Bling Ring
Sobre o filme de Sophia Coppola e Maria Rita Guimarães
Da narrativa de Sofia Coppola (2013), retirada de fatos reais relatados pela jornalista Nancy Jo Sales que, anteriormente à escrita do livro, publicou uma matéria sobre o tema na revista Vanity Fair, em 2010, com o nome « Os suspeitos usavam Louboutin ” – destacam-se alguns aspectos que nos interessaram para o debate na roda de Conversação:
- O fascínio pela imagem, quando ela pode ser multiplicada, (quase) sem limite, pelas redes sociais.
- O gozo, presente em cada ação do roubo, demanda mais um, na sucessão vazia dos atos transgressivos. Roubo “para nada” já que os desejados objetos de consumo, passado o efêmero momento de ver,momento do click da foto, já podem ser perdidos, consumidos, vendidos.
- Paris Hilton é uma grife fascinante, um objeto? Parece pouco importar como pessoa, não parece ocorrer uma identificação com ela: o que importa para os jovens é o que ela porta, seus objetos.
A lista seria longa. Coloquemos, no entanto, duas questões como convite ao pensar:
- São os objetos o sintoma dos adolescentes, no filme? São os objetos que gozam deles?
- Em que momento- depois da prisão – é identificável – encontraríamos marcas da experiência – experiência traumática – vividas pelos adolescentes que Sofia Coppola nos apresentou?
O fato apresenta-nos quatro jovens e um rapaz que se lançam, aparentemente para romperem o tédio de suas existências, a roubar os objetos de grifes reconhecidas em casas de pessoas chamadas “celebridades de Hollywood”. Porém, há algo mais que o tédio: o sonho de glória, de “ter a própria marca”, a aspiração “futura” de fama que não vai além da imagem clicada, fulgurante instante de ver e postar no Facebook, existe. Constatamos essa existência no final do filme, através da rapidez com que se apropriaram do “acontecimento prisão”- porque chegaram até lá!- para se mostrarem à mídia. Tal qual camaleões, defenderam-se metamorfoseados no discurso da curiosa e bizarra filosofia filantrópica cultivada pela mãe de uma delas.Assim, Emma Watson pode discursar para os jornalistas:
“Eu acredito no karma e acredito que esta situação aconteceu na minha vida para me dar uma grande lição, para eu crescer e amadurecer como ser humano espiritual. Eu quero gerenciar uma grande organização beneficente. Eu quero liderar o país um dia.”
O significante “marca” foi discutido pelos presentes na Conversação. Os Louboutins são os nomes dos adolescentes, são suas representações sociais, porém voláteis como a droga consumida.Daí a pouco a identidade de cada um poderá ser “aspirada” pelos calçados de Paris Hilton e de outro…outro nome consagrado como “marca”. Parece ser menos o objeto em sua materialidade – ou mesmo a materialidade dos dólares roubados – que lhes importa, já que rápido o jogo entre consumidor/consumido rebaixa o objeto a nada.
Encontraríamos marcas nos corpos? Mesmo após o sério acidente de carro, os corpos das jovens seguem delgados, angélicos, assexuados, quase! Curiosamente, mesmo se mencionada uma ou duas vezes, a fala depreciativa a respeito do parceiro, ocasional, anônimo, mostra a relação sexual como caricatural, “coisificada”. São corpos habitados pelos objetos de marcas e pela anfetamina (Aderal) administrada pela mãe, em todas as manhãs. São corpos para o olhar e para a imagem – dois objetos onipresentes na narrativa fílmica. São objetos / vestimenta para o vazio de suas vidas.
E a marca do trauma?
No debate, era a pergunta que retornava e, em seus giros, possibilitava a muitos presentes na Conversação a contribuírem com elementos de respostas, porém deixando-a aberta. As intervenções destacavam que, ao menos para Mark, o garoto, podia-se ler algo de uma subjetivação da experiência. Experiência dos roubos, da amizade rompida, de constatar que sua América ainda é fascinada por seus Bonny and Clyde.
Se falamos em subjetivação é porque estamos admitindo ao ser falante o esforço para subjetivar o choque que lhe adveio do encontro com a linguagem. Este traumatismo não pode ser tomado no sentido negativo: na verdade, ele empurra à entrada na humanização.
Esta é mais bela e mais forte e não poderia ser reduzida a corpos “coisificados”, mesmo em sua estética angelical, a serviço do capitalismo.
Cien Digital 16 publicou o texto A bússola do sim e do não, de Philippe Lacadée, do qual extraio dois parágrafos que nos ajudam a pensar a questão do trauma em Bling Ring:
A questão é saber como essa criança moderna – que não se sustenta mais de seu desejo, mas da solitária relação ao objeto –, toma conta do excesso de consumo que lhe barra o acesso ao saber e ao inconsciente. Os desejos tão solicitados são transformados em necessidades, em imperativos de gozo que respondem à gulodice de seu supereu sem que a criança saiba demandar ao Outro. Ela quer tudo e tudo já. Ela se encontra, então, vítima de um supereu feroz que a empurra para querer gozar de tudo e para o qual bem e mal se equivalem.
Controle remoto na mão, a criança conecta diretamente seu corpo com o objeto gadget que já era interrogado por Lacan em 1974: “chegaremos a nos tornar animados verdadeiramente pelos gadgets?”. Lacan não acreditava, mesmo afirmando, não obstante, que “verdadeiramente não há nada a fazer quando o gadget não é um sintoma”. Lacan evidenciava deste modo, a solução do gadget como podendo ser para o sujeito um novo sintoma; parece abrir uma via mais digna para o objeto gadget. Não se trata de rejeitá-lo com a nostalgia dos tempos antigos, mas compreender o uso que o sujeito faz disso. Se ele pode ter valor de sintoma, é porque o sujeito pode se servir dele como um ponto de apoio localizado, ou mesmo como suplência.
Um a um, com sua palavra, na presença de um analista, saberíamos o valor dado ao objeto como um novo sintoma – ou não. Para a gangue do filme, deixemos sem resposta.