Da violência: docentes doentes
Laboratório Docentes doentes: deixem-os falar! • Belo Horizonte (MG)
Virgínia Carvalho
O tema da violência não é novo, mas tem se destacado no mundo contemporâneo, cada vez mais, como “pauta do dia”. Na célebre resposta a Einstein, sobre o porquê da guerra, Freud (FREUD,1933/1996, p.198) indica que se trata de um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens sejam resolvidos pelo uso da violência, assim como ocorre no reino animal. Atualmente, percebe-se um fascínio em torno desse assunto, como se pode observar no enfoque midiático. É o que destaca Miquel Bassols ao se referir à presença massiva do tema na contemporaneidade. Segundo o psicanalista, não se trata de uma “banalização do mal”, como na expressão de Hannah Arendt. Para ele, é possível verificar uma fascinação em torno da violência, como se ela fosse um “novo objeto que brilha com sua obscura presença no zênite social” (BASSOLS, 2014, p.1). E, nesse sentido, muitas vezes não se consegue distinguir mais de que violência se trata.
“A violência”, com o artigo definido, como uma personificação desse objeto, está nos noticiários, nas conversas cotidianas, nos consultórios e, é claro, nas escolas. Violência nas escolas é um tema em que essa fascinação e obscuridade se apresentam com toda intensidade, o que leva os educadores a buscarem ajuda. E, na interface com a psicanálise, procuram auxílio para lhe dar o devido tratamento. Foi o que ocorreu em uma instituição escolar que nos procurou, solicitando capacitação sobre A violência.
Nossa primeira intervenção começou por deslocar o fascínio em torno do universal do tema, tentando localizar o que se passava no âmbito particular dessa escola. “Violência: de que se trata?”. Essa questão foi o título dado ao trabalho, realizado a partir da metodologia da conversação. De que violência sofrem os educadores dessa instituição, e que os dificulta em sua tarefa de educar? – esse foi o ponto de partida para os cinco encontros que se deram com essa equipe.
“Não vou fazer nada porque não dá nada pra mim”; “não sei o que estou fazendo nessa desgraça de escola”
Ao permitir a circulação da palavra entre o grupo de professores, o que surgiu de violento não coincidiu com as manchas de sangue que extraímos cotidianamente nos noticiários. Falaram sobre mortes de alunos, professores sendo atingidos por livros, mas o que mais se destacou como sofrimento fora nomeado por eles de “violência verbal”: entre alunos; entre alunos e professores; entre pais e alunos e/ou professores; entre professores; entre professores e direção; entre a direção. Essa violência se apresentava na escola através das palavras “mal ditas” entre as pessoas. Para Lacan a violência é o que se pode produzir em uma relação inter-humana, quando não prevalece a fala.
A nomeada “violência verbal” trazia consequências importantes para aqueles professores, com sensação de impotência e questionamento de seu papel no processo educativo: “Aqui, só tomo conta de menino. Não consigo ensinar matemática”. “O que eu faço qualquer um pode fazer”. “A escola é uma mentira?”.
Os professores se queixam de que os alunos não os respeitam porque nunca “dá nada pra eles”, ou seja, não há nenhuma consequência. Acham que os alunos estão na escola por obrigação, por causa dos programas sociais da prefeitura que obrigam a presença. Mas, ao serem questionados sobre o motivo pelo qual eles próprios estão ali naquela escola, a resposta é a mesma: “estamos aqui obrigados”; “a gente falta muito – o número de faltas injustificadas que não dê nada pra nós”.
Os professores concluem que estão doentes: “docente pode ser substituído por doente”. Dizem que “ninguém quer estar na escola” e se questionam: “onde está o desejo? Não me formei porque era a melhor profissão do mundo, mas admirava essa profissão. Tinha professores que eu queria ser como eles”.
Uma outra perspectiva começa a se abrir, o que lhes permite vislumbrar a possibilidade de se querer estar na escola: “Vi, numa entrevista, um traficante dizendo que o pó é para o filho dos outros. O filho deles está na escola porque o traficante não quer que o filho siga o mesmo caminho dele. Três C: cadeia, cadeira de rodas e caixão”.
A pergunta sobre o desejo abre também para uma constatação: “se não nos deixam falar, não deixamos os alunos falarem e acabamos sendo todos violentos uns com os outros”. “A gente não sabe conversar. Pensa que isso é fácil, mas a gente mesmo não consegue”.
“Aprender a falar com fino trato”
Os docentes, que se nomeavam doentes nessa escola, quiseram “aprender a conversar”. E o fizeram nas Conversações. Concluíram que só é possível aprender a conversar conversando e isso não significa que todos tenham que concordar com tudo. Pediram ideias uns aos outros sobre como utilizar o “fino trato” com as palavras, pois somente assim conseguiriam deixar de ser tão violentos. Ouvimos, após uma das conversações, uma professora pedindo desculpas à colega por ter interrompido sua aula de modo grosseiro.
Das conversações surgiram solicitações de encaminhamento para tratamento de questões subjetivas. Também um pedido de uma conversação com a presença da direção para exercitarem o “fino trato” e, ao mesmo tempo, levarem a prática da fala para a instituição.
Com Lacan, sabemos que a palavra faz marca, traumatiza. Afinal, “trauma, não há outro: o homem nasce mal-entendido” (LACAN, 1979-80, p.12, ) dois seres falantes não se entendem. Estar inscrito em um mundo de linguagem, servindo-nos dos significantes para nos representar por eles, não é suficiente para recobrir o impossível de ser dito – o real. Este escapa ao sentido, só restando ao sujeito elucubrá-lo, o que faz o inconsciente e, até mesmo, a linguagem (LACAN, 1972-73/1895, p.188). Pois, diante do trauma, é preciso inventar alguns “truques”, estratégias, para lidar com esse buraco (trou), como se vê no neologismo “troumatisme”, criado por Lacan (LACAN,1973-74, p.40) para designar o fato de que cada um inventa um truque para preencher esse buraco vazio e traumático que é o real, nome da falta de proporção sexual.
Um tempo após o trabalho com os professores ter-se concluído, soubemos pela direção que eles se nomeiam como “uma escola que sabe conversar para resolver suas dificuldades”. Nessa escola, o recurso à conversa foi uma estratégia importante. Henri Kaufmanner (2014) lembra que “a psicanálise é uma aposta de que mais além da irrupção da violência, por detrás do silêncio, é possível encontrar os elementos para um novo laço”. Essa também foi nossa aposta.