Imagem e significante: enlaces e desenlaces
Lucíola Freitas de Macêdo
O linchamento virtual e os novos contornos da vergonha, Kafka no século 21?
A tecnologia impede que coisas ditas sejam esquecidas, pois incita a que sejam reproduzidas ad infinitum. Em agosto de 2006 uma jornalista divulgou informação equivocada, ao vivo, em programa televisivo, sobre o goleiro Rogério Ceni, que ligou imediatamente para o programa e confrontou-a, também ao vivo e em tempo real. A cena foi parar no YouTube: “a coisa nunca mais parou de acontecer… é como se eu estivesse naquele filme em que o dia se repete… eu acordava e começava tudo de novo. A vergonha não acabava, ficava sempre ficava voltando”1.
A vinheta jornalística nos levará a interrogar, ao longo deste percurso:
- As modalizações do Outro e as respostas do sujeito: o Outro absoluto e as relações de opressão; O Outro inexistente e/ou inconsistente e a condição de deriva e de desamparo.
- O estatuto do trauma, que parece menos articulado à fantasia; e mais suscetível às injunções arbitrárias de um Outro absoluto, tema amplamente discutido nos textos preparatórios do Pipol 7, cujo título é “Vítima!”.
Palavra: novo modo de usar?
Em 1953 Lacan escreveu, por ocasião do Congresso de Roma, um texto inaugural, no qual dedica um capítulo às ressonâncias da interpretação:
À medida que a linguagem se torna mais funcional, ela se torna imprópria para a fala, e ao se tornar demasiadamente particular, perde sua função de linguagem… quanto mais o ofício da linguagem se neutraliza, aproximando-se da informação, mais lhe são imputadas redundâncias… uma parte importante do meio fonético é supérflua para que se realize a comunicação efetivamente buscada… mas o que é redundância para a informação é precisamente aquilo que, na fala, faz as vezes de ressonância. Pois nesta a função da linguagem não é informar, mas evocar. O que busco na fala é a resposta do Outro. O que me constitui como sujeito é minha pergunta.
LACAN, 1998, p.300-301
Pois bem, o que dizermos da função da fala e da linguagem nos tempos que correm? E quanto ao estatuto do significante, em tempos em que a linguagem se torna cada vez mais funcional, esvaziada de suas redundâncias e de suas ressonâncias? Em que o sentido, por um lado, perde sua primazia em detrimento da comunicação efetivamente buscada, por outro, em detrimento da inscrição de uma marca, de uma cifra de gozo?
Vejamos o que se mostra na cena do mundo: as novas tecnologias digitais parecem se imiscuir irremediavelmente nas práticas da palavra através do mundo virtual, através dos blogs, redes sociais e outros dispositivos próprios ao laço social de nosso tempo. A palavra, nesses dispositivos, produz efeitos por sua materialidade, como ancoragem e ciframento de gozo, mais que pela via de seu deciframento e da produção de sentido. Parece haver, no âmbito das práticas de linguagem, um novo link entre palavra e imagem, na medida em que a palavra, esvaziada de sentido e significação, compõe, fixa a imagem, ao invés de explicá-la e conferir-lhe sentidos. Tratar-se-ia de um novo uso da palavra? De novos laços entre as palavras, os corpos e os gozos? Um laço marcado pela materialidade, pela literalidade, e pela pulsionalidade: palavra marca, objeto metonímico, descarga pulsional?
O uso que os sujeitos contemporâneos fazem da palavra coloca-nos diante de uma relação com o simbólico diferente daquela inscrita sob a égide do Nome-do-Pai. No último ensino de Lacan temos uma pluralização dos nomes-do-pai e a forclusão generalizada. Não é pela via da metáfora que os nomes-do-pai operam, articulando um significante a um gozo que este significante deveria negativizar. O que está em jogo nessa pluralização são possibilidades singulares de amarração do simbólico com o imaginário e o real.
