O furo como um traço de união?
Sílvia Sato
A prática do Cien
A prática do Cien – Centro Inter-disciplinar de Estudos sobre a Criança e Adolescente – nasce de uma função que Lacan propõe para sua Escola, de manter uma relação entre a psicanálise e os psicanalistas com outras disciplinas. Judith Miller localiza que o Cien se situa no Campo Freudiano, espaço que a psicanálise tem de reconquista dela mesma, assegurando sua práxis no mundo contemporâneo. E para isso, é indispensável que os psicanalistas sejam formados numa Escola de Psicanálise, tendo a intenção de se instruírem por meio das outras disciplinas e ao mesmo tempo, de educar as inteligências que se especializam nessas diversas disciplinas.
Essa dupla via encontraria na hiância entre as disciplinas, o vazio como motor necessário que opera como causa dessa prática, um não saber em torno da criança e do adolescente. É como efeito da formação como analista ao sustentar algo do discurso analítico, que um praticante da psicanálise acolhe nos laboratórios do Cien, o vazio de sentido presente na apresentação dos impasses levados para cada conversação. Como enfatiza Judith Miller , cabe ao analista sustentar no Cien “Um vazio que pode indicar o lugar de uma ausência vibrante, viva, como um coração que bate, pulsante.”
Impasse, conversação e extração
O aFinarte acolhe profissionais de disciplinas e instituições diferentes, vindos de cidades distintas, numa região do interior paulista. Com essas orientações e como responsável por esse laboratório, trago uma elaboração desses 5 anos de experiência a partir de uma situação apresentada em um dos encontros.
Raquel, professora de uma escola municipal, apresenta um impasse experimentado em sua prática educacional. Ela se inquieta diante de Renan, um menino de 6 anos, que se mostra desafiador, “não obedece aos comandos”. Diferente das outras crianças costuma chegar atrasado, não participando do momento de acolhimento na escola. Ao longo das atividades xinga, grita e chora, se opõe, negando-se a participar, dificultando o trabalho com o grupo de crianças. Numa tentativa de resolver o impasse, a professora demanda a intervenção da direção, mas entende que a direção age de maneira autoritária com o menino e a leva a concluir que seria preciso se haver sozinha com ele e com o grupo de crianças, já que não seria à essa lei autoritária que ele responderia. Com essa resposta da direção da escola, a tentativa de recorrer ao Pai da Lei não operou para tratar o impasse, o que demandou à Raquel, colocar seu próprio corpo, mantendo sua presença e inventando um fazer, para tratar a situação. Ao conversar com a mãe, conhece o contexto familiar de Renan e aponta para a realidade dele ficar um passo atrás, na medida em que está frequentemente atrasado e não é acolhido ao chegar.
Em sala, apesar de sua oposição em participar das atividades, percebe que Renan se incomoda ao ficar de fora, o que a faz separá-lo numa outra mesa na hora do lanche, de onde ele pode ver do quê fica de fora. A intervenção produz incerteza em Raquel, teme por favorecer uma exclusão, o que não a impede de manter o que Beatriz Udenio nomeou como um ato. Entendo que esse ato em alguma medida faz operar a função do Pai, enquanto lei que barra um gozo, tendo como efeito que localizasse seu desejo de estar com os colegas.
Um fato novo mas comum chama a atenção na Conversação, que é o modo desafiador que surge na oposição das crianças dessa idade. Freud, ao falar do caso do Homem dos Lobos, conta de um menino que se irrita e se mostra ansioso aos 4 anos e meio, momento em que ele já é capaz de pesquisar, querer saber sobre a sexualidade no laço com os outros e que afeta seu próprio corpo.
A oposição de crianças muito pequenas, que desafiam como adolescentes, a entrada na vida escolar no início da infância que as colocam diante da diferença desde muito cedo e com uma demanda de que se insiram numa rotina coletiva diária. Com o caso do Homem dos Lobos, Freud nos permite ler a oposição que aparece nessa idade, quando a própria criança experimenta modificações nos laços afetivos e por apresentar recurso simbólico e de pensamento, o afeto amoroso não é mais o único que pode ser endereçado, vindo acompanhado pela objeção e pela crítica. O que não acontece sem os efeitos da sexualidade infantil.
Nessa conversação, algo da surpresa diante do novo, “uma criança que não obedece aos comandos da professora” causa o impasse, que ao acolher o que fica fora da norma, ao acolher suas manifestações, a professora permite à criança se ver na cena escolar. Assim, ao separar ao invés de excluir, dá lugar ao modo de gozo implicado no atuação do menino, que ao se ver de fora pode se perguntar onde quer ficar, o que deseja. Do lado da professora, ela se questiona a respeito do laço, sobre o modo como ele se enlaça a ela e ao grupo de crianças, o que a faz pensar sobre seu fazer.
