Entrevista com Beatriz Udenio Cien Digital, Julho de 2017

Imagem: Mehmet Ali Uysal

por Síglia Leão

Cien Digital: “Os laços sociais e suas transformações” é o tema da próxima Jornada Internacional do CIEN. Você poderia nos contar um pouco sobre a escolha desse tema?

Beatriz Udenio: Claro que sim. Voltamos à questão dos laços sociais uma década depois de ter tratado do tema em uma jornada do CIEN sobre “O porvir dos laços sociais”. Desde então, até os dias de hoje, as novas formas de comunicação, os meios, os jogos virtuais, os dispositivos móveis e as redes, merecem uma nova e profícua conversação acerca das consequências de tudo isso sobre a palavra, os corpos e a situação atual das crianças e adolescentes.

É o que tentamos apresentar como questões a serem compartilhadas na Conversação de setembro, a partir do Argumento elaborado para a jornada.

Cien Digital: Em relação ao formato dessa Jornada, há algo de novo quando se pensa em uma “Conversação Internacional Americana”?

Beatriz Udenio: Há algo novo ao colocar diretamente no título da jornada a palavra Conversação. Isto implica que o dispositivo da conversação é o que sustenta toda a jornada de intercâmbio. É dar legitimidade aquilo que vem sendo feito há muitos anos no CIEN.

Vocês no Brasil tem sustentado várias conversações do CIEN. O que chamamos Conversação? Qual é o seu segredo? No Campo Freudiano, as conversações propõem um debate sobre questões centrais e candentes do campo da experiência. Isto se realiza durante um tempo delimitado, o tempo que dura a conversação, sem ideias pré-concebidas, deixando-se ser surpreendidos pelo novo que pode surgir desse intercâmbio, e concluindo com a possibilidade de recolher alguns pontos discretos de saber que emergem do trabalho entre vários.

Além disso, o título enfatiza que se trata da comunidade ligada ao CIEN fundamentalmente na América Latina.

Cien Digital: Considerando que você está no CIEN desde a sua fundação, o que poderia nos dizer sobre a trajetória do CIEN e sobre sua importância para o Campo Freudiano hoje?

Beatriz Udenio: É uma pergunta muito oportuna essa que vocês formulam, considerando os movimentos mais recentes propostos por Jacques-Alain Miller ao conjunto do Campo Freudiano, sob a ideia da “movida” – me refiro à “A movida Zadig”.

Atrevo-me a dizer que, no enquadre do CIEN – criado por Miller em Buenos Aires, em julho de 1996- a orientação de abrir a intervenção da psicanálise nas questões sociais, sobretudo as referidas à situação das crianças e adolescentes nos diferentes discursos que os atravessam, representou e continua representando uma movida para a extensão, assim a psicanálise tem se engajado e se engaja em questões das políticas que sustentam as mais variadas instituições públicas e privadas, as quais recebem crianças e adolescentes cotidianamente.

Como dizia Juan Carlos Indart nas pontuações e perspectivas, por ocasião do encerramento da Jornada de 2013 “Me inclui fora dessa”: “no CIEN não se trata somente de expressar nossas ideias sobre o mal estar na cultura, publicá-las e difundi-las, mas também incluir-se nos discursos da época, de uma certa maneira”.

Essa certa maneira é a que Miller chamou em determinado momento de “extimidade”. É esta extimidade, que consegue esburacar, quando consegue, o modo discursivo mais atual, burocrático, aquele das etiquetas e avaliações.

E é a partir disso, que os trabalhos do CIEN se transformam em caixas de surpresa: ao incluir-se, a partir de fora, nesses discursos dominantes, dando lugar à surpresa.

Cien Digital: Em alguns momentos, aparecem casos clínicos nas conversações dos laboratórios do CIEN. Há um lugar para eles nesse contexto? Quando e de que modo poderiam, esses casos, trazer contribuições?

