Laboratório em formação Da contingência do encontro à invenção de uma bússola: o CIEN na Bahia
Mônica Hage Pereira
Com o tema “Furando etiquetas – o traço da política do CIEN”, a III Manhã de Trabalhos do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a criança (CIEN), em Salvador, promoveu um encontro com consequências. O CIEN aposta na contingência do encontro. E foi desse encontro em Salvador que algo novo pôde advir – o desejo de criação de um laboratório do CIEN na Bahia.
Vivenciando o cotidiano de uma Instituição Pública de Saúde Mental, o atendimento a crianças e adolescentes nos coloca frente à questão: o que cada um faz com o que não se controla? Recebemos, diariamente, crianças e adolescentes “etiquetados” sob o rótulo de “hiperativos”, “fóbicos”, “deprimidos”, “autistas”, portadores de “retardo mental”, e tantos outros. Essas são as marcas que lhe são atribuídas como representante de uma categoria, à qual, a partir da etiqueta, