O real do sexo, a imagem do corpo e seu consumo na adolescência
Laboratório: “A criança entre a mulher e a mãe” • Rio de Janeiro (RJ)
Ana Martha Maia (resp.), Amanda Nunes1
Uma adolescente posta no Facebook uma fotografia de sua própria genitália, tirada de pernas abertas. Provocação, transgressão de leis morais, tentativa de ferir o pudor, violação de tabus, indagação dirigida ao Outro sobre o que é uma mulher – são muitas as possibilidades. O que se sabe é que, em grande rede social, com esta imagem, ela torna público, o íntimo.
O ato obsceno de expor a sexualidade fica fixado na imagem que toca, afeta, causa malestar na equipe pedagógica do colégio em que estuda. Ela se aproxima de jovens do mesmo sexo, fazendo supor uma escolha pela homossexualidade, causando assim um duplo malestar. Consideram uma “escolha precoce”, no sentido de que é desejado que ela, mais tarde, dirija seu desejo para um homem.
A diretora solicita ao laboratório que realize um trabalho com a turma e ressalta “a forma como lidam com a imagem do próprio corpo e seus cuidados”. É comum ao discurso pedagógico identificar as turmas com um nome dado a um “sintoma coletivo”. Somente casos isolados são apontados nesta experiência. Há um rapaz na turma que faz xixi e fezes na roupa, mas em nenhum momento isso aparece nas conversações. Nem a foto postada.
Entre berros e agitação, falar de amor.
A turma responde agitada à apresentação das participantes do laboratório e da proposta das conversações (de três a cinco encontros), na medida em que também é dito o porquê de estarem ali. “O que pensam sobre disso?” é um convite a tomarem a palavra, na primeira conversação. Mesmo aos berros, surge o tema do amor.
Na passagem lógica da adolescência, “a queda dos ideias, o abandono das identificações parentais e o gozo indizível se presentificam na estranheza com o próprio corpo”2. Comumente relatam que o encontro com o real do sexo angustia e traz o sentimento de solidão. Estes adolescentes querem falar de amor e de quando o amor falta.
Para Jorge, é cada um por si, nos momentos em que acontece alguma coisa. Desapontada, Sabrina diz que são colegas, e não amigos. Uma participante do laboratório aponta que, como ela, outros também não devem estar escutando o que é dito. Marcelo responde, em tom agressivo: “nós não gostamos de escutar e nem de sermos escutados, queremos apenas falar.”
Sem forçar um dizer, quando a oferta do dom da palavra é aceita, não se pode perder de vista o cuidado que isto requer. Nas experiências inter-disciplinares do CIEN, o limite para intervir considera os efeitos e o manejo da transferência nas conversações. É o momento de encerrar esta. Raquel e Marcelo dizem que não acreditam que o laboratório retornará, “ninguém aguenta esta turma, por isso, não volta”. “Por que vocês se fazem “não-aguentáveis”? – pergunta uma das participantes do CIEN, ao se despedir.
“Turma unida”, um véu sobre o impossível
Mal inicia a segunda conversação, um aluno diz: “pensamos que vocês não voltariam”. Estão menos barulhentos. “Buscam ser mais ‘aguentáveis’”?, pensam as participantes do laboratório.
Com um tom de deboche, Jennifer conclui que formam uma “turma unida”, mas somente quando compartilham biscoitos. Todos concordam e Marcelo comenta que a comida é como uma dívida para eles: se um alimento é dado, depois será cobrado. Biscoito, com biscoito se paga!
Pedro e Roberto querem falar sobre os jogos da Copa do Mundo, mas a maioria da turma enfatiza o lado da corrupção e da miséria, são “contra a Copa do Mundo”. Jennifer reclama da falta de hospitais e serviços públicos: “e se um parente meu precisar?”
“As tormentas da puberdade” é o nome freudiano para um impossível, o encontro da ternura pré-genital com a corrente sensual, sobre o mesmo objeto da pulsão, que Freud 3 descreve, fazendo poesia: “é como a conclusão de um túnel cavado através de ambos os lados”. Para Lacan, há duas formas de dizer sobre o impossível: a relação sexual não existe, A mulher não existe. A “turma unida” vem velar este impossível.
Dificuldade escolar e desresponsabilização
A diretora do colégio procura as participantes do laboratório. No Conselho de Classe, os professores estavam preocupados. Os alunos “chutaram o balde”, ninguém “quer nada”.
As notas ruins são o tema da terceira conversação. Marcelo, Gustavo e Rodolfo contam que estão “perigando”, acham muito difícil que alguém passe de ano sem ficar em recuperação. Angélica justifica que não entendem as matérias porque houve a mudança dos professores e não adianta reclamar com a diretora porque “ninguém escuta”. Uma participante do laboratório pergunta: “mas nenhum professor escuta vocês? O que fazem durante as aulas?” Mônica e Paula dizem que não se dedicam aos estudos, conversam em sala, não fazem dever de casa e não tiram dúvidas com os professores nas aulas. Ninguém comenta ou refuta. Alguns descrevem seus medos: repetir de ano, ficar de castigo, apanhar da mãe, não ter um bom futuro. Rodolfo e Marcelo acham que é melhor ser gari. “Mas até para ser gari é preciso estudar”, diz uma participante do laboratório.
