O que a recusa à fala quer dizer? – Conversação sobre o acolhimento de um adolescente em um CAPS-AD.
Giselle Fleury
Laboratório Pipa Avoada*
O laboratório Pipa Avoada se dedica à investigação da criança e do adolescente que, no laço social, experienciam a relação com a droga, a violência e a vulnerabilidade social. Qual lugar para a droga na adolescência? Que lugar para o tratamento de adolescentes usuários de drogas? São duas questões que orientam atualmente nosso campo de investigação. Essas perguntas, lançadas como convocatória para uma conversação aberta entre os laboratórios do CIEN contou com a presença dos profissionais da equipe de um CAPS-AD, além de diversos outros, que atuam no campo da saúde mental e na educação infanto-juvenil, na rede de assistência municipal e estadual do Rio de Janeiro.
A proposta da conversação surgiu a partir de alguns impasses concernentes à prática com adolescentes usuários de drogas, onde algumas questões foram levantadas pelo grupo, a saber: a fragmentação das práticas de cuidado, a fragilidade da rede social do adolescente, a dificuldade em promover a adesão ao tratamento, além da crença de que diferentes técnicas para manejar a questão do abuso de drogas interferem na prática do cuidado. Há a proposta de se discutir a partir de um relato clínico a dificuldade do manejo, onde a questão centrou-se na recusa à fala por parte do adolescente em contraponto às demandas maternas, cuja queixa principal destacava o uso de drogas, atos de violência e o hábito de mentir.
A praticante, psicóloga do CAPS-AD, relata que André, 15 anos, é encaminhado à instituição pelo Conselho Tutelar. A mãe descobre que o filho fazia uso regular de maconha e acredita que os problemas enfrentados pela escola, de indisciplina e violência, que culminaram no seu desligamento, relacionavam-se com isso.
No primeiro atendimento, André se recusa a falar. Limita-se a dizer que não vai falar e que não quer estar ali. Inicialmente, a mãe é escutada, no entanto, mesmo com a recusa do filho em vir ao tratamento, ela o traz ao serviço. Certo dia, há uma briga entre eles na recepção, sob intervenção da praticante, a briga é apartada. Ele é convidado a entrar na sala e contar sua versão. Aceita o convite. Passa à fala: queixa-se de que a mãe sempre o culpa por tudo de errado em casa. Sente que é tratado de forma diferente em relação às suas irmãs mais velhas. Nega uso de drogas e relata que o afastamento escolar se deu por sua escolha e falta de interesse. A praticante lhe diz que o espaço dos atendimentos no CAPS-AD pode ser o de falar como se sente. Ele aceita a oferta e passa a ser acompanhado individualmente.
Após uma solicitação da mãe de um atendimento a sós com a praticante, André volta ao silêncio: “Se ela quer falar, que fale no meu lugar”! Passa a ter com a praticante uma postura desafiadora e arrogante. Em um outro momento, diz: “está tudo bem, estou aprendendo a deixar passar”. Questionado sobre como seria isso, responde: “estou te dizendo o que eu acho que você quer ouvir”. Passa a mais um longo período de recusa à fala. Os atendimentos prosseguem em completo silêncio. Na sequência, sua mãe vem sozinha ao serviço. Nos conta que André queixa-se agora da praticante, lhe é devolvido que isso precisa ser conversado na presença dele. Mãe e filho se afastam do serviço.
Algumas questões circulam na conversação: qual o papel do CAPS-AD neste caso? Como manejar o caso de um adolescente na instituição para tratamento de drogas, cuja demanda de tratamento vem da mãe? Era a droga a questão em jogo? O que a recusa à fala quer dizer?
Alguém pontua que a presença da praticante da psicanálise na instituição de saúde mental possibilitou que a recusa à fala por parte de André não fosse interpretada pela equipe como recusa ao tratamento. Laurent (1999, p.13) nos adverte que o analista não pode cair no “buraco dos ideais”. Sustentar a posição de analista a partir de um “dizer silencioso” pode contribuir para denunciar que “a promoção de novos ideais não é a única alternativa”, o que é demonstrado por este sujeito. Assim, a instituição pôde funcionar como um terceiro, que, em um primeiro momento, passa a exercer uma função de acolhimento e de mediação das queixas maternas para, posteriormente, dar espaço ao sofrimento experienciado pelo adolescente. Acolher o silêncio como demanda foi o que possibilitou a entrada deste adolescente no tratamento.
Durante o tempo em que permaneceu em atendimento, foi recolhido pela equipe que André não sustenta os ideais sociais; não pode estar na escola regular, não tem boa relação com sua família nuclear, pratica pequenos atos de violência, furtos e roubos na região onde reside, além de fazer uso regular de maconha. A praticante localiza em uma fala de André a possibilidade de implicá-lo no tratamento e nos conta que foi a afirmação da negativa – “Eu não sou um drogado”! – o que permitiu que André formulasse um pedido de ajuda, ao se identificar com o significante “drogado”, ao mesmo tempo em que o recusa.
Para a equipe, o manejo a partir do desejo de escuta permitiu encontrar um ponto possível de trabalho neste caso. No entanto, localizar o impossível para cada caso, mantendo pulsante a interrogação de como se orientar diante destes fenômenos de “gozo mau”, é o que, de acordo com Laurent (2017), “permite favorecer o despertar à responsabilidade do gozo que retorna a cada um, das proibições universais que outros saberes enunciam”.
Na conversação, ao circular a palavra entre os outros saberes e profissionais externos à instituição, inventa-se um novo espaço, vazio de saber, permitindo que as questões iniciais ecoem fora dos termos “tecnocráticos” produzidos nas instituições. Ao final da conversação, ficamos com a reflexão de que não existe um lugar “ideal” para tratar o adolescente usuário de drogas, seu lugar de cuidado deve ser construído e orientado para e pelo sujeito.