A voz do Supereu: Just Do It!

Ryder Ripps, Hourglass, 2014

Miquel Bassols

O conceito de Supereu não é claro nem transparente, merece ser recenseado tanto na obra de Freud como no ensino de Lacan e na própria história da clínica. Há uma história do supereu que se faz presente na variação dos sintomas dos quais ele mesmo se alimenta. Existe o supereu freudiano que proíbe um gozo de uma maneira sempre impossível de realizar por completo, com essa lei louca que diz ao sujeito masculino: “assim, como o pai, deves ser; e assim, como o pai, não deves ser“ ( FREUD em O Eu e o Isso, 1923 ). É o supereu que proíbe, mas que também obriga, colocando o sujeito num dilema impossível de resolver: deves fazer A e, ao mesmo tempo, não A.

A concepção lacaniana do Supereu logo realizou um deslocamento desde o clássico supereu entendido como proibição de um gozo para o supereu, muito mais atual, entendido como imperativo que finalmente impõe ao sujeito um gozo igualmente impossível de obter. Vivemos, é certo, a escala global sob o imperativo da obtenção de um gozo que se revela sempre tão impossível de realizar em sua totalidade como inútil em sua parcialidade, tão mortífero em suas consequências como ineficaz em sua economia que não se recicla. A conhecida fórmula – “Goza!” – com a qual Lacan distingue esta dimensão imperativa de um gozo no sujeito contemporâneo, de fato pode ter um bom antecedente em uma passagem da obra do escritor André Gide, Corydon, arrazoado escrito em defesa da homossexualidade contra o moralismo de sua época. Nele, o autor põe na boca da “voz da natureza” este mesmo imperativo, – “Goza!” – dirigido tanto ao homem como à mulher. É um imperativo que vem no lugar de um inexistente instinto sexual que dissesse tanto a um como ao outro qual é o objeto natural e complementar desse instinto. O imperativo – “Goza!” – que afeta a pulsão do ser que fala, à diferença do instinto natural, não diz, no entanto, de qual objeto se tem que gozar. Isso produz nesse ser que fala uma dupla dor de cabeça, sempre sintomática: tem que satisfazer a pulsão e tem que fazê-lo sem saber, de entrada, com qual objeto. Esta versão do “não existe relação sexual” em André Gide – não existe um objeto natural e determinado para a pulsão sexual-, essa dimensão que se expressa no sujeito contemporâneo por um imperativo de gozo levado, às vêzes, até a morte mesma, será repescado por Jacques Lacan para dar a voz mais precisa a esse Supereu tão enigmático como insidioso. É uma voz que aparece em toda a diversidade de fenômenos na clínica contemporânea, desde a anorexia-bulimia, passando pela série de adicções que alimentam a glutoneria do Supereu. Se o Supereu proíbe um gozo, por uma parte é para se alimentar, ele mesmo, desse gozo rechaçado e impor ao sujeito um novo sacrifício, sob a forma de novos imperativos de gozo. A economia de nossa época e seus fracassos parecem seguir um roteiro escrito linha por linha por uma instância tão obscena e feroz.

Marc Quinn, Another Angel, 2011
Escultura em bronze patinado

Parece que quando Lacan viajou aos EUA e viu a propaganda “Enjoy Coca-cola” escrita em letras luminosas suspensas nos edifícios urbanos, comentou de imediato: enjoy não será nunca uma boa tradução do termo jouissance. De fato, a palavra francesa “jouissance” ( gozo ) não teve em inglês nenhuma boa tradução e as melhores versões de textos lacanianos optaram por deixar o termo, tal qual, em francês. Nosso “goce” ( gozo ) em castelhano acerca-se, talvez, um pouco mais a essa dimensão; e o “gaudi” ou a “fruïció” do catalão inclusive se acerca um pouco mais…

Em todo caso, dispostos a encontrar fórmulas atuais do Supereu freudiano na publicidade e na psicopatologia da vida cotidiana, temos a do novo imperativo que alimenta hoje essa figura obscena e feroz: “Just Do It!” ( “Faça-o” ! )

Sim, “Simplesmente, faça-o!” parece hoje a fórmula, tão vazia quanto imediata em sua formulação, com que economistas e políticos, higienistas e científicos alimentam, muitas vêzes, o imperativo do Supereu. É um imperativo que parece haver descoberto a inutilidade do gozo em si mesmo para seguir a lógica implacável de um empuxo ao além do objeto do qual se deveria gozar. ”Simplesmente, faça-o”! nos diz, sem nos dizer realmente, o que é o que se tem que fazer.

É nesse novo imperativo que seguramente podemos ler a voz atual do Supereu, uma voz que se alimenta da satisfação pulsional na clínica da passagem ao ato, tanto na intimidade do sofrimento como em sua exposição mais pública, e, digamos também a palavra, ultrajante.

Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Nohemí Brown