Do jogo com o véu ao véu arrancado
Christiane Page e Laetitia Jodeau-Belle
“Do jogo com o véu ao véu arrancado”, eis como se poderia nomear o percurso realizado pelos artistas do final do século XIX até século XXI, em sua maneira de apreender a questão da não- relação sexual.
Se o jogo com o véu implica no uso de metáforas, de imagens poéticas, um jogo de esconder/mostrar, os artistas contemporâneos ( escritores, diretores de teatro e de cinema) numa tentativa de escrita do real o mais perto possível de seu surgimento, não fazem mais uso delas. Isto significa também que o leitor, o espectador do século XXI é interpelado de uma nova maneira, às vezes incômoda até o ponto de chegar ao insuportável. O que levanta a questão sobre o que o artista antecipa a respeito do gozo do leitor ou do espectador no momento de seu ato artístico como do que antecipa a esse respeito este último que lê a obra ou vem vê-la.
Do jogo com o véu
Ao final do século XIX, princípio do século XX, a infância e as relações familiares tornaram-se um objeto de interesse para alguns dramaturgos assim como para a psicanálise nascente. Estes dramaturgos, que fazem escândalo ao colocar às claras o fracasso do encontro sexual, apreendem, de forma poética, algumas questões fundamentais ainda não teorizadas.
Por exemplo, O Despertar da primavera (1890) de Wedekind[1] aborda o tema da descoberta da sexualidade pelos adolescentes na sociedade do século XIX mostrando a qual ponto eles não podem se virar com ela. Essa questão atravessa o tempo, como está demonstrado pelo interesse que os diretores de teatro lhe conferem, desde seu surgimento.[2] Esse texto é revelador do fato de que a questão sexual, que aparece ruidosamente com a psicanálise e da qual não se pode sustentar, daí em diante, que seja uma exclusividade dos adultos, preocupa os espíritos no final do século XIX para além do pequeno círculo vienense. Um “hanoveriano”, portanto geograficamente distante do discurso da psicanálise nascente, elabora um discurso que antecipa Freud. Em 1907, Freud consagra à peça uma sessão de trabalho com o grupo de psicanalistas da quarta feira em Viena.[3] A análise que ele faz dela efetivamente dá conta do ponto onde ele está na elaboração da psicanálise e das teorias sobre a sexualidade. Se, como enuncia Adler nesta mesma sessão, Wedekind “sabe, estritamente falando, tudo o que há para saber” no momento em que o grupo de Viena estuda seu texto, podemos, lendo-o com Lacan, descobrir que aquilo que ele sabia pode ainda, atualmente, nos ensinar, já que a questão continua extremamente atual. “É porque a gente se desenvolve …isso trabalha na gente, é por isso…[4] diz Bastien numa conversação organizada por Philippe Lacadèe através laboratório do CIEN para uma sala de quarta série. É o que Sophie, outra adolescente comenta: “Na quarta série, os garotos começam a se masturbar. Isso os toma. Eles estão diretamente conectados na coisa[5]” e, enfim: “Na 4a série, todo mundo pensa nisso, é a perturbação essencial.[6]”
Em sua peça, Wedekind coloca em cena a não -relação sexual tal como é definida pela teoria lacaniana e que ele declina no um por um, retomando, sob diversas formas, o mesmo tema apresentando um verdadeiro catálogo clinico no qual os personagens têm a oportunidade de expor diferentes posições frente ao gozo. Interrogamos no curso do texto e em função do que ele mostra, os elementos que tomam parte na definição do que seria uma relação sexual. Em 1974, com a montagem de Brigitte Jacques a partir da tradução de François Regnault, a peça encontra de fato a psicanálise lacaniana e se aventura para além do que Freud teorizava a partir do Pai. As diferentes problemáticas da peça encontram as preocupações teóricas que Lacan desenvolve em seus seminários e ganham lugar na elaboração da noção de inexistência da relação sexual, de suas causas e de seus efeitos. No prefácio da peça (1974) ele insiste sobre o fato de que nessa peça, é ao nível do inconsciente, tal como ele se manifesta através do sonho, que a questão de fazer o amor se coloca para os jovens: “ Assim um dramaturgo abordou, em 1891, a história do que é, para os meninos adolescentes, fazer o amor com as mocinhas, assinalando que eles não pensariam nisso sem o despertar de seus sonhos”,[7] e que tal questão aparece como um enigma fora de sentido. Em Escritos Lacan já tinha sublinhado que “O sonho não é o inconsciente, e, sim, (…) sua via régia. (…) é pelo efeito de metáfora que ele procede”[8]. Dito de outra maneira, o encontro sexual acontece sobre o registro imaginário, a partir de manifestações do inconsciente e “tudo que nos é permitido abordar de realidade resta enraizado na fantasia”[9]: isto tem consequências diversas que Wedekind põe em evidência principalmente do lado do rapaz, mas também do lado das moças, aspecto pouco estudado até hoje.
Se podemos dizer que esta obra captura, a partir dos personagens adolescentes masculinos, mas também femininos, o que Lacan teorizará sobre a inexistência da relação sexual, é interessante insistir sobre a maneira pela qual Wedekind evoca a questão do gozo, específica de cada um, e que concerne somente ao sujeito. Para além da fábula, pela maneira de escrever, pelo estilo, pela poesia: o leitor vê o véu se levantar, mas não vê nada mais. O véu levantado não mostra nada e o leitor permanece estrangeiro ao gozo dos pequenos outros que os personagens representam. O autor não convoca o leitor em nenhum momento a vê-lo nem a olhá-lo; talvez a imaginá-lo.Dessa maneira, lá onde a literatura contemporânea, como o espetáculo contemporâneo, visa o gozo do leitor e a ascensão do objeto na cena, com Wedekind, temos o véu, o equívoco, as metáforas poéticas. Questão de época…
Nosso mais sincero agradecimento às autoras pela generosa disponibilidade do texto para publicação no Cien Digital.
Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Cristina Drummond