Resistir à avaliação
Mercedes de Francisco1
Um dos signos desta época é a tendência ao cálculo e à avaliação, que leva consigo a proliferação do incalculável. O uso da cifra pela estatística quer nos fazer esquecer que “não a medida,” mas “o medido”, está imerso no registro simbólico numa ordem hierarquizada pelo sentido.
Convido-os a fazerem uma incursão pelos protocolos de atuação de psicólogos condutivistas e pelas investigações neurológicas, para terem a dimensão do que se trata. Lendo somente o que pretendem medir, podemos ter uma ideia da envergadura “totalitária” deste projeto, que parece não ter autores. O que supõe nos transmitir que qualquer coisa que nos ocorra como sujeitos, como humanos, ou melhor, como “trouhumanos”, usando um neologismo lacaniano que condensa trauma, buraco (trou, em francês) e humano, é calculável. De imediato e mais além das singularidades de cada um, inclusive das diferenças psicopatológicas, produz-se um deslocamento e nos convertemos, nós mesmos, em nossos próprios avaliadores. No próprio sujeito e em sua forma de se constituir, essa tendência encontra onde se alojar.
Quem tem sido isento de comparação com o outro semelhante, mesmo sabendo que, dessa comparação, sempre finalizará com um “menos”? Por isso, trata-se de resistir (como é entendido no campo da física), pois se não opomos resistência, a inércia será esta: cada vez mais, homens e mulheres querem controlar suas vidas para que não apareça nada de imprevisto, o que leva a um aumento da angústia, ou, outra possível opção, negar as consequências das ações que realizam, acreditando falsamente estar fora do controle.
Já vemos emergir um “tudo assegurado”; a publicidade das companhias de seguros resulta cada vez melhor ao mostrar as crianças no comercial.
Crianças protegidas que não cairão jamais ao lado daquelas que nos são apresentadas na absoluta precariedade e desamparo. Nosso primeiro mundo, graças às seguradoras, pode dormir tranquilo. Aparentemente vivemos em um mundo pleno de experiências possíveis e novas, as viagens exóticas, as drogas sintéticas, a proliferação pornográfica são um véu cada vez mais espesso que torna opaca a ineliminável contingência.
Trata-se da repetição do novo, o novo caduco e obsoleto. A abundância de objetos de consumo como expressão deste capitalismo em que vivemos não se esgota em si mesma pois o que consegue é introduzir o sujeito em uma espiral de empuxo a uma satisfação que não cessa de se auto-alimentar.
Os objetos não têm importância; isso era na época de Rockefeller. Na época de Bill Gates trata-se de destruir o objeto feito para que surja o novo, e, assim, sucessivamente. Para manter a euforia do consumo são necessárias as drogas sintônicas como são a cocaína, a anfetamina, o Prozac, o Viagra, o Rubifen, et cétera. Euforia que vem acompanhada da “baixa”, a depressão no auge de nossos dias.
É indubitável que os sociólogos que se impuseram a tarefa de ler os signos de nossa época têm clareza de sua patologização. Nos países do excesso, sua população está cada vez mais afetada no terreno da subjetividade, os sujeitos adoecem e seus sintomas são a maneira de resistir a essa tendência. O sujeito não pode trabalhar, está deprimido, angustiado, quando se trata da outra cara do consumo maníaco, leva-o ao ato violento, quando levando ao extremo o controle e a avaliação de si mesmo, surge o estouro.
Vemos, assim, surgir uns sujeitos cada vez mais desorientados, e, por tanto, com mais medo, como nos dizia Freud em seu belo texto O Estranho. Desorientados – frente a que? – frente a este real impossível de dominar, calcular, predizer, tratar pelo simbólico ou pelo imaginário. Nossa desorientação está causada pela eliminação da impossibilidade.
Não se trata de nenhuma falha a ser retificada, não se trata de impotência, não se trata de déficit, de menos valia, mas nos fazem acreditar que sim.
Para Jacques Lacan essa impossibilidade se expressa na impossível fórmula da relação sexual. Não temos um saber fazer que nos oriente nas relações entre homens e mulheres.
Para encontrarmos, a única possibilidade é uma invenção, um “eureka” a partir daí.
É por isso que a diferença sexual, isto é, o “ hetero”, é fundamental para avançar nos impasses de nossa civilização.
