“Num pedacinho azul do papel…” – trauma e invenção
Laboratório: “A criança entre a mulher e a mãe” • Rio de Janeiro (RJ)
Ana Martha Maia, Ana Cláudia Junqueira e Natalia Gomes1
Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo, com suas luzes a piscar
Basta imaginar e ele está partindo, sereno e lindo
E se a gente quiser, ele vai pousar. (Toquinho, Aquarela)
A inexistência do Outro não implica na impossibilidade de o sujeito reinventar um lugar no Outro, como nos versos desta belíssima canção da música popular brasileira, cantados por um menino, em uma das conversações realizadas pelo laboratório A criança entre a mulher e a mãe. Uma vinheta relata como foi essa experiência de invenção para ele e para as participantes do laboratório.
O trauma toca o real. Através da figura do toro, Lacan mostra como o encontro com a linguagem é traumático, por estrutura. Laurent (LAURENT, 2002) circunscreve os dois lugares topológicos do trauma: como um buraco no interior do simbólico, ponto de real impossível de ser absorvido que o analista busca dar sentido para restituir ao sujeito seus laços sociais; ou como simbólico no real, referindo-se ao que há de real na linguagem, a não-relação sexual. Nesta perspectiva, o analista está no lugar do trauma como um parceiro que traumatiza o discurso comum, visando o surgimento do inconsciente.
Nesta perspectiva, depois de um trauma, é preciso reinventar um Outro que não existe mais. É preciso então “causar” um sujeito para que ele reencontre as regras de vida com um Outro que foi perdido. (LAURENT, 2002)
A função do “analista esclarecido” (UDENIO, 2011) nos laboratórios do CIEN se articula a esse segundo lugar do trauma. Por ter avançado em sua análise pessoal, o analista contribui para que a Conversação aconteça sustentando o vazio pulsante (MAIA,2012) como ferramenta, na proposta de restabelecer um laço social possível para a criança e o adolescente. Nos tempos atuais, furar as etiquetas produzidas pelos procedimentos que buscam manter a infância sob controle, é um objetivo e um desafio, na medida em que as instituições pedagógicas funcionam sob o imperativo da vigilância.
Violência e não querer aprender
Ao chegarem ao portão, uma menina se dispõe a levar as participantes do laboratório à sala da Direção da escola. Pelo caminho, diversos cartazes: “Violência, NÃO!”, anunciando o que está para “ser visto”. Alguns metros antes, a menina aponta a sala e desaparece. Recebidas na porta pelas diretoras, a primeira cena: na sala, de castigo, um menino faz deveres e é surpreendido pelo grito de uma delas que descobre um vidro de adoçante derramado sobre os papéis, em uma das gavetas de sua mesa. Interrompendo as apresentações, dirige-se a ele: “tinha que ser você, não faz nada que preste!”. Inútil ele dizer que não havia mexido na gaveta. “Qual é a outra criança que está nesta sala, heim?!”
Alguns minutos depois, enquanto uma diretora permanece desinteressada e duas participam da entrevista, contextualizando a instituição, a segunda cena: dois meninos entram na sala. Um levado pelo outro. A mesma diretora grita: “eu não acredito, você está machucado de novo! Vocês estão vendo, é isso quase todo dia!” Um ferro havia furado a perna do menino, que já tinha um dedo da mão ferido. “Vem aqui, mostre este dedo para elas”. Quieto, o menino mostra o dedo inchado, enorme, em pus. Seu corpo, objeto de gozo, en-cena a violência que está por ali, em todos os lugares.
As diretoras se queixam da carga horária de trabalho, ausência dos pais, mau comportamento e dificuldade de aprendizado das crianças. De repente, uma se lembra do adoçante e diz para o menino ainda sentado, de castigo: “eu vou te dar um soco na cara!”. A outra completa: “devia pingar todo o adoçante no nariz dele!”.
“Eles não querem aprender a ler e escrever. Criamos um problema maior porque colocamos todos nesta turma que é agora o lixo desta escola”. A professora é chamada para contar o que se passa na sala de aula. Ela descreve a fragilidade de alguns alunos e sua dificuldade de lidar com esta turma que “não quer aprender a ler e escrever”, expressão que se repete como sintoma da instituição. Conta a história de Iuri, desamparado pelos pais desde muito pequeno, que apresenta grandes problemas com “interação e disciplina”. É justamente este menino que surpreende com esta canção.
Com a queixa e o impasse, é combinado que seriam realizadas de três a cinco conversações com a turma, dependendo de como se desenvolvessem e, ao final, com as diretoras e a professora.
Primeira conversação: a relação sexual não existe.
Entre uma agitação e outra, é difícil para as crianças escutarem e falarem sem reproduzir o que é dito sobre elas. Algumas interrogam o que o Laboratório faz ali. Outras, simplesmente, ignoram. A sexualidade é o tema levantado pela turma.
