A inimputabilidade e a bússola de cada um

Miguel Antunes1

Ana Beatriz inicia o cumprimento da medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) por tráfico de drogas e é, igualmente, encaminhada à escola para retomar os estudos, da qual estava evadida por um ano. Aos 15 anos cursava a 7ª série do ensino fundamental.

Era rotulada por sua família e por onde circulava como “preguiçosa” e “bandida”. Quanto mais era vista com “os meninos do tráfico” mais o imperativo familiar se fazia presente: “não vai ser nada na vida!”.

Na tentativa de fazer cair esses rótulos com os quais a adolescente se embaraçava, os responsáveis decidiram incluir na medida socioeducativa uma oferta de trabalho: a jovem, no entanto, no último dia do prazo para tal efetivação, apresenta-se sem o documento necessário, ou seja, sem sua identidade. Não apenas não se inclui no trabalho proposto, como se desliga do cumprimento da medida judicial, o que de certa forma já acontecia com seu abandono aos atendimentos. Contudo, fomos informados por um adolescente que também cumpria a medida que Ana Beatriz havia iniciado o trabalho, por iniciativa própria. Esse laço que ela consente em fazer com o trabalho permitiu que as assistentes sociais e operadores do direito no Juizado da Infância e Juventude promovessem o retorno da adolescente ao programa Liberdade Assistida.

Mesmo com esse retorno e sua inserção ao trabalho, Ana Beatriz se mostrava muito ausente e pouco produtiva, gerando o desejo de demiti-la por parte das profissionais responsáveis em acompanhá-la.

Frente à delicadeza do momento, foram realizadas Conversações com todos os envolvidos no acompanhamento da jovem – coordenadora do setor, assistente social, psicóloga da prefeitura municipal e a educadora de referência da instituição empregadora – que estavam decididos em fazer o seu desligamento. Do mesmo modo, nesse período, por diversas vezes foram realizadas reuniões com as orientadoras de referência (coordenadoras do setor onde a jovem prestava o serviço) para lhes comunicar o que a adolescente estava vivendo, pois também pesava sobre ela uma suspeita de ameaça de morte.

Cessada a ameaça, as orientadoras de referência começaram a perceber uma mudança do laço da jovem àquele trabalho e passaram a olhá-la de outra maneira, inclusive começaram a elogiá-la. A partir das Conversações realizadas, acolhiam a adolescente, não mais como uma “preguiçosa sem compromisso”.

A jovem, em seguida, anuncia sua gravidez. Os técnicos se mostraram preocupados e angustiados com o fato de uma moça tão jovem engravidar, ainda mais trabalhando na Secretaria de Assistência Social: “é inadmissível consentir com uma gravidez na adolescência”, diziam. Nesse momento foi possível construir, a partir das falas da adolescente e de sua história de vida, que tal gravidez veio como uma saída à ameaça de morte que sofrera meses antes. Frente à possibilidade de morte, ela gera e carrega consigo uma vida.

Após a conclusão da medida e o nascimento de sua filha, algumas vezes nos encontramos com Ana Beatriz pelos corredores do local de trabalho. Acompanhada da filha, exibia-a com orgulho a todas as colegas.

A partir da nova maneira em que toda a rede se apresentou para acolher a adolescente, as técnicas de referência começaram a articular para que fosse possível sua contratação no local de trabalho ou um encaminhamento direto para o mercado formal. Não sabemos desses andamentos, mas podemos verificar que Ana Beatriz se ‘incluiu fora’ da etiqueta que a vestia: “não vai ser nada na vida!” e se apropriou de uma nova maneira de circular e de se apresentar.

Frente ao caso de Ana Beatriz e de outros inúmeros sujeitos em conflito com a lei perguntamos: como fazer valer a palavra e apostar nas escolhas daqueles que são etiquetados pela justiça como ‘inimputáveis’, ou seja, não são responsáveis pelos seus atos?