Etiquetagem e apagamento das invenções singulares

Laboratório: “A criança entre a mulher e a mãe”• Rio de Janeiro (RJ)
Ana Martha Maia (responsável)1
Carolina Domingues
Paola Vargas
Rafaella Tavares Tinoco
Vanessa Carrilho dos Anjos
“A etiqueta… Nós nos relacionamos com simples etiquetas de uso corrente, pedacinhos de papel ou de superfícies inscrevíveis que se encontram juntas, penduradas, anexadas a um objeto para indicar algo que o concerne – seu preço, sua procedência, sua altura, seu peso -, uma partícula significante que se encontra ligada a ele”2

Robert Rauschenberg, Canto XIV, 1959

Como significantes mestres, as etiquetas classificam e segregam, na tentativa de nomear, generalizar e controlar o gozo. Neste sentido, o termo epistemo-política, sugerido por Miller3, é muito esclarecedor para elucidar o que atualmente acontece com relação à política dos saberes que concernem à criança e aos impasses com os quais psicólogos em formação em psicanálise se deparam nas instituições, em experiências interdisciplinares.

Uma pequena menina inicia a adaptação escolar em uma creche. Sempre isolada das outras crianças, não chora, não balbucia, não responde ao chamado de seu nome, não procura o olhar do outro. Seu corpo parece não ter tonicidade. Na reunião de equipe, estas observações da psicóloga levam à indicação de uma avaliação psicomotora. Um tempo depois, o pai supõe que a filha seja autista. A equipe responde com a indicação de uma avaliação neuropediátrica e uma fonoaudióloga passa a orientar os pais e os profissionais da creche na forma de lidar com a criança. As informações devem ser dadas em tom de comando, com palavras no imperativo: “Pega!”, “Dá!”

Certo dia, angustiada, a professora procura a psicóloga, não sabe o que fazer com a menina que acordou chorando muito. “O que será que ela quer?” – pergunta a psicóloga para ela. “Como vou saber?”. “Quem pode saber?” – prossegue a psicóloga. E a professora se dirige à menina: ”O que foi, você está com sono, sede, fome?” Nesse momento, o choro cessa e um balbucio se inicia: mamamama. A professora rapidamente diz: ” A fonoaudióloga disse que isso quer dizer X, Y ou Z” (palavras que iniciam com M). Será?”- pergunta a psicóloga, ao que a professora responde: ”Pode ser outra coisa, né?” e leva a menina, fora do horário de alimentação, para comer. Esta vinheta ilustra como a etiquetagem da criança supõe um saber sobre ela, ignorando seu saber autêntico, o que ela diz, do jeito dela.

A modalidade de trabalho em instituições não orientadas pela psicanálise não dá lugar ao imprevisto, ao singular, às invenções tanto do lado da criança, quanto do profissional. Nesses casos, o autista não pode ser atendido pela psicóloga porque não fala ou porque não tem cérebro. Por sua vez, qualquer intervenção do profissional é engessada em instrumentos padronizados e laudos com diagnósticos baseados nas classificações psiquiátricas. Durante a conversação no Laboratório, o testemunho de outra psicóloga:

é uma clínica da exclusão por excelência pois meu chefe exige que eu escreva Deficiência Mental em um laudo de uma criança só porque ela não consegue aprender, como se não existisse outra possibilidade, como se não houvesse ali, uma escolha.

As duas vinhetas tratam da etiqueta do autismo, não por acaso. Os paradoxos dessa classificação apontam para a extensão do termo que, atualmente, se refletem na expressão “espectro dos autismos” – no plural – evidenciando tanto a dificuldade de estabelecer o diagnóstico como “o reconhecimento de que, até o momento, não existe uma medicação específica para esta patologia”4.

Enquanto o discurso da ciência insiste em foracluir o sujeito, a aposta na contingência e na invenção é o que permite aos profissionais, também etiquetados, “enfrentar o autismo de cada Um”5. Ao final, “com quais significantes mestres ela [a criança] será marcada”?6.