O que dizer do simbólico, levando em conta tais coordenadas? Não só a cultura, seus fenômenos e produções, como também a clínica dos sujeitos em análise parecem demonstrar que o simbólico já não é o que era. Os sujeitos fazem dele um uso diferente, e até contingente. Já não se servem dele como antes, como eixo organizador em torno do qual se funda sua estrutura, sua relação com a linguagem, o mundo e seus objetos, com seus gozos e parcerias amorosas. O simbólico está ali, meio de lado, e às vezes até pontualmente forcluído, não digo estruturalmente forcluído, mas subutilizado, não privilegiado no que concerne às soluções do sujeito.
No mundo regido pela parceria consumidor – produto, as trocas já não se fundam sobre a vertente simbólica. Elas adquirem outro estatuto, marcadas pelo tom da satisfação dos imperativos de gozo do momento, são pontuais, efêmeras, múltiplas na aparência, mas unas quanto ao seu cerne: o gozo do Um sozinho. Como pensar a prática analítica nessecontexto, em que o sujeito contemporâneo não é mais o sujeito da representação, marcado por uma dívida simbólica, mas se apresenta como resposta do real?
O imaginário em conexão direta com o real e o rechaço do simbólico
O que se rechaça com o rechaço ao simbólico é a diferença significante. E de modo mais amplo, a diferença no plano das relações e da cultura. Parece haver uma contradição iminente entre o atual furor das reivindicações pela diversidade, em suas mais variadas manifestações (étnico-racial, religiosa, cultural, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras), e o exercício do rechaço à diferença engendrada ao nível do simbólico. As reivindicações e apelos por igualdade parecem suportar mal quando se trata de pagar o quinhão cobrado pela perda de gozo inerente à operação simbólica.
O tom adicto da civilização contemporânea não é sem conexão com o rechaço generalizado à ordem simbólica, que parece obter como desdobramentos, ao nível da civilização, de um lado, o retorno das religiões e das ideologias totalitárias; e de outro, a ascensão vertiginosa do consumo em escala planetária, como novo imperativo, e a homogeneização que este fenômeno globalmente produz, colocando de uma maneira nova, e mais uma vez, o organismo como ponto final dos processos de institucionalização da vida em comum.
Aqui também há uma cifra, o chamado “refugo humano”2, que se multiplica em escala diretamente proporcional à expansão global das sociedades de massas consumidoras, instalando uma crise aguda e permanente na indústria que se ocupa de sua “reciclagem” ou de sua “remoção”: a centralidade do problema da intolerância étnico-racial, religiosa, política, cultural, e a discriminação aos imigrantes, refugiados e asilados; o papel crescente ocupado pelos vagos e difusos temores relacionados à segurança, e o concomitante incremento da “indústria da segurança”, e consequente policiamento da vida doméstica, por meio de medidas de segurança pautadas em políticas segregacionistas, para que a saúde da sociedade e seu “funcionamento normal” não sejam ameaçados.
Tomando como paradigma o contexto brasileiro, o sistema penal nos dá um exemplo paradigmático: seguindo a diretriz da construção de novos dispositivos de encarceramento e de punição com a perda da liberdade, está o projeto de lei em discussão no Congresso Brasileiro, que defende a redução da maioridade penal dos 18, para os 16 anos. Medida que, tal como argumenta o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares3, soa absurda aos olhos de qualquer cidadão minimamente sensato, independentemente de sua orientação política: Que sentido haveria em defender a ampliação das responsabilidades de um sistema falido? Que sentido haveria em propor a extensão do espectro de abrangência de um modelo que sabidamente não funciona e produz o inverso do que lhe cumpriria? Como uma instituição reconhecida como degradada, perversa, violenta, torpe e brutal, além de contra produtiva, poderá ser encarregada de assumir atribuições ainda mais exigentes e complexas? Vamos propor o que não funciona para os adultos, para os adolescentes? Como isso pode passar pela cabeça de uma pessoa que se supõe racional? E aqui estamos, pois parece que propor algo que faça algum sentido, ou que seja minimamente dotado de alguma racionalidade, não parece dar o tom à política, regida pela indústria da remoção do refugo, neste caso, do “refugo humano”.
