Crianças falam! e têm o que dizer – Experiências do CIEN no Brasil

Crianças falam! e têm o que dizer.

Apresentação do livro
Fernanda Otoni Brisset1

Durante um jantar, alegria e entusiasmo temperavam nossa conversa em torno da inventividade das respostas das crianças possíveis de serem lidas na experiência inter-disciplinar de laboratórios do CIEN no Brasil. Foi quando sonhamos em recolher, numa coletânia, a orientação lacaniana que anima esta experiência, a partir de vinhetas e conversações entre laboratórios. Judith Miller, naquela ocasião, disse-me: “As crianças falam!” Os laboratórios do Brasil, de forma clara, trazem o saber vivo das crianças, sua pontualidade real e autêntica. “Isso é o CIEN!” Decidimos publicá-la!

Reunimos uma comissão editorial responsável por recolher vinhetas e conversações. Desta comissão, Ana Lydia Santiago, Judith Miller e eu, tornamo-nos responsáveis por cuidar da edição e organização da obra. O projeto foi-se desenhando, aos poucos, a partir da leitura das vinhetas que iam chegando, impasses inéditos brotavam das experiências dos laboratórios, de norte a sul do país. Estabelecemos conversação viva com os autores, via email, telefone, skype, what’s up e surpreendentemente, vimos acontecer, no decorrer dessas conversas e em seus intervalos, as enunciações singulares que deram forma a esse livro.

Animadas pelo entusiasmo desse acontecimento, seguimos suas pistas, extraímos o ouro dessa experiência. Decidimos apostar na forma clara, simples e viva de contar a experiência e oferecê-la ao alcance de todos aqueles que se ocupam da criança e do adolescente, hoje. Procuramos publicar nesse livro uma formalização do que no Brasil se realiza de forma única, como experiência inter-disciplinar do CIEN. Uma formalização que prescinde das elocubrações teóricas, na condição de se servir do saber autêntico que brota da experiência. É um livro de experiências, como ensina a prática dos laboratórios do CIEN.

Afinal, o momento atual não está para brincadeiras e toda criança sabe disso. A psicanálise de orientação lacaniana não recua face aos impasses de seu tempo. Fizemos desse livro um testemunho vivo de que é possível ler o que a criança sabe e tem a dizer sobre a infância hoje.

No embalo desse entusiasmo, com muito prazer apresento ao leitor pedacinhos dessa obra recheada com o desejo de CIEN.

Boa Leitura!

O que pode a psicanálise na era das crianças sob controle!

Hoje, as crianças solitárias passam muito tempo na Internet, discutindo ou jogando em rede, ou diante da televisão. Todas essas telas olham essa infância negligenciada, ocupam-se dela e instalam uma dependência que a criança vai encontrar, novamente, quando estiver maior, nas ofertas dos mercados de drogas adaptados à adolescência2.

Lynda Benglis, Scorpius, 1982

Vive-se, hoje, em torno de um mercado diversificado, em que “cada um goza sozinho com sua droga”3 – Internet, Facebook, trabalho, esporte, sexo, alimentação, objetos de consumo da mais nova geração e outras. A própria criança, exposta como objeto de gozo desta época, encontra lugar em tal lista, como algo a ser protegido, cuidado, vigiado e controlado – um objeto precioso. Assiste-se à compulsão generalizada para assegurar os direitos e o interesse maior das crianças. Esse “espírito zeloso” para com “Suas Majestades, os bebês” serve-se de protocolos de conduta a fim de garantir a qualidade da gestão desses corpos e de uma série de regulamentações, cuja visada final é controlar a produção e desenvolvimento das crianças.

