O desejo do analista no parlamento jovem de Minas Gerais
Paula de Paula[1]
Em tempos de descrença na democracia representativa como política capaz de promover justiça social, vimos acontecer ao longo dos anos uma forte evasão de alunos do Projeto Parlamento Jovem de Minas (PJ Minas) fruto da parceria da PUC Minas e Escola do Legislativo da Assembleia de Minas Gerais[2]. Assumindo a edição de 2015 do polo em BH, fui desafiada a pensar em como fazer para que os adolescentes voltassem a se interessar por um projeto que investe no formato da política parlamentar.[3]Contrariamente a reforçar o cacoete de uma política representativa, pensei em criar um lugar nas escolas onde pudéssemos escutar os jovens, fazendo valer uma política de base que radicalizasse a democracia direta.
Como o desejo do analista é o de colocar em ato o desejo de Freud (1932-1933), de estender/aplicar a psicanálise para além das paredes do consultório particular, pensei em deixar de lado a defesa de um dos vários métodos de trabalhos com grupos (usados nos projetos sociais, tais como: pesquisa-ação, oficinas terapêuticas, dinâmicas de grupo, rodas de conversa e etc), para destacar o que de fato está em jogo quando objetivamos produzir um “saber novo”, próprio dos coletivos com os quais iriamos trabalhar.
Como toda produção teórica não se separa de sua articulação política e desejante, evitei defender um tipo de método de trabalho com grupos, para destacar a importância da função ético-política de quem conduziria o trabalho com os jovens. Para isso recorri primeiramente a dois textos de Lacan. Em 1958 ele discorre no texto “A Direção do tratamento e os Princípios de seu Poder” sobre a função tática, estratégica e política do psicanalista, para mostrar que sua política é a de se colocar na posição de um objeto que cause o outro ao trabalho, se situando melhor “em sua falta-a-ser do que em seu ser”. Em “Psiquiatra inglesa e a guerra” de 1947, Lacan destaca o que aprendeu dos psiquiatras ingleses Bion e Rickmann com a técnica dos “grupos sem chefe/lider”. Ele observa que este modelo de trabalho com grupos possibilitou a constituição de um exército vencedor a partir do que Lacan nomeou como “um agregado de irredutíveis”.
Para explicar a posição do coordenador no PJBH usei do “Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris” de 1964, quando aparece a primeira proposta de trabalho com grupos, que estava na base do engajamento de sua Escola, nomeada por Lacan de cartel. Ele destaca também sobre a função do “mais um” que é a de dar uma direção ao trabalho no cartel. É logo perceptível que a figura que inspira a função do “mais um” é a de Sócrates, que através de seu método maiêutico, provoca seus discípulos a elaborarem um saber diante de uma questão colocada, a partir de onde ele esperava ensinar. Mas é importante lembrar o que Miller (1994) destacou a respeito do “mais-um”, pois ele não deve se esgotar encarnando a função do sujeito provocador, já que no fundo ele não porta o saber que espera que os outros encontrem por meio do trabalho que propõe. Assim o efeito de sujeito dividido é inserido no cartel, ou seja, como não é o sujeito da consciência, isso faz com que o “mais-um” funcione como “menos-um” e ao invés de completar o grupo, se junta à ele exatamente para descompletá-lo (MILLER, 1994).
A primeira coisa que mudamos no funcionamento do PJBH, para que o sujeito estivesse no comando do trabalho, foi a maneira como os grupos nas escolas eram formados, pois ela deixou de ser pela indicação dos professores que elegiam (a partir de sua avaliação) os melhores alunos. Em 2015 o convite foi estendido a todos os alunos do ensino médio que quisessem conhecer sobre o PJ e para isso participariam de uma oficina de jogos, de maneira a lhes dar oportunidade de se expressar ludicamente. Alain Badiou (1994) nos ensinou que a verdadeira política só existe quando a participação das pessoas é voluntária e desinteressada[4] de maneira que fizemos questão que tanto o aceite para a participação daquele dia, quando o desejo posterior de participar do PJ, se dessem por livre e espontânea vontade de cada um. O jovem que quis participar teve que escrever um parágrafo expressando seus motivos e seu interesse pelo tema que em 2015 foi “Segurança Pública e Direitos Humanos”.
Para nosso propósito no PJBH o coordenador deveria assumir a função de “mais-um”, lançando sempre para o grupo um dos três subtemas referente ao tema central. Estivemos ocupados com a “prevenção social do crime” com a “proteção aos segmentos vulneráveis à violência” e “novas perspectivas para a atuação policial e em todos os encontros os jovens eram convidados a falar o que lhes viesse a cabeça sobre cada um desses subtemas.