Beatriz Udenio: Este é um tema que convém elucidar. Desde o início, as experiências do CIEN se orientaram em trabalhar sobre o que acontecia com profissionais que recebiam as crianças e adolescentes e que não eram psicanalistas. A prática analítica –Judith Miller insistiu sempre nisso- é deixada ao lado em nossas investigações. A rigor, a bem da verdade, isso não se modificou.
É certo que, em algumas ocasiões, em alguns laboratórios, foi abordado o efeito do trabalho interdisciplinar a partir da localização da leitura feita das vicissitudes de uma criança ou jovem por algum psicólogo em formação, mas só quando envolvia outros profissionais que se ocupavam da criança. Se ocorreu dessa forma é porque nesse trabalho de laboratório, tal psicólogo ou psicóloga pôde ser mais sensível à singularidade dessa ou daquela criança, ou seja, ao que é próprio a cada um –como assinalou Éric Laurent em sua intervenção durante a Jornada do CIEN “Me inclui fora dessa”. Alguém que soube fazer com essa ou aquela criança ou adolescente, para além do seu saber disciplinar. Mas, certamente são razões inconscientes que fazem com que seja esta pessoa, e não qualquer uma, a que consegue fazer com que um sujeito se sinta, como alguém único, ou seja, como um caso de exceção. Assim – dizia Éric Laurent – no CIEN passamos do regime da proibição ao regime da exceção: cada um como exceção.

Mas, volto a sublinhar que o fundamento dos laboratórios do CIEN se constitui a partir do efeito que se constata nos profissionais de outras disciplinas, que se servem daquilo que a psicanálise pode aportar para proteger, estar atentos e sustentar o lugar, não avaliável de cada sujeito e suas soluções, como único e incomparável.

Cien Digital: Como AE, você poderia nos dizer sobre o lugar que teve e tem o CIEN na sua permanente formação analítica?

Beatriz Udenio: Fiz um desdobramento de algo disto na apresentação que realizei durante a Jornada do CIEN “Crianças saturadas”, que ocorreu em São Paulo, em setembro de 2015. Falei ali sobre “encontrar meu traço de exceção”. Trata-se de uma dialética: como encontrei o CIEN no ano de 1996 e como desde então, o CIEN foi acompanhando não somente minha formação, mas também os avanços e meus achados na própria análise.

Refiro-me ao modo como fui captando cada vez mais claramente o porquê do meu gosto pelo trabalho inter-disciplinar, em relação com a montagem da minha solução sinthomática.
Também sublinhei que quando escolhemos a psicanálise para transitá-la como analisantes, como também para fazer dela uma prática, esse traço próprio, único, está ali para ser despojado dos sentidos neuróticos para que se torne útil, uma ferramenta de vida.

Para mim foi assim. Para isto contribuíram minha chegada ao mundo em um “inter-línguas”, de línguas diversas, onde foi preciso tramitar aquilo que experimentava como um “fora de lugar” até fazer-me um lugar com esse “inter” mesmo. Assim foi tomando forma meu gosto por andar daqui para lá, entre diferentes grupos. E quando encontrei o CIEN, tudo aquilo ressoava em mim, repercutindo no que eu mesma havia experimentado e que a análise havia me permitido construir como modo instrumental de fazer com isso, dialogando com outros, com aqueles mais outros que os da própria paróquia.

Trata-se de um modo de fazer com o êxtimo. Por isso, “Me incluo fora dessa”, a frase daquele adolescente que participou de um laboratório de Belo Horizonte, ao qual Fernanda Otoni se referiu em 2013, me capturou desde o princípio, até o ponto de propô-la como título para a Jornada daquele ano.

Permite dar lugar ao modo que cada um –profissional, criança, adolescente- pode encontrar um lugar para situar-se nas bordas daquilo que, em ocasiões, se vive como algo insuportável.
Este traço (des)localizador, afinado na análise, define meu modo de localizar-me naquilo que Lacan denominou como nó entre a extensão e a intensão da psicanálise, espécie de localização topológica, êxtima, que determina minhas escolhas de experiência institucional e como isso se inscreve em meu sinthoma.

Tradução: Paola Salinas
Revisão: Glacy Gorski

 


Nota: Os textos mencionados de Juan Carlos Indart e Éric Laurent estão publicados em espanhol no “Cuadernos del CIEN N° 7”, Buenos Aires, 2014. O texto “Encontrar mi rasgo de excepción”, está publicado na revista EL NIÑO 14, Grama ediciones, Buenos Aires, 2016.