e, finalmente, resulta — às vezes — algo novo, um ângulo novo, perspectivas inéditas. (MILLER, 2005: 15-16)

Se na conversação não se trata de produzir uma enunciação coletiva, mas sim uma associação livre coletiva, da qual esperamos um certo efeito, como isso se dá?

Laurent[4] adverte que apesar da conversação ser instalada pelo “dom da palavra”, por não se tratar de uma tagarelice qualquer, é preciso saber que o corte terá lugar, e assim o gozo do blá-blá-blá ficará suspenso. Se, em 1953, Lacan propõe o termo o “dom da palavra”, em 1973 ele insistirá no fato de que não há necessidade de dar a palavra, porque o ser falante produz um falatório assim como a aranha tece seu fio e goza dele. Do “dom da palavra” à “palavra como parasita infernal”, é preciso estar advertido de que há lugares onde a palavra pode ser útil e eficaz, mas não se trata de uma “conversação amistosa” em que não há nada a temer.

Percebemos, assim, que a “aposta na conversação” implica que algo ficará suspenso. Afinal, é uma “aposta”. “Aposta” é um termo não muito próprio da psicoterapia, já que nesta “a aposta já está ganha de entrada”, afirma Laurent[5]. A psicoterapia sustenta-se na ideia de que falar sempre faz bem, alivia. Para a Psicanálise, “a primeira aposta é saber que ao falar alguém deixará de aliviar-se”.

Na conversação, não se trata de se deixar levar, mas de intervir para que o dizer possa desfazer o que foi feito pela palavra. Interferir para que cada um possa se escutar, mas respeitando o impossível de dizer de alguns.

Em “Função e Campo da Fala e da Linguagem”, Lacan[6] afirma que “a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito…e é no discurso que deve escandir-se a resolução delas”. Diz, ainda, que “uma escansão tem todo o valor de uma intervenção…e isso indica libertar esse termo de seu contexto rotineiro…” Concebe, assim, o ato analítico como algo que “dá a fala do sujeito sua pontuação dialética”.

Avançando na obra de Lacan, percebemos que o ato analítico, na forma de corte, vem liberar o significante do significado. Onde está S1 que se dirige ao S2, instala-se a função do corte. Enquanto corte, o ato analítico é capaz de fazer emergir a causa em jogo. O equívoco poderá dar um outro rumo, lá onde parecia já existir um sentido fixo.

Mas, de que corte se trata na conversação? E qual é o seu objetivo?

É preciso estar advertido de que quando estendemos o dispositivo analítico a grupos de palavra, o fim deve também estar definido. A associação livre também deverá ter um limite. Não se trata de propor uma roda livre, onde a palavra circulará livremente. Sabemos que existem identificações que lastram o sujeito e o objetivo das conversações não é o de produzir aí um desajuste. Mas, sim, apostar que podem livrar-se do gozo que os aprisionam. A função do corte na conversação será a de possibilitar um movimento nas respostas do sujeito. Isso é diferente de transformar, por exemplo, um delinquente em pastor. Há que se “reintroduzir a causalidade psíquica em todos os lugares onde ela é eliminada”, diz Laurent[7].

As conversações inter-disciplinares do CIEN permitem, segundo Judith Miller[8], “abrir espaços onde a subjetividade de cada um possa encontrar um lugar.” E elas se instalam quando já não se encontram invenções possíveis frente ao real. Apostar que um saber inédito possa surgir ali, em meio à opacidade da linguagem, é a aposta do CIEN.

 


[1] LACAN, Jacques. Ato de Fundação. Outros Escritos.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[2] LAURENT, ÉRIC.  Segregación y diferenciación. Revista del Instituto del Campo Freudiano, 6.
[3] MILLER, Jacques Alain. [et al]. La pareja e el amor: conversaciones clinicas com Jacques Alain-Miller em Barcelona. Buenos Aires: Paidós, 2005.
[4] Laurent, E. Retomar la definición del proyecto del Cien y examinar su situación actual. Presentado en el II Colóquio del CIEN, “El don de la palabra”. Publicado em português In: BROWN, N; MACÊDO, L; LYRA, R. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência: experiências do CIEN no Brasil. BH: EBP Ed., 2017.
[5] Idem. Ibidem.
[6] LACAN, Jacques. “Função e Campo da fala e da linguagem”. In Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998.
[7] LAURENT, Éric. op.cit. .
[8] MILLER, Judith. “Os corpos falam, como responder?”  V Jornada Internacional do CIEN. Rio de Janeiro. 2011.