O colégio ideal.
Logo no início da quarta conversação, Rayana pergunta: “vocês vêm até quando? Podem ficar até o final do ano?”
Hoje não querem falar sobre estudos, as notas estão muito ruins e há a possibilidade de repetências. Retornam as queixas sobre professores. Alguns alunos querem sair da escola, por motivos diversos: Marcelo pela comida sem variedade que “não é tão boa”; Angélica porque a escola mudou e perderam com isso a oportunidade de estudar na universidade de graça (havia um acordo de bolsas com uma instituição privada); e Jennifer não gosta do uniforme, quer usar jeans. O colégio público aparece idealizado – gratuito, oferece alimentação, os professores ensinam e não há avaliação rigorosa. “Será?” é uma pergunta lançada para furar esta etiqueta.
Com a mudança do apoio financeiro do colégio, houve a demissão dos antigos e a contratação de novos professores, a mudança do projeto pedagógico e uma reestruturação que inclui perdas. Todavia, as conversações contribuem para esclarecer que isso permitiu à instituição prosseguir e que não há “tudo” em um colégio só, não existe O colégio. E cada um precisa dar de si para apreender o que é transmitido nas aulas.
A friendzone
O tema do namoro toma toda a quinta conversação. José – de todos, o que namora há mais tempo – pergunta: “a friendzone conta?”. Indagado sobre o que é isso, explica: “existem dois amigos e um deles começa a gostar do outro para namorar e faz o pedido, mas se o outro não aceita e diz que é só amizade entre eles, pronto! Ele fica na friendzone, na zona da amizade”. Inventam diversas formas para lidarem com os encontros e desencontros.
Um encontro, a mais.
Finalizadas as conversações, os alunos convidam as participantes do laboratório para um encontro “de despedida”. Um resto a dizer? Preparam tudo e se organizam em funções, desde quem serve o lanche até a limpeza da sala. Cada um fica encarregado de levar alguma coisa. Tranquilos, recebem “as convidadas” com alegria e pedem para as conversações não terminarem.
A demanda de mais uma conversação foi respondida levando em conta o trabalho que se faz único, a cada vez, na prática do CIEN. Para estes adolescentes, e tendo em vista a questão que formulam ao longo das conversações, era importante um sexto encontro com a palavra. Chegar ao momento de concluir não é garantido por um cálculo prévio de quantas conversações oferecer.
O desinteresse pelas aulas e a culpabilização do colégio é uma recusa às perdas que se fizeram necessárias na nova organização da instituição. E a parte de cada um? Durante o lanche, o momento de concluir: “se queremos passar de ano, temos que estudar”.
Ainda sobre a imagem no Facebook, para concluir
Por motivos outros, a última conversação com a diretoria e coordenação aconteceu um tempo depois. Puderam considerar, para além de particularidades, como está sendo difícil para estes alunos perder “O colégio” em que estudaram desde a creche. De fato, este em que estão cursando o último ano do Ensino Fundamental, é outro.
Realizando conversações desde 2009, o laboratório “A criança entre a mulher e a mãe” observa nesta prática que cada experiência traz um impasse e um imprevisto. Desta vez, foi o silêncio sobre a fotografia postada no Facebook. Que relação tem esta mostração da adolescente com a cultura contemporânea?
Miller4 situa a época freudiana da moral civilizada como o reino do Nome do Pai e ressalta que a época lacaniana dos Nomes do Pai, no plural, é o tempo em que o Outro não existe, época dos desenganados e dos errantes. E quando evoca a “clínica da pornografia”5 do século XXI, para falar sobre o inconsciente e o corpo falante, descreve a pornografia como um sintoma do império da técnica que não soluciona os impasses da sexualidade. A ordem simbólica já não é mais um saber que regula o real, mas um sistema de semblantes que se subordina a este, sistema que responde ao real da relação sexual que não existe.
No mundo virtual, o objeto está à mão. Neste sentido, estimula que todos sejam adictos, onde quer que o ser falante tenha acesso à internet. No campo da visibilidade, ver e ser visto são as duas faces do prazer escópico. No caso desta adolescente, em sua mostração, há uma imagem a ser consumida, inclusive por ela mesma, no retorno do circuito pulsional. Afinal, o corpo “é um mistério”, diz Lacan6 e “ tudo é exibição de corpo evocando o gozo”7 (p.121).
Referências bibliográficas
1 Atualmente, participam deste Laboratório Amanda Nunes, Ana Claudia Junqueira, Ana Martha Maia (responsável), Karina Guimarães, Luiza Sarrat Rangel, Marina Valle, Natalia Gomes, Simone Monnerat e Vanessa Carrilho dos Anjos.
Campo de investigação: a sexualidade feminina, a maternidade, a criança e o adolescente, a família hipermoderna.
2 MAIA, AMW. Entre fugas e errância, um lugar para si. Opção Lacaniana on line. Nº 8. 2012. P.2.
3 FREUD, S. (1976[1905]). “Três ensaios sobre a sexualidade”. Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, p.213.
4 MILLER, J.-A. e LAURENT, E. (2005[1996-1997]). El Outro que no existe e sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós.
5 MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante. Conferência apresentada no IX Congresso Mundial da AMP. Paris. 2014.
6 LACAN, J. (1985[1972-1973]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.140.