Resíduos de uma Manhã e um novo giro
Numa conversação partimos dos impasses, mas onde chegamos? Judith Miller nos orienta que cabe ao analista sustentar um lugar vazio, de ausência vibrante, mas em torno de que objeto a conversação acontece? Ao falar na Manhã do Cien, Marcus André propôs uma conversa a partir do corpo como “Um de base”, incluindo o objeto “não coisa” ou o “objeto furo”, que parte da noção de objeto a elaborada por Lacan no Seminário 10, de um objeto extraído, como efeito do laço simbólico que permite a constituição de um sujeito desejante. Numa conversação, podemos considerar que a “não coisa” dê forma a um vazio, e num giro a mais ao furo, noção que Lacan trabalhou no Seminário 23? O vazio estaria relacionado à noção do objeto perdido, que viria em substituição a outro objeto. No caso da conversação, um saber prévio que viria solucionar o impasse na medida em que fosse descoberto contando que o saber de uma das disciplinas preencheria esse vazio. Já o furo, ele dá consistência à inexistência de algo a priori, nessa medida coloca os participantes da conversação em torno de um mistério, não para ser descoberto, mas frente a uma solução que possa ser inventada, incluindo na conversação um objeto que está sempre mais além, que o conjunto dos saberes das disciplinas não abarca. O objeto furo faria assim, a superfície em torno do que se conversa, partindo do impasse. Objeto que numa conversação presentifica o vão na inter-disciplinaridade e dá ao analista a função de sustentar essa hiância, pressupondo uma diferença entre uma Conversação e outro encontro entre profissionais.
O ponto cego de cada um na conversação
Voltando à Conversação no aFinarte, podemos separar essa “não coisa” do lado de Renan e do lado de Raquel. Entre as normas e antigas tentativas de solução que fez recorrer à direção da escola, a falha no saber prévio faz um vão, entre o recurso às normas e inventar uma nova solução. A contingência da falha colocou Raquel diante da decisão sobre o que fazer diante dos gritos, choros e xingamentos de Renan, que resulta no ato de separá-lo dos demais. Do lado de Renan, ao se ver de fora, o efeito do ato de Raquel, permite apontar para a “não-coisa” ligada ao que lhe incomodava, afetando seu corpo e se manifestando como oposição.
Nesse caso a Conversação girou em torno do ponto cego que, mesmo após a intervenção, sustentava uma incerteza em Raquel: por um lado se não estaria favorecendo uma exclusão, ao colocá-lo em outra mesa separando-o dos colegas, por outro lado, um não saber sobre a causa da oposição de Renan. Pode-se verificar que não saber sobre a causa em questão para Renan, não impediu seu ato em torno do que entendo, foi o objeto furo. Seu ato permite a Renan poder dizer de seu desejo, não sem a presença de Raquel que lhe pergunta se quer entrar no grupo de crianças.
O que nos leva à noção de infans, como aquele que não fala, que “não tem seu objeto construído de entrara”, como menciona Bassols e diante de um corte, efeito do ato de Raquel coloca-o diante de uma alteridade que presentifica o objeto olhar. Ele pode se olhar de fora do grupo de crianças. Nesse tempo, já não se trata do furo, mas do objeto a enquanto véu do vazio, já inscrito numa operação simbólica, faltosa. É o que permite a Renan, diante da pergunta de Raquel, falar de seu desejo, não mais pela atuação, mas como falasser.
O objeto furo na conversação
O ato de falar sobre seu impasse, com os comentários dos outros participantes do laboratório, permite clarear o objeto em torno do que a situação com Renan produziu seu impasse. Ao girar em torno do objeto furo, mantém ao final algo do impasse ainda como um mistério, algo por saber, Raquel se pergunta como ficará Renan, já que vai mudar de escola?
Essa conversação nos ensinou que não se trata de saber de tudo para poder operar e nem sempre é possível nomear o que causa, mas sim, um objeto em torno do qual ela acontece. Por outro lado, a “não coisa” localiza o que do humano não funciona, aquilo que nos termos psicanalíticos, falha e faz sintoma, e não somente a falta que seria suprida pelo Outro. É nessa medida que aponta para o furo em relação a um possível saber prévio que se possa ter diante de um impasse. Talvez possamos dizer que uma Conversação acontece em torno do impossível da relação, apontando para a hiância, onde é na contingência de cada encontro, com a inter-disciplinaridade, a diversidade de saberes, que com o que se apresenta na fala de cada participante, por vezes, pode se inventar uma solução.
Nessa medida, é considerando a psicanalise como avesso à norma e sustentando esse modo de conversa em torno do objeto furo, que me pergunto se um furo pode se fazer um traço de união, que particulariza uma Conversação do Cien?
Responsável pelo aFinarte, laboratório do Cien/SP, membro da EBP/AMP, junto com Cláudia Reis, associada do Clin-a. Participam do laboratório: Denise Gasparotti, Ana Celeste Pitiá, Sabrina Marioto, Dayana Coelho, Raquel Astragalli e Silmara Bastos Dias.
Udenio, B.: comentário feito na Atividade do Cien/SP: “Novas configurações familiares: respostas das crianças e dos adolescentes”, 17/05/2017.
Vieria, MA: fala realizada na conversação da V Manhã do Cien –Solidão e Laço na Adolescência, SP, 25 de novembro de 2016, publicado in: Brown. N.; Macedo, L.; Lira, R (org.) Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência: experiências do Cien no Brasil, Belo Horizonte, EBP Ed., 2017. 398 e 409