Para nós, não se trata da questão de gênero, a igualdade de oportunidades não nos faz esquecer a diferença inevitável.
O ser humano é falante, sexuado e mortal. A palavra, a diferença sexual, a morte são inseparáveis de sua condição. Por isso, podemos nos perguntar o que supõe esta tentativa, em aparência “acéfala”, de afastar o humano de sua condição, despojando-o do poder de sua palavra, apagando sua diferença, distanciando-o de sua finitude.
Biólogos de prestígio chegaram a conceber que cientificamente poder-se-ia falar da inexistência da morte.
Cada vez mais, diferentes filósofos, artistas, sociólogos, em diferentes lugares do mundo coincidem com este diagnóstico da época, com esta tendência totalitária e silenciosa no seio mesmo de nossas estáveis democracias.
Essa tendência totalitária apresenta-se agora com uma roupagem intocável. Fala-se de neurocultura, neuroética, neuroideologia e até de neuroarte. É possível que possamos retroceder no tempo até acreditar que as chaves de nossa subjetividade tenham sido localizadas no órgão do cérebro? O que supõe esse “suposto avanço” para a filosofia, a arte, a poesia, a psicanálise, etc, disciplinas que se sustentam na condição humana? Deixando o contexto das disciplinas: o que tal “suposto avanço” supõe para a condição humana mesma? Se as sinapses cerebrais respondessem a tudo: à genética, em resumo, ao organismo, que seria dos homens?! O cinema da ciência-ficção mostra-nos ao que podemos chegar. Por exemplo, Minority Report, de Spielberg, no qual os sujeitos são aprisionados justamente no momento anterior ao cometimento do ato criminoso , eliminando toda possibilidade de eleição e fazendo da determinação um mestre absoluto.
A mass media e os políticos têm uma cumplicidade com essa suposta “ciência”, que não distingue a direita ou a esquerda, conservadores ou progressistas.Trata-se mais de uma “fé cega”, de uma fé na aparência laica, mas que encontra seu melhor aliado na religião católica.
Lacan nos advertia que a ciência afetaria tanto o real que a religião se consideraria com melhores motivos, ainda, para “apaziguar os corações”(1).
Também Lacan, “detector de incêndio” nos anos cinquenta, vislumbrou o crescimento do individualismo que levaria a irrupção da violência, mostrou o efeito que a ciência teria sobre o real e que seria acompanhado pelo auge da religião. Para o Vaticano é mais difícil aceitar o casamento entre homossexuais que certas investigações científicas.
Cada vez mais encontramo-nos com ensaístas que nos descrevem o que está acontecendo: o trabalho precário e humilhante, os laços amorosos afetados pelo imperativo do novo, do jovem, do caduco; elejo o trabalho e o amor porque eram para Freud dois pilares da vida humana. Mais solidão, mais temor, mais fragilidade. Os sujeitos com menos recursos e com mais precariedade nesta sociedade hiperdesenvolvida. E, principalmente, mais desresponsabilizados de sua própria vida, uma vida medicalizada, na qual o que menos importa é o que sucede ao sujeito, cujo ser se reduz a um organismo.
Aos sujeitos que vivem em países com índices terríveis de pobreza e doenças é-lhes subtraído o estatuto de desejante, reduzindo-os a serem sujeitos da necessidade, justamente por lhes faltar o mínimo para viver. Jacques Lacan tem páginas memoráveis sobre o tratamento da pobreza e do próximo. Interessa-nos perguntar porque um mundo cujo desenvolvimento tecnológico poderia servir para erradicar a pobreza, provoca seu aumento.
A aparente sociedade da liberdade de eleição, da satisfação dos desejos, do excesso é a mesma cara da mesma moeda. Nossa condição humana está em perigo tanto no excesso como na escassez. Os efeitos deste sistema sobre o planeta e os homens já são difíceis de evitar: mudança climática, aumento das doenças, aumento das guerras, etc. Paremos esse deslizamento. Não gosto do “apocalíptico” porque a única coisa que promove é a impotência e o medo, elementos sempre úteis para, em seguida, instaurar o controle e o terror. Diagnostica-se com clareza o que acontece, mas não se vislumbram muitas possibilidades de mudança, não se encontra a extremidade da corda que permita “outra maneira” de amarrar as coisas.