O mundo em que o gozo está em primeiro plano é um mundo com dificuldade de encontrar seus limites. Haja vista os sintomas atuais, cuja força pulsional perturba o laço social. Diante dessas respostas, o discurso das burocracias sanitárias e os programas educacionais do Governo “apressam-se a responder a essa urgência, propondo a aprendizagem comportamental para todos como único remédio”4. Entretanto essa urgência que passa a reger a lógica política de uma sociedade de vigilância e controle, fazendo suas injunções precisamente no campo das pulsões, “tem consequências irrespiráveis para o que chamamos de humanidade”5 e impõe à psicanálise apresentar sua responsabilidade política no século XXI. Que podem os analistas?

Desde os primórdios, a psicanálise recolhe seus efeitos exatamente por destituir a crença na solução universal, nos imperativos da tradição, no pensamento único, diluindo as identificações em massa e sustentando a vitalidade de um furo operante. É tarefa dos analistas fazerem falar os impasses da civilização e, no ponto em que vigora a fórmula “para todos”, realizar a subversão necessária, para dar lugar à solução de cada um.

Operar como “pulmão artificial”, nas palavras de Lacan, implica abrir lacunas para passagem no falar de um gozo singular, assegurar o direito dos sujeitos se manterem vivos, ao diluir o poder asfixiante e normatizador que rege os dias atuais. Trata-se de convidar a falar, a praticar a associação livre inaugurada por Freud, visando liberar respiradouros ante as “avalanches das exigências do mestre contemporâneo”6. A aposta é a de que, por essas aberturas, possa emergir a potência inventiva e subversiva que advém do mais singular de cada um. Por essas veredas, o Cien apresenta-se como um dispositivo da ação lacaniana!

María Magdalena Campos-Pons, “Not just Another Day”, 19997

O Cien: um pulmão artificial

Como ensina Judith Miller8, “o Cien é uma dessas instâncias que resultam da concepção que Lacan tem das diferentes tarefas que ele espera dos psicanalistas de suas Escolas, para estarem, como esclarece, à altura de seus deveres nesse mundo”. Por intermédio dos Laboratórios de que participam, em instituições por onde passam, instalam a aposta nas Conversações – um dispositivo em condições de abrir intervalos para conversar juntamente com outras disciplinas e campos de saber, e fazer falar as desordens, dificuldades e urgências trazidas por crianças e jovens, mediante atos e sintomas. Por essa via, o Cien dialoga com outros discursos e disciplinas, sem se deixar engolir por eles, criando brechas para soluções singulares das crianças exatamente onde governam os significantes universais e transmitindo a operação analítica como um ato político onde quer que esta se apresente, como esclarece o testemunho de Ana Lydia Santiago:

Se a invenção do passe pode ser concebida como um ato político de Lacan, em relação ao futuro da psicanálise, a política do Cien, na mesma direção, visa a tocar algo novo que concerne ao real inerente à extração de um resíduo, um desejo inédito, uma marca singular, que faz com que um não seja comparável a qualquer outro.

Por sua ação, a experiência do Cien no Brasil tem podido colocar em evidência o que sabem as crianças e adolescentes. Esses pedacinhos de saber, quando recolhidos, permitem indicar uma orientação política, inter-disciplinar, para dirigir as crianças até onde seu desejo as conduz. A inspiração desta coletância nasceu da determinação de reunir esses resíduos de saber depositados nas Conversações dos Laboratórios numa obra e, assim, poder transmiti-los, apostando na sua potência de arejar a vida para que a história continue, segundo o desejo de Lacan e o nosso.

Os trabalhos apresentados neste livro expõem, de forma simples e exemplar, como crianças e jovens, por meio de suas respostas, invenções e “traquinagens”10, resistem, de diversos modos, a ser sufocados pelas fórmulas rígidas que o Senhor lhes reserva. E mostram, também, como são vivazes, quando se trata de escapar das garras do controle e fazem tumulto nas escolas, comportando-se como demônios, sempre que os mestres os tratam como “otários”11. Seus sintomas interrogam os planos de governança e, em certa medida, fazem objeção às injunções dos amos modernos, demonstrando que não existe norma universal nem exame científico, que possa dar a resposta final sobre a causa do desejo.