Para o filósofo Newton Bignotto4, o consumo como traço homogeneizador da cultura vem se constituindo neste século como uma nova expressão da biopolítica. Como consequência, constata-se um incremento da intolerância e da segregação, que costuma se fazer valer, nas atuais sociedades de massas consumidoras, como rejeição à diversidade e recusa da alteridade nas suas mais variadas formas de expressão. No mundo regido pelo consumo, as trocas já não se fundam no registro simbólico, são regidas pela uniformidade da satisfação dos imperativos de gozo do momento. Conforme argumenta Jacques-Alain Miller, em “Réponse à Rancière”5, na contra mão da derrocada dos universalismos judaico, cristão e comunista, assistimos a franca hegemonia dos universalismos capitalista e mulçumano, e seu irrevogável desdobramento: a transmutação do universalismo, ao menos no caso do capitalista, para a homogeneização forjada pelo “todos iguais pelo consumo”, e os refugos gerados pela proliferação frenética, compulsiva e ilimitada de objetos feitos para movimentar e retro alimentar o mega mercado global.
Os efeitos não apenas chegam à clínica, mas a perpassam. Nas instituições, nos consultórios, nas ruas, através do recurso cada vez mais comum às passagens ao ato como tentativas de haver-se com aquilo que não se compreende, ou como modo de defesa frente a algo vivido como insuportável. O simbólico parece rarefeito, quando não, inoperante, o que sugere uma primazia do eixo imaginário em conexão direta com o real; corriqueiras são as saídas pela agressividade e o ódio ao semelhante, como moedas de troca frente aos choques dos gozos, a esgarçar o tecido social; é neste estado de coisas que, não raro, se descortina uma vontade imperativa de destruição daquele que encarna o gozo rejeitado.
Outro capítulo a ser investigado é o da intolerância ao discurso do inconsciente, e mesmo, ao discurso analítico, e o manejo preciso que a clínica exige do praticante. Nota-se uma primazia da mostração em detrimento do exercício de elaboração e de implicação subjetiva, o que tem consequências para a vida, para a clínica, e também, quanto às formas de constituição dos sintomas e a direção dos tratamentos.
Se o corpo parece funcionar sozinho; se não há ser no corpo, existe o acontecimento. Os acontecimentos de corpo e suas marcas de gozo. Tais marcas parecem comportar um ponto de foraclusão para todo e qualquer sujeito, vindo a funcionar tal qual um paralelo a atravessar a verticalidade da clínica estrutural, aproximando entre si, neste exato ponto, as clássicas estruturas clínicas, antes absolutamente separadas pelo bastião do Nome do Pai. A clínica do falasser é uma clínica do acontecimento de corpo, de sua localização e nomeação. E assim, onde se apresentará a intolerância ao discurso analítico, e mesmo, ao inconsciente, lê-se as marcas da não relação, dos pontos de exterioridade ao simbólico, as marcas de gozo aí fixadas; e inventa-se, com o recurso à palavra ( e não menos, aos silêncios ), uma arte de manejar lacunas, e uma arte de extrair do lacunar, nomes, nomeações, conjugados no singular.
A última clínica de Lacan, com seus arranjos singulares, parece estar mais sintonizada com as novas possibilidades que esse simbólico contemporâneo horizontalizado e rebaixado começa a delinear. Uma amarração, um efeito de significação, ou de nomeação, podem constituir sintomas, sem o apoio do Nome do Pai.
Notas:
1 Matéria de Renan Fagundes e fragmento do relato da jornalista Milly Lacombe, em “A vergonha em rede”, Revista Trip, p.58-62.
2 Bauman, Z. Vidas desperdiçadas, p.106-109.
3 Soares, L.E. “Sobre a maioridade penal”. Disponível em: http://diretorianarede.com.br/luiz-eduardo-soares-e-sua-opiniao-sobre-a-reducao-da-maioridade-penal/
4 Bignotto, N. “Homogeneidade e exceção”. In: Curinga. Belo Horizonte: EBP-MG, n.35, p. 72-14.