Das nuvens ao que sai do corpo rumo ao que só se inclui por fora

Hernan Cedola

Laboratório: Docentes Doentes: deixe-os falar! • Belo Horizonte (MG)
Virgínia Carvalho1
A criança nos ensina

No campo da educação, a criança testemunha o fracasso de uma política baseada em um projeto de inclusão “para-todos”. Diante dessa dificuldade, a escola produz sintomas e nos pede auxílio para fazer isso funcionar, buscando eliminar as falhas. Miller (2005) nos adverte que “a prática lacaniana exclui a noção de sucesso”, por reconhecer que isso que falha não cessará de não funcionar. Estarmos atentos ao que como dejeto cai, ao que “faz desaparecer enquanto o ideal resplandece” (MILLER, 2010, p.2), faz-se necessário para que se opere a “fineza” da psicanálise (MILLER, 2008-9). Tal esforço, entretanto, não é possível sem uma “desinserção” (MILLER, 2008), um “estar fora dessa”. Trata-se de não estarmos submetidos à política de querer o bem, o que não é simples quando fazemos parte do cotidiano de uma instituição educacional.

Túlio, uma criança de oito anos que se fazia desaparecer embaixo da mesa da professora, apagado e distante do ouro do projeto educativo, muito nos ensina. Em especial, que dar voz ao que não se inclui (sua extraterritorialidade) pode oferecer a uma criança algum lugar nas rotinas do mundo, o que só se faz por um “desejo que não seja anônimo” (LACAN, 2003, p.369).

E.T.: o menino das nuvens

Por ocasião do início do trabalho em uma escola de educação infantil, a analista é apresentada pela coordenação a uma cartilha que descrevia a síndrome genética de espectro abundante cuja sigla é E.T. Os comportamentos, o aspecto físico e até mesmo os emocionais estavam ali escritos. Túlio era o E.T. da escola.

A cartilha fora levada por sua mãe, que o considera “um menininho diferente”. Desde o início das convulsões, aos três meses de vida, quando foi diagnosticado, ela não tira os olhos dele. Sente-se sobrecarregada por isso e aponta o pai como ausente. Gostaria de trabalhar, como antes de se casar, mas o marido não permite. Acredita na existência de uma rivalidade entre pai e filho.

Na sala de aula do segundo período, não foi difícil perceber quem era Túlio. Estava na janela, contemplando o céu e pronunciando repetidamente a palavra “nuvem”. Oscilava entre observar o desenho das nuvens e ficar embaixo da mesa da professora, sem realizar atividades. Seu vocabulário era reduzido. Além de “nuvem”, dizia “carinho” e “coração”. A professora, para não ficar tomada de angústia por não saber o que fazer com essa criança, optava por acolher seus “dias de não querer fazer nada”, deixando-o quieto. Os colegas faziam o mesmo. Quando Túlio escapava de debaixo da mesa para fora da sala, uma das crianças o trazia de volta pelo braço de modo automático. Era um dejeto da sala.

Nick Cave, Soundsuit

Extrair a nuvem?

Podemos localizar três tempos de nosso percurso com Túlio: no pátio, na sala e com a equipe.

No pátio, ele se apresentava com seu corpo, dizendo sempre “carinho” e se aconchegando com uma intimidade inapropriada. Era uma espécie de automatismo que evidenciava o quanto o corpo era um prolongamento do corpo do outro. Para a surpresa das professoras, a analista interveio recusando esse movimento e colocando um intervalo entre os corpos. Túlio perguntava: “por quê?” e, aos poucos, brincava de esconde-esconde. Passou a se interessar pela trajetória dela perguntando: “onde você vai?”.