Nadando contra a corrente, as Conversações operadas pelos Laboratórios do Cien em espaços inter-disciplinares das cidades propõem investigar, no mundo contemporâneo, o que nele atua como elemento perturbador e não cede aos poderes do formalismo, atualizando a função vigorosa do mal-estar na civilização, incrustrada no interior do discurso das boas intenções.

Os leitores verão, nos textos que compõem esse livro, a subversão provocada por um adolescente que “passa a conversa” na “polícia que queria pilantrar” e consegue reconduzir o sistema aos trilhos legais12. Ao dar lugar a esse elemento fora da ordem, o impasse revela-se, localizando o que de perturbador escapa da montagem discursiva das instituições, trazendo à cena o que foi “jogado para debaixo do tapete”. A Conversação reintegra esse resto à ordem do mundo, acolhe o impossível de controlar e o mal-entendido da discórdia da linguagem no cerne do laço social.

A palavra, quando enunciada, gera consequências. Se o discurso do mestre tem a função de fazer calar, pois empresta um sentido a mais, a Conversação orienta quanto ao fato de que a palavra serve para revelar um sentido a menos, conectado ao desejo em causa nos seres falantes. É o que ocorre no caso de um menino que, ao falar aos professores que insistiam em ver numa suposta homossexualidade a razão para protegê-lo das violências verbais de seus colegas, faz saber que, para ele, o que não cessa é o real da violência familiar alojado no sintagma “fazer xixi assentado”, que o remetera a um traumatismo fora do sentido e impossível de ser dito mais além do instante de ver a orientação sexual do jovem13.

Brittany Kubat

Etiquetas embebidas de sentidos morais vão perdendo sua consistência imaginária e dando lugar ao surgimento do detalhe singular em jogo, sufocado por categorias universais. Crianças com diagnóstico de autismo, câncer, hiperatividade, obesidade e outros interrogam Serviços ao se recusarem a vestir a camisola prêt-à-porter14. Quando se dispõem a escutá-las, os profissionais podem inventar formas de acolhê-las, mais além da receita dos manuais que padronizam as condutas.

As Conversações dissolvem as etiquetas e, consequentemente, as respostas da patologia deixam de ser suficientes15. Esses efeitos saltam aos olhos, nos espaços das Conversações do Cien. Ao falar do mal-estar que perturba, acontece de “tomar gosto” pela palavra16, na trilha do bem dizer. Mesmo que o discurso analítico não esteja presente como tal, sua transmissão está no coração dessa experiência.

Atuando em diferentes campos, mas de “antenas bem ligadas” à variedade das práticas contemporâneas, os Laboratórios recolhem as dificuldades atuais que envolvem a criança, cujo corpo, tantas vezes etiquetado por diversos discursos que dela se ocupam, se agita, cala, perturba, desobedece. A política do Cien faz surgir, na rotina do trabalho inter-disciplinar, um intervalo para se conversar e, pelas gretas, torna possível ler o momento atual, escutando o saber da criança e suas respostas frente a impasses da presente civilização.

O que a criança ensina?

Crianças e jovens, por onde passam, revelam sua leitura sobre o mestre de seu tempo, bem como as saídas que encontram para não se deixarem sufocar pelos significantes dominantes. Às avessas, as respostas das crianças “furam” o cerco que lhes é destinado e inventam saídas para evitar esse enquadramento geral. É o que revela uma adolescente que, respondendo à Técnica do abrigo que queria lhe aplicar uma ortopedia de comportamento, afirma: “Nós não é fácil. Se nós fosse fácil, nós ‘tava em casa”17. Dessa forma, ensina a ela que, para trabalhar em instituições como aquela em que se encontravam, é preciso saber abrigar o singular de cada um. O que não cessa no mundo dessas crianças e adolescentes é o espaço de um lapso e, pelas brechas, todos sabem que “vida de distraído é sempre cheia de surpresas”, como diz Guimarães Rosa.