Como o desejo de participar estaria posto em destaque desde o início, a elaboração coletiva de um saber sobre estes temas viria da experiência com o real da vida de cada um dos jovens nas suas comunidades. Zizek (2013) destacou que em todos os movimentos sociais onde há espontaneísmo, há também um verdadeiro encontro de pessoas e nos lembra que foi assim que aconteceu na primavera árabe e no “Ocupy All Street” no ano de 2011. Lá houve elaboração coletiva de pequenos textos que se tornaram pequenos slogans. Assim não me parece abusivo pensar que quanto mais cultivamos a lógica lacaniana posta na formação dos cartéis, mais a elaboração de saber se coletiviza e se legitima.
Esse trabalho foi realizado semanalmente nas escolas, preparando os jovens para participar das mesas de debates, dos Gt’s com as escolas e para elaborarem propostas de maneira fundamentada. Ele provocou uma intervenção nos modos autoritários das escolas se relacionarem com os alunos, democratizando o uso de seus próprios espaços e lhes dando acesso a conversa com diretores e coordenadores. Pudemos fazer os jovens entenderem que o PJBH não era lugar para disputa entre as escolas e os municípios envolvidos, desmobilizando-os de rivalizarem-se. Assim deixaram de defender e votar apenas as propostas elaboradas em suas escolas, visando derrubar as outras, tomando a produção como coletiva. A partir daí, trabalharam para que as melhores propostas ficassem no documento base a ser entregue a Comissão de participação popular da CMBH no final do ano.
Os professores de referência e a coordenação das escolas compreenderam que o PJBH não era um projeto de atividades externas (tipo excursão) mas prioritariamente um espaço de estudo, reflexão, sínteses e afetividade. Houve uma mudança de posição dos alunos frente ao desdém que demostravam ter em relação às diferenças entre os princípios da política liberal com os de esquerda. No final do ano, um menino que havia nos dito que tanto fazia ser “direita” ou “esquerda”, porque ele queria mesmo era andar “pra frente” nos disse que só podia ser de esquerda, porque era pobre e tinha que contar com políticas públicas para ter o que os ricos tinham. Outro nos disse que a política de cotas para negros depunha contra a inteligência dos negros e no final disse no grupo de sua escola que não acreditava na meritocracia quando as pessoas não tinham a mesmas oportunidades para competir. Essas mudanças foram registradas em cada uma das escolas com a confecção de um painel que ficava em uma parede da escola e era alimentado com notícias e frases extraídas do trabalho nos grupos.
Outra mudança se deu após eleição dos representantes para a etapa estadual em setembro/2015, pois o grupo pensava que os encontros terminariam ali. Nós mostramos que a preparação do representante para e Etapa estadual devia ser feita juntamente com seus pares, desfazendo o costume da política convencional, que após eleição dos representantes, interrompem a relação dos mesmos com suas bases. Para isso cada escola escolheu uma das propostas do documento base (que este coletivo de jovens aprovou em plenária) e se organizou para realizar uma pesquisa de campo, buscando avaliar como estava aquele ponto da política de segurança pública em seu território. O efeito disso nos alunos foi o de entender que mesmo após eleição de representantes não se pode desmobilizar, deixando em mãos dos eleitos a tarefa de fazer a política a partir de seus próprios interesses e por sua própria conta.
Outro ponto forte foi o encontro dos alunos do PJBH com os alunos da EE Protagonista Juvenil, que atende adolescentes que cumprem medida de internação no Estado. A Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE) organizou conosco o encontro de alunos de duas escolas (uma feminina e outra masculina) abrindo espaço para a expressão de adolescentes que perderam a liberdade por terem cometido um ato infracional grave. Alguns alunos que eram a favor da diminuição da maioridade penal, “porque achavam que adolescente de 16 anos já sabe o que é errado”, puderam mudar de opinião quando conheceram e escutaram algumas histórias de meninos e meninas que tinham a mesma idade que a deles, mas vidas muito diferentes.
O “Mais-um” enquanto função de descompletude, possibilitou mudanças de posição subjetiva no saber abrindo caminho para os jovens pensarem que sua participação na política independe de serem representantes de um coletivo e não se realiza apenas na ocasião das eleições. Funcionando como “Mais-um” pude testemunhar os efeitos internos do trabalho de elaboração de saber de modo singularizado, manejando o discurso da histérica que convém ao cartel como grupo, mas visando como analista a fala do “Um por Um”. Além disso pudemos testemunhar uma evasão 79% inferior àquela que vinha acontecendo e grande parte dela (quando procurada por nós) nos deu motivos bastantes compreensíveis, como ter ido trabalhar, mudança de escola e problemas na familia.