Na sala, estava em seu mundo das nuvens e, como de costume, ao perceber a aproximação, pronunciou “olha a nuvem!”. Desta vez, porém, ao ser questionado sobre o que havia nas nuvens, falou: “Uma nuvem que parece que vai chover porque tá cinza. A chuva vai cair aqui”. E, logo em seguida: “Por que uma nuvem tá pegando a outra? A nuvem tá pegando outra”. A analista pontua que “a nuvem está indo embora…”, ao que ele categoricamente responde: “Não!”. Convidado a deixar as nuvens caminhando no céu para desenhá-las, novamente, interpõe um “não!”. A analista se dirige para sua sala e ele vai até a metade do caminho dizendo: “não!”. Volta para as nuvens e, aos poucos, vai entrando e permitindo uma aproximação. Questiona: “por que você vai embora?”. O movimento de ir embora e voltar se anuncia para ele. Movimento de alguma separação: dos corpos, das nuvens, da nomeação de E.T. Após esse momento, os encontros com Túlio foram cada vez menos ocasionais. “O Túlio parecia estar te procurando”, dizia uma professora da escola, “ficou indo na sua sala o dia todo”. A partir daí, buscamos favorecer para ele a regularidade da presença/ausência na instituição.

Com a equipe, foi necessário viabilizar a entrada da palavra como mediadora do laço com as pessoas, no lugar de onde só se respondia com o “carinho”. Para isso, sugeriu-se uma reunião de estudo do caso, com a participação dos funcionários da escola. Em geral, os professores levavam muitos elementos sobre os casos a serem trabalhados, mas, de Túlio pouco tinham a dizer. Surpreenderam-se ao ouvir seu saber sobre as nuvens a partir de minha transmissão de sua fala. A diretora sintetizou bem o momento: “Acho que a gente acaba tratando ele como um bebezinho, que precisa de carinho. Não deixamos ele crescer. Quero que ele fale comigo o tanto que você diz que ele fala!”. Após essa conversação, a escola promoveu o início de um reposicionamento com Túlio, o que não foi sem consequências.

Pelas palavras, seus dejetos extraordinários

Ele passou a falar muito e a agredir a professora em quem apenas fazia carinho. Mostrava, às vezes em ato, quando o Outro estava sendo invasivo com ele, ao que antes respondia se desconectando. “Parece que é a forma como está tentando ser alguém que diz não, deixar de ser um bonequinho” – concluíram na equipe.

Sandra CintoSandra Cinto, 2010

O interesse pelas atividades dos colegas e pela arrumação da sala se sobressaiu à agressividade. Continuava olhando para as nuvens, mas estas se ampliaram para “nuvens que andam”, “vento que balança as folhas”, “chuva que vem e vai”, trovão e raio… Começou a querer saber o que se passava em seu corpo por meio dos objetos que se desprendiam dele. Podia ter os seus dejetos, o que é diferente de sê-los. Gostava de ficar no banheiro vendo as fezes indo embora. Quis aprender a se limpar. Saiu da escola e não tivemos mais contato. Ainda se fazia necessária uma invenção com seu dejeto “extraordinário”. Seu nome, no entanto, deixou marcas na equipe, aprendizes de que as palavras valem mais que um gesto, que um “querer bem”. Túlio nos transmite a fineza de sermos ensinados pelas crianças e seus desfuncionamentos – seus “mundos das nuvens”, o que é bem diferente de tentar apagá-los. Ele nos ensina como, embora à primeira vista os ideais de “inclusão” pareçam muito humanitários, é preciso um ponto de exterioridade, um “fora dessa”, para que essa criança deixe de ser um “ET”, para que deixe de estar fora do mundo. Fica claro que suas dificuldades como “ET” não estavam relacionadas à sua desinserção, mas à sua inclusão radical: o corpo em continuidade com o corpo do outro. A intervenção orientada pela psicanálise buscou propiciar “incluí-lo fora dessa”. Criar um fora – um intervalo entre os corpos – o permitiu se abrir para novos laços. Túlio nos mostra a importância de um trabalho que leva em consideração um re-posicionamento dos professores em seu fazer cotidiano. Os pilares do CIEN nos permitem, mais do que fazer essa aposta, colher os efeitos do que ela produz.