Para a psicanálise freudiana, o ter e o não ter, que correspondem às diferenças anatômicas, tiveram suas consequências, que Lacan, sobretudo em seu último ensino, diagnosticou como uma ideologia. Ninguém pode negar a genialidade de Freud quando descobre o inconsciente como resultado do encontro entre o ser vivo e a língua, quando nos mostra a importância da diferença sexual e da morte; em uma palavra, quando inventa uma prática como a da psicanálise; mas foi Jacques Lacan, quem, retornando à verdade freudiana pode encontrar o limite intransponível para Freud, o do pai, o do nome do pai. Lacan, sustentando-se na mestria freudiana, conseguiu dar um salto de lógica que ainda está por se dimensionar. Já não se trata do mais e do menos, não se trata de castrado / não castrado, não se trata de satisfação e insatisfação, não se trata de prazer ou de desprazer, inclusive não se trata de mais além do princípio de prazer, de uma barreira a franquear, de algo a transgredir. Para esta nova lógica, o homogênio, o todo, o idêntico, a exceção, podem nos levar ao pior se esmagam o não-todo, o diferente.
Sang Won Sung, ‘TV Baby’, 2010
O humano goza por ser um vivente afetado pela palavra. Trata-se de um funcionamento, não de um disfuncionamento, não se trata de nenhum déficit, nem social, nem adaptativo, nem afetivo: trata-se do modo como cada um organizou um sintoma para enfrentar a impossibilidade da relação sexual, pois, além de que cada sujeito goza à sua maneira, além desse aspecto autístico do gozo, está a diferença de gozo entre homens e mulheres, gozos que não se adéquam. Trata-se de gozos distintos que não respondem à anatomia, mas à assunção de determinadas posições sexuadas.
Por que acreditar que isso teria algo a ver com o tratamento dos problemas que nos acometem? – pode-se objetar que isso é algo muito específico de nossa disciplina, desde o conceito de gozo até a questão da “relação sexual impossível”, passando pela construção de cada um para viver, e, portanto, põe-se em dúvida sua importância para a marcha do mundo.
Na época vitoriana em que Freud viveu, considerar que as neuroses tinham uma etiologia sexual e que as crianças, longe de serem inocentes, eram perversos polimorfos, foi a pedra do escândalo; desde a perspectiva de nosso mundo atual, até pode parecer irrisório.
Jacques Lacan, no entanto, introduz a impossibilidade no probabilismo sexual. Chegou a dizer que gostaria que essa sua fórmula se estendesse como uma reação em cadeia. Mas essa época está marcada pelo imperativo do fálico-sexual_ quantas vezes, com quantos, variados ou não, etcétera – no seio mesmo da diferença sexual.
Frente a isso, apenas resta o laço social, o laço amoroso, algo que vemos cada vez mais afetado. Como já sabemos desde Platão, não existe apenas uma definição do amor. Lacan vai avançando em seu ensino até a concepção do laço amoroso que não tampone o real, nem a impossibilidade, nem o contingente. É o que considera um laço de amor inédito, porque sairia da dialética amor/ódio em sua intenção de alcançar o ser do outro. Um laço entre homens e mulheres que não se erija em monumento da completude, do harmonioso, etc, do calculável, do investimento (financeiro), do assegurado; mas que também não se confunda a contingência com a proliferação do novo, um amor distanciado do neuroamor com seu contrato adjunto e até sua data de validade, proposto por uma deputada alemã. Para isso, usei a palavra RESISTIR. Frente à tendência destrutiva somente é possível opor a resistência do nosso singular sinthoma, que nos dá a possibilidade de saber fazer aí frente ao impossível do laço e ao autístico que nos constitui. Não duvido que esta nova lógica, inclusive esta nova topologia, seja uma alternativa junto com outras, aos tempos que correm.
Se o descobrimento freudiano chegou a afetar até a economia, podemos considerar que a invenção de Lacan pode ajudar, junto com outros discursos, a mudar este mundo, permitir que a condição humana não seja eliminada e conseguir sair dessa dialética mortífera entre o excesso e a escassez, dessa tendência destrutiva que parece haver chegado à sua máxima expressão entre o capitalismo atual, ainda que devemos estar advertidos com Borges de que o abismo pode chegar a ser infinito.