Se, por um lado, a fábrica de etiquetas e regulamentações trabalha sem parar, por outro, surpreendentemente, observa-se que isso não “cola” mais como antes. A infância pulsante não se deixa controlar e segue seu curso decididamente, perturbando a ordem geral, de forma criativa ou mortífera. Parece que, quanto mais o amo insiste em enquadrar o fazer de crianças e jovens de forma protocolar, de acordo com as etiquetas à disposição, mais a resposta deles pode ser excepcional. Um sociólogo, esforçando-se em avaliar a arte de um jovem por meio de rótulos específicos, pergunta-lhe:“O que você faz é pixação ou grafitagem? E o adolescente responde: “Sim, eu grapixo!”

A perspectiva é de se construir, a partir da fala desses jovens, uma autoridade que lhes permita sair de seus bandos e da segregação aos quais foram lançados, conferindo a eles, a partir daí, um lugar de responsabilização pelos seus atos. Eis como entendemos, a partir das Conversações, o que é uma autoridade autêntica: uma autoridade que não se pode apoiar sobre um poder exterior e impessoal, pois é questão de presença e de saber fazer.18

Quando a “solidão da massa”19 desenha seus contornos, resta a cada sujeito responder por sua arte e seu artifício – desde sempre inclassificáveis –, saber fazer e responder por seu sintoma, uma vez que “não existe o Outro do Outro para operar o julgamento último”, como ensina Lacan20.

Philippe Pastor, The hearts21

O Cien-Brasil testemunha e transmite, nas Conversações que realiza, uma abertura no “alongamento do instante de ver”22. “Uma Conversação pode fazer vacilar os significantes mestres que regem um fazer protocolar com base em um suposto poder – potência surda e mortífera”. Por essa via, ao se interessar pela palavra de cada um, abre-se a um “saber fazer” com tais dejetos, “a partir da potência viva que decanta do saber dos jovens”23. Afinal, as crianças inventam e surpreendem o mundo com seu modo singular de traduzir o seu mais íntimo inclassificável.

“O que será o amanhã?” […] Eu fico com as respostas das crianças…”

O que se tem hoje foi, outrora, a avant-garde. A criança e os jovens são sempre a vanguarda. “Eles falam, pensam e inventam moda por toda parte, na escola, na rua, nos hospitais, nos tribunais , desde que haja pelo menos um disposto a escutá-los sobre o real de sua época e os impasses que lhes concernem”24.

As ressonâncias dos impasses da civilização atual vão-se desvelar aos leitores, ao lerem esse livro. Nele, deposita-se a aposta nas invenções das crianças e adolescentes de hoje, no seu saber fazer, na sua decisão apaixonada pelo futuro, traço fundante da juventude de cada época. As crianças e jovens são o futuro. Cabe-lhes, pois, inventar suas saídas para os impasses que vivenciam no presente, visando ao futuro que os aguarda. Essa nova geração, que está falando por meio de seus corpos, de seus sintomas, porta um saber em condições de inventar a bússola que nos levará ao amanhã.

Este livro é um convite para abrir os pulmões e escutá-la!

Agradecimentos

Agradeço a todos os autores que com sua palavra deram vida e consequência a esse livro do CIEN Brasil; agradeço a Comissão de Orientação do CIEN Brasil, bem como, o trabalho rigoroso da Editora Scriptum cujo efeito se mostra no primor d’arte. Agradeço, também, a aposta decidida da Diretoria do CIEN Francophono e da Diretoria do Instituto de Psicanálise e Saude Mental de Minas Gerais, a generosidade e gentileza da equipe editorial do Cien Digital, permitindo-nos gentilmente a publicação de algumas vinhetas recolhidas no decorrer do tempo de percurso do CIEN no Brasil. Agradeço, mais uma vez, a consultoria vibrante e pontual de Eric Laurent e, por fim, o que posso dizer para agradecer a parceria alegre, amiga e arrebatadora de Judith Miller e Ana Lydia Santiago? Sem o esforço e a poesia de cada um de vocês, esse livro não veria o dia.