Assepsia com respeito ao traço, à marca, à memória: defesa ao trauma
Entrevista de Mercedes de Francisco responde à Marga Auré
Marga Auré: Como você compreende o conceito do trauma?
Mercedes de Francisco: Minha primeira associação com o traumatismo é o neologismo de Lacan – troumatismo, que introduz o buraco no interior desta palavra. Esse buraco remete à impossibilidade da relação sexual e, ao mesmo tempo, aproxima-nos à marca, à letra.
A vulgarização do traumatismo levou a que, socialmente, ele seja considerado como algo de que se deva defender, do qual se tem que evitar :não obstante, toda uma série de respostas promovidas preventivamente são condenadas ao fracasso.
É assim que se rouba da experiência traumática seu valor de marca singular impossível de coletivizar.
Um fato em si mesmo não pode ser considerado traumático. Poderá tomar esse valor somente se para o sujeito se tratar do encontro contingente entre o gozo do corpo e a palavra.
O troumatismo inaugura o campo do sinthoma – o que não cessa de se escrever – amarrando o “não há relação sexual” com o “há” disso que se repetirá todo ao longo de nossa vida.
Marga Auré: O que a psicanálise de orientação lacaniana pode propor diante de um traumatismo?
Mercedes de Francisco: Primeiramente a psicanálise de orientação lacaniana propõe não se guiar pela ideia de “para todos, igual”. Socialmente são catalogados os fatos que são supostos, em si mesmos, serem traumáticos e, a partir disso, os psicólogos especializados “em trauma”- desculpem-nos a ironia – vão ajudar as vítimas. De certa maneira elas são homogeinizadas sob o mesmo significante.
Estamos num tempo marcado pelo choque, pelo que chocante e isso pode ser confundido com o que, para a psicanálise lacaniana, é uma experiência traumática.
Walter Benjamin, apoiando-se em Freud, demonstrou-nos que, na experiência do homem moderno, a recepção de choques converteu-se numa regra e a consequência disso é uma tomada de consciência rápida, uma defesa face ao impacto, pois há um fluxo incessante de excitações que colocam à prova a tolerância dos sujeitos. Esse enorme aumento da tolerância frente aos choques que se produzem de maneira contínua, tem como preço esterilizar a consciência para a experiência pois o que é característico do choque em relação à experiência é não deixar traços, de se dissolver na consciência na medida em que é tolerado por ela.
Essa assepsia com respeito ao traço, à marca, à memória, é uma forma de defesa frente a uma realidade permanentemente preenchida de estímulos impactantes. Suportamos, cada vez mais, imagens desconcertantes que proliferam através da televisão, da internet, do cinema, etc … que nos provocam um sentimento desagradável mais que pode ser facilmente superado. Defendemo-nos em nos tornando insensíveis, mas, de certa maneira assim também perdemos nossa capacidade de viver uma experiência, de que o acontecimento nos deixe marcas, de que a memória nos enlace à nossa própria narração.
A psicanálise propõe uma experiência com a palavra, com a pontuação, com o “poético” enlaçado ao real. Ela propõe ao ser falante que não renuncie à dignidade da experiência traumática, isto é, uma experiência com o real que deixou um traço, uma marca.
Marga Auré: Como você compreende a frase de Eric Laurent que está na brochura das Jornadas 43 da École de la Cause Freudienne:
“Depois do trauma, é necessário reinventar um Outro que não existe e inventar um caminho novo que se desenha preferentemente pela via do insensato do fantasma e do sintoma”.
Mercedes de Francisco: Esta frase me sugere a relação com o acaso e a contingência. Na experiência traumática produz-se o encontro com a inexistência do Outro pela via do acaso, do imprevisto, do que não conhece nenhuma lei. A partir desse acaso, organiza-se, de forma contingente, uma lei que responde ao enlaçamento singular, – como se disse antes -, do gozo com o significante e que determinará nossa vida.
Do puro sem sentido do acaso organiza-se uma escritura sinthomática e, através da construção fantasmática, um sentido.
Esse momento inicial que é o trauma e ao qual se retornará a cada encontro em nossa vida que o evoque, é o que mais nos aproxima a esta experiência do real sem lei frente ao qual nos defendemos.
Para exemplificar esse último ponto, evocarei um encontro traumático, arriscado, vivido por mim em minha juventude. Frente a um mau encontro com outro desconhecido e violento, num momento de certa vulnerabilidade ‘alegre”do corpo, a resposta que, sem pensar, encontrei __“rogar-lhe” __ permitiu parar essa violência e apenas sofrer pequenas lesões físicas. Poderia dizer que consegui sair incólume, no sentido objetivo, mas é evidente que não foi assim, no sentido subjetivo.
Frente a este encontro imprevisível, arbitrário, sem lei nem causa, o primeiro que surge é uma pergunta: porque comigo?
As respostas que o sujeito dá a essa questão é a maneira de se defender frente a esse “real sem lei”, “sem sentido”, “sem causa”.
Essas respostas não são novas, elas remetem àquelas que o sujeito forjou no momento inicial traumático. Mas esse material já conhecido não me permitiu fechar a hiância que o “mau encontro” havia aberto. Podia reconhecer o insensato do fato e de minha tentativa de encontrar a explicação mas não era possível parar essa inércia.
Não imediatamente, mas depois de algum tempo, isso permitiu uma demanda de análise e, no percurso analítico, pode-se separar a escritura sinthomática que presidiu a vida do sujeito. “Agora”, em “cada ocasião”, essa escrita que marcou o corpo, em vez de encobrir, mostra o real sem lei, o buraco que se apresenta no interior do fato traumático.
Agradecemos a amabilidade de Mercedes de Francisco em autorizar a publicação desta entrevista concedida a Marga Auré por ocasião da 43a jornadas da ECF, em novembro de 2013.