O social, a política da psicanálise e o trabalho do Cien [1]
Cláudia R. Reis [2]
A experiência em dois laboratórios do Cien – a primeira[3] que aconteceu nos primórdios da fundação do CIEN no Brasil e a segunda, no laboratório aFinarte, em funcionamento em Ribeirão Preto, desde março de 2013 – me possibilitou vivenciar os efeitos da prática da conversação nos laboratórios e nas instituições. O desejo de pesquisar o percurso do Cien tomou forma no cartel “Garoupa de Olhos Abertos ou o Real na Instituição”, destacando nesta pesquisa, a inserção da psicanálise no “social”. Por ocasião do XIX Encontro Brasileiro, a presidente do Campo Freudiano, Judith Miller, fala das mulheres, da política do Cien e do Passe, cito: “penso que o Cien é uma das maneiras de inventar uma modalidade que valoriza o trabalho que eu chamei de modo genérico, social e pode permitir que cada um se dê conta que a impotência pode ser superada a partir do momento que alguém se interessa verdadeiramente por cada caso”[4]. Anuncia ainda sua alegria por, durante a Jornada do Cien[5], estar prevista uma intervenção de uma Analista da Escola, visando tratar o modo como o Cien contribuiu para sua formação e como o articulou à função de A. E.
A inserção da psicanálise no social comparece como uma antiga questão, acompanhando-me desde os anos iniciais de formação, quando ouvia: “ou se trabalha com psicanálise ou em instituições”. Ainda sem ter encontrado a orientação lacaniana, observava os especialistas das diferentes disciplinas tentando dar conta dos impasses que emergiam nas instituições, bem como, na maioria das vezes, o fracasso daí advindo.
Com a constituição do cartel, surgiu a possibilidade de recolher, nos primeiros textos de orientação do CIEN, pontos significativos à questão que me propus pesquisar. Lacadée afirma, no momento de fundação do CIEN, em 1996, que a relação da psicanálise com a interdisciplinaridade precisava ser revista e faz uma convocação para reconquistarmos esse conceito, movê-lo de lugar. Toma por base o que anunciava Lacan sobre os caminhos do discurso do mestre que, apoiado pelo discurso universitário, conduzia os avanços da ciência, mas também, contribuía para a segregação. Lacadée ilumina as bases do conceito de disciplina, fazendo um traçado interessante das modificações sofridas por ele ao longo do tempo. O autor parte da designação que o conceito tinha no século XII: um chicote usado para flagelar-se, dando acesso à auto-crítica; passa pelo sentido de instrução e direção moral; torna-se arte, estudo; é também regra de condução e, finalmente, inclui a disciplina que o sujeito se impõe a partir dos significantes que articula à sua existência e o representa para o Outro. Por esta via, o sujeito tenta dar um suporte ao seu ser e se produz um efeito de significação em resposta ao real em jogo na sua existência. Aqui a ciência desempenha um importante papel de tentativa de produzir suplência às modalidades de respostas e o homem encontra-se fragmentado entre as diferentes disciplinas. A idéia do CIEN é que as disciplinas de orientariam de algo novo, se por trás desta realidade complexa de produção de respostas cada vez mais especializadas, se colocasse a céu aberto o real em jogo, pela via de uma questão para o sujeito. Segundo Judith Miller, as disciplinas, ao tentarem dar conta das questões que emergem no real, acabam por contorná-lo.
Alexandre Stevens faz uma intervenção, onde destaca que não cabe inventar novas instituições mas inventar lugares para receber o real impossível de suportar. Segundo ele, o sujeito precisa da análise para encontrar a direção que convém ao seu sofrimento e questiona se as instituições e os profissionais vinculados aos diferentes discursos não precisariam do espaço que o Cien proporciona para acolhimento dos impasses.
Assim, o Cien se ocupa dos efeitos de irrupção do real e o discurso analítico deve fazer-se parceiro, oferecendo a possibilidade de praticar “a associação livre no coletivo”[6], conforme se refere Miller à pratica da conversação. Esta permite que não se fique preso ao discurso universitário possibilitando às pessoas reconhecerem algo diferente. É importante acolher os impasses para que novas saídas sobressaiam.
Enquanto as especialidades tentam fazer de maneira que a instituição funcione como ideal, o dispositivo do Cien se coloca como um simples motor de ação. Laurent fala da importância de se ofertar um lugar ao qual possam se dirigir[7]. Observamos nos laboratórios a redução da consistência do discurso do mestre contemporâneo, a desamarração do saber totalizador e, assim, a permissão da existência de um intervalo para a invenção.
O aFinarte se constitui num espaço onde profissionais de diferentes instituições levam seus impasses para as conversações inter-disciplinares. Recentemente, uma participante falou de um “amadurecimento” na forma de pensar o serviço. Achava que tinha que resolver os problemas, “uma posição muito resolutiva” e que “aprendeu a não se frustrar com isso, a trabalhar com uma expectativa mais baixa, valorizar pequenas coisas, como por exemplo, um menino que sorri e antes não sorria. Não precisa ser um flash, pode ser uma luzinha.”
Em minha prática, o impasse estava ligado ao “que fazer” com algumas demandas recebidas na clínica: o atendimento de casos nomeados como “difíceis” dentro das instituições. Aceitar, tocaria no ponto do “saber fazer”, em contraposição ao profissional da instituição que ficaria do lado da impotência, idéia que não me agradava. Recusar me causava incômodos.
O convite feito aos profissionais a participar do laboratório, a fazer uso da palavra para levar os próprios impasses, foi a saída por mim construída. Em lugar de me colocar como potente frente ao que me era demandado, convocava o sujeito a se haver com os próprios embaraços, propondo-me um lugar despojado de saber, ou seja, a sustentação de um lugar vazio. Conquista subjetiva importante para mim.
Desde 1953, em seu texto Discurso de Roma, Lacan estimava que a psicanálise teria um importante papel na direção da subjetividade moderna, fazendo frente ao movimento da ciência de construção de um saber totalizador, que contribui para a multiplicação da segregação. Desde os primórdios do Cien, é justamente o enfrentamento da segregação que está em jogo. Lacadée aponta o quão preciosas são as contribuições daqueles que se dispõem, dentro das suas profissões, a fazer uma análise da segregação. Considera que inúmeras são as disciplinas que podem nos esclarecer sobre os pontos atuais do mal-estar na civilização. O Cien não tem a pretensão de frear o processo de segregação, porém, pode questionar. Não procede através de considerações abstratas, mas por descrições de resultados precisos. Aparece como uma formidável ferramenta para permitir que a psicanálise reconquiste seu lugar no campo social.