A agitação chega às cadeiras que as crianças jogam, violentamente, umas nas outras. Uma das participantes do Laboratório recorre ao discurso pedagógico, dizendo a Iuri, o menino mais agitado: “Você tem algum problema para ficar sentado?” Diante da indisciplina da turma, ela perde o controle: “Nós não viemos aqui para isso, estamos decepcionadas com vocês”. A conversação termina quando há uma briga violenta. Na porta, uma menina pergunta: “vocês vão voltar?”
Segunda conversação: quem detém o saber?
A mesma participante do Laboratório, apreensiva, solicita a presença da professora, o que inibe a turma. As meninas que “falam, falam…” ficam quietas. Os meninos que “gritam, gritam” resolvem falar e contam sobre o “bonde” (grupo formado só por eles), os apelidos – Mendiga é a feia, Adelaide (nome de uma “mulher louca”) é um menino – e sobre uma menina mais velha que destrói o bonde, “porque é forte”. A resposta da turma à tentativa de controle modifica a posição das participantes. Nas palavras de Miller: “É a criança, na psicanálise, quem é suposto saber, e é mais ao Outro que se trata de educar; é o Outro que convém aprender a se conter”.(MILLER,2012,p.9) Enquanto uma delas, por não conseguir se colocar de outra forma, neste momento, prefere não prosseguir, o desejo decidido das outras duas participantes sustenta o trabalho, a partir de então, de outro modo.
Terceira conversação: marcando a diferença
As participantes são recebidas com alguns abraços. Informam que uma não prosseguirá. “A Diretora paga vocês?” – é a pergunta que permite esclarecer a proposta desse trabalho e o lugar de cada um.
Iuri senta no colo de uma participante. Quando fica pesado, ela o acomoda a seu lado, mas ele logo levanta e se afasta da roda de conversação. O “grande desenhista” traz seus desenhos, como havia prometido. A menina mais velha diz que é difícil juntar palavras. Outra menina conta um segredo para as duas participantes e pergunta: “Vocês não vão contar para a professora, né?!”
Quarta conversação: invenções singulares
Muitos abraços, novas crianças e espaço para segredos e confissões. A Festa Junina se aproxima. O assunto, então, é pares na dança e paixões não correspondidas. As crianças cantam a música de uma novela da televisão brasileira:
Eu não existo longe de você
e a solidão é o meu pior castigo.
Eu conto as horas pra poder te ver
mas o relógio tá de mal comigo.
Durante toda a conversação, diversos profissionais do colégio entram na sala. Um briga duramente com um menino e sai. Outros três chegam com pranchetas, fazem anotações e se retiram, sem dar uma palavra. Uma participante do laboratório se levanta e canta um Rap com uma letra sobre a conversação, um convite à invenção de cada um. Mais interrupções, bronca nos alunos. Iuri se aproxima e canta:
Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva
Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel
Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu. (Toquinho/Vinícius)
Ele não arrisca um Rap, mas toma a palavra, do seu jeito. Uma letra longa, com rimas complexas, é cantada por todos, na forma que conseguem.
Outra interrupção. Dois meninos brigam com violência e a Conversação é encerrada. As meninas não gostam. Uma canta: “gosto de ir à escola e estar com meus amigos, eu gosto de aprender brincandôôô!”.
Para concluir: “é a criança que interpreta o mundo” (MILLER, 2013, p.19)
Um período longo de greve e férias interrompe as conversações previstas. Todavia, a quinta não se realiza por impedimento do colégio. Segundo uma quarta diretora: “Pensei que a presença de vocês seria por um breve tempo”, diz ela se recusando a cumprimentar as participantes do laboratório.
Existe alguma coisa do gozo da criança que a escola não consegue tratar e este excesso de energia pode levar a criança a uma certa rejeição da escola, uma agressividade, e até um ódio. (LAURENT, 2013, p.153.)
As tentativas de enquadrar as crianças em patologias da infância estão de acordo com o atual regime de controle aplicado tanto às famílias, que são constantemente criticadas por negligência, quanto à criança que ora fica no lugar de ideal da civilização, ora de gozo. A direção se queixa, traz o impasse, mas se retira. Não se implica. As invasões na sala, vigilância que inclui o trabalho das participantes do laboratório, fazem parte da série de atos violentos que surgem de todos os lugares. Paixões mortíferas estão em jogo.
E as crianças não querem falar de violência, de aprender [“assunto muito chato”]. Querem falar de amor, de meninos e meninas. “Por que aprender é chato?” – o Rap da menina explica: querem aprender brincando. Esta experiência enriquece o trabalho do laboratório, principalmente porque as crianças ensinam como é possível fazer parceria com elas e, assim, acompanhá-las em suas invenções. Como o menino que conta, cantando, o que pode fazer com “um pinguinho de tinta” que, inesperadamente, cai “num pedacinho azul do papel” e se transforma em “uma linda gaivota, a voar no céu”.