CineCien: XXY, nem ele, nem ela: ?
Maria Rita Guimarães
A perspectiva pela qual o filme XXY, – em debate no encontro do CINECIEN–MG em 17/8/2016 – nos interessou, foi a de retratar, justamente na adolescência, os impasses trazidos pela sexualidade, supostamente complexificada por uma anatomia “completa”, ou seja, sem um destino anatômico que marcasse- mesmo imaginariamente- , uma identidade como ele ou ela.
XXY é um filme argentino, ganhador de vários prêmios, realizado por Lucía Puenzo, em 2007. A estratégia da narrativa pode ser chamada, não por acaso, como aquela de um “segredo” que vai se revelando ao longo da mesma. Alex, adolescente de 15 anos, possui os caracteres primários masculinos e femininos: a intersexualidade é seu segredo assim como o de sua família. À parte o equívoco do título – XXY refere-se à Síndrome de Klinefelter e das polêmicas provocadas por tal confusão -, o argumento mostra um casal dividido em relação ao “problema de eleição do sexo” d* adolescente, mas, para além desse aspecto, nos expõe a perguntas sobre o sujeito e sua relação com a ambiguidade sexual, com o sexo e o amor. Aceder a essas questões será um movimento lento, tal como parece ser a intenção da cineasta: um peixinho hermafrodita no gozo de sua inútil beleza, desenhos de bonecas providas do órgão masculino, enfim, metáforas desenhadas pela câmera. Logo, a repentina pergunta de Alex a Álvaro, no primeiro instante em que se viram: “Você quer transar comigo? Nunca transei na vida”.
Álvaro é igualmente adolescente, filho do casal que chega como visita, com um propósito claro: na condição de cirurgião, o pai de Álvaro tem a tarefa de convencimento do pai de Alex dos benefícios da cirurgia plástica “normalizadora”. Chegará a fazê-lo? E a cirurgia é de ordem trans (transexuais, transgênero – que querem mudar de um sexo a outro) ou de ordem intersexual (na solução da ambiguidade)? São dois campos distintos. No filme, trata-se de problemas com a diferenciação do sexo: no início apenas sabemos que há remédios no banheiro para neutralizar os sinais de virilização. Sejam problemas com a ambiguidade ou aqueles da identidade de genêro, ambos indicam a problemática da sexuação.
Quem define, em tempos atuais, o sexo de um sujeito nascido intersexual?
A prática médica ocidental de “corrigir” precocemente, via cirurgia, o recém-nascido portador de ambiguidade sexual assim que estudos fisiológicos, hormonais, morfológicos, determinam qual o sexo que melhor lhe conviria, passou a ser questionada pelas associações de defesa dos direitos dos intersexuais, a partir dos anos 90. Elas se colocam a favor de que um sexo seja atribuido ao recém nascido, porém que lhe seja reservado o direito de eleição, quando adulto.Portanto, nada de cirurgias, consideradas mutiladoras. O debate se torna mais árduo porque os argumentos daqueles que exercem a medicina nesse campo respondem com o sofrimento emocional e psíquico das famílias e que a decisão pela não determinação do sexo via ciência seria uma desvalorização desumana daquele sofrimento. A tréplica nesse debate, feita pelas associações, é que muitas vezes a definição do sexo pela ciência propicia uma futura discordância experimentada pelo sujeito. Haveria, nesses casos, uma reivindicação à harmonia e plenitude sexual a partir dos direitos humanos? Por outro lado, há relatos de experiências nas quais, a posteriori, surgem demandas de novas cirurgias de reversão do sexo atribuido, numa realização da suposta harmonia.
XXY propõe uma pergunta essencial: na intersexualidade há um forçamento à eleição? A narrativa funciona como tentativa de resposta. A família de Alex sai de Buenos Aires, onde el* nasceu e busca refúgio numa isolada vila da costa uruguaia – lugar não nomeado – “para fugir de que todos os idiotas do mundo se pusessem a opinar”. O pai, biólogo marinho, acredita que a leitura de livros como “A origem do sexo” ajudará a filha a saber daquilo que se passa com ela. Com um posicionamento ortodoxo e proteção desmesurada à filha “que é uma menina perfeita”, ele não cede ao desejo de sua mulher de que se retire da filha “o que sobra”, para que ela siga sendo uma mulher.
O que “sobra” no corpo de Alex – e aqui não há como não se lembrar de Alexina B, um dos nomes de Herculine Barbin, resgastada das trevas por Michel Foucault – é o órgão de gozo na passagem ao ato que * personagem pratica, no forçamento do ato sexual com Álvaro. Para esse jovem, o impacto é proporcional à violência exercida por Alex, e é irradiado em duas direções: 1- acreditara que transaria com uma mulher e, não sendo isso o que acontecera, 2- experimenta um gozo novo, que o divide.
Este momento do filme é exemplar como ilustração do traumático que é, para o ser falante, confrontar-se com o gozo próprio, enfrentar-se a esse real em que as palavras não socorrem: a irrupção de choro para os jovens revela a dimensão de desamparo a que sucubem no momento em que “deixam de sonhar”, como disse Lacan. Talvez nos seja permitido perguntar se, através das interpretações juvenis, o que se quer demonstrar é que se trata de ir mais além da intersexualidade e que a eleição do sexo situa-se mais além da identificação a uma categoria homem/mulher: o que está em jogo, subjetivamente, é a eleição do tipo de gozo.
Sexuação:
Em determinada cena, Álvaro pergunta a Alex: “Que você é? Homem ou mulher?” e obtém como resposta: “Sou as duas coisas”. Perplexo, diz: “Isto não pode ser!” e ouve: “Você vai me dizer agora o que posso ou não ser?”Não, Álvaro não poderia mesmo dizer a Alex o que poderia ser ou não, porque a sexuação, tal como Lacan nos disse, é outra coisa do que, na linguagem comum, falamos em “assumir-se” ou “sair do armário”. A assunção, para a psicanálise, diz respeito à implicação subjetiva do sexo a partir de uma inscrição a respeito do significante fálico – há a possibilidade de recusa dessa inscrição! – efetuando-se uma significação no encontro do corpo com aquele significante. Vale lembrar o corpo além de sua condição de imagem no espelho, ainda que seja em relacão ao olhar do Outro, mas tomá-lo como corpo vivo, erógeno, corpo de gozo. As fórmulas que Lacan chamou de sexuação ensinam que masculinidade e feminilidade são eleições de gozo inconscientes. A resposta de Alex, recusando-se a posicionar-se como homem ou mulher, independentemente de que sua anatomia “facilite” ou não a escolha, não inviabiliza, pela lógica das fórmulas da sexuação, que se sitúe frente a seu gozo, seja ele todo fálico ou não–todo fálico. Parece esclarecedora a passagem que tomo emprestada de Éva Pigois que diz: “Face à problemática contemporânea colocada pela intersexualidade, a psicanálise deve, claro, escutar os pensamentos emergentes, mas ela deve, sobretudo, preservar um lugar para o inesperado, o acidente que revela o falasser e sua diferença: mesmo no genoma, há lugar para o singular”