Trilogia das Novas Famílias
Sobre o filme de Isabel Noronha e Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
O filme de Isabel Noronha, Trilogia das novas famílias, situa de forma pungente a questão de muitas crianças de Moçambique, cujos pais morreram de AIDS: como crescer sem pais, como continuar vivendo sem poder contar com seus pais?
A resposta para essa questão só poderá vir de cada um. Daí a escolha de Isabel de escutá-los, de escutar aqueles que querem falar e que aproveitam a oportunidade oferecida pela realização do filme para contar suas histórias, ou melhor, para se localizarem nas suas histórias.
O filme nos mostra, através de três histórias, como essas crianças que perderam seus pais não ficaram à deriva, e como cada uma foi construindo seu caminho, com o que pôde resgatar de seus pais em sua memória, em seus sonhos.
A chegada de Isabel lhes deu a oportunidade de fazer algo com esses restos que aparecem nas lembranças de que não ousam falar, nos sonhos, que perturbam, nos desencontros que doem.
No primeiro curta-metragem, o caminho do Ser, é a voz que aparece como resto e marca da presença dos pais ausentes que orienta e ensina. E a questão que vai se colocar é de como fazer dessa voz sua herança e não um objeto persecutório, que parasitaria a existência deles como uma alucinação, como um imperativo do qual não pudessem se separar para construir seu próprio caminho. A voz da mãe diz que é necessário ir à escola para poderem ir além do que ela lhes ensinou e além do pai, que era carpinteiro. Para fazer da voz herança, é preciso pensar que há um além do que foi ensinado, do que foi dito, que autoriza cada um na sua construção, na construção de seu sintoma a partir desse ponto de real encontrado com a morte dos pais.
Crescer sem os pais, mas não sem o Outro. Isabel nos indicou bem, como nessas comunidades africanas, os mitos e os rituais, tanto em relação ao nascimento como a morte, dão lugar a cada um no Outro simbólico. Mas, em relação a essas crianças, cujos pais morreram de AIDS, se observa uma ruptura nos laços, pois essas mortes são consideradas como feitiçarias. Há assim uma impossibilidade de se recorrer aos rituais para sustentar o lugar do Outro como referência comum. O filme tem aí uma função na construção de um Outro sob medida, à medida de cada um, ao solicitar e produzir junto com eles uma narrativa, onde os vemos encontrar o ponto de apoio sintomático que os orienta, quando a referência aos mitos e aos ritos não consegue mais ser utilizada, ou porque não têm os recursos financeiros para realizá-los, ou porque a lógica do próprio mito os exclui como descendentes de pais aidéticos, considerados espíritos do mal.
Ao longo do filme, a narrativa de cada um vai constituindo um destinatário e se insere numa cadeia de transmissão, da qual nós, espectadores, passamos a fazer parte. Essa cadeia que vai assim se constituindo parece servir de recurso para essas crianças lidarem com a queda da sustentação nos mitos e poderem apoiar-se em novos laços de solidariedade e amizade que vão se solidificando, o que é bem diferente de uma obra de caridade.
Isso é o que nos mostra o terceiro curta-metragem, Ali Aleluia. Ali contraiu AIDS por transmissão vertical, e desde que seus pais morreram ele vive só com sua prima na sua casa de infância. Ali transmite a alegria que conseguiu encontrar nos novos laços com a filha da vizinha, que vai buscá-lo para brincar, para ajudá-lo a cumprir suas tarefas escolares e fazer suas refeições. Ela não o deixa só. Um laço de amizade que quebra o tabu da maldição que paira sobre essas crianças é um antídoto contra a segregação, e abre efetivamente um novo caminho.
O segundo curta-metragem, Delfina mulher-menina, mostra a dificuldade dessa adolescente de 13 anos em fazer o luto de sua mãe, na medida em que fica apegada à mágoa pelo abandono do pai, que vive com outra mulher e nunca procurou os filhos para ajudá-los. Vemos a exigência que pesa sobre Delfina de ter que encarnar a figura materna, o que a impede de estabelecer novos laços com seus irmãos maiores. Só com o irmão caçula consegue assumir essa função, o que a reconforta. Em seu trabalho de luto, sonha com a mãe. Parece que esse sonho lhe serve como recurso para não ter que ser ela própria a mãe. Decide então escrever uma carta à mãe, e depois confiou essa carta à responsável pelo projeto Mahalhle. Com isso cria um novo destinatário, o que poderá lhe permitir não ter que encarnar a mãe e poder receber a ajuda e a orientação de uma figura materna.
Esses três curtas metragens mostram como sair do isolamento e da solidão se utilizando das marcas deixadas pelos pais, que fazem dessas crianças e adolescentes portadores das fantasias parentais, de seus projetos não realizados, de suas ambições pessoais. Atravessados por essas marcas eles vão construindo suas modalidades próprias de estar no mundo e se inserir no discurso que sustenta os laços naquela comunidade.
O CIEN agradece a Isabel Noronha sua presença no debate sobre o filme, que abre certamente para novos encontros dos quais possamos tirar consequências de sua experiência. O cinema, como elemento êxtimo, poderá fazer parte da reconstrução de laços por parte daqueles que se sentem abandonados pelo Outro, quando a falta que o constitui, corre o risco de ser tamponada, quando não se podem situar no mito e no que este circunscreve como impossível.
Quando as novas famílias se constroem a partir da criança, elas precisam situar esse ponto de impossível para poderem lidar com os laços horizontais que ganham toda sua prevalência com a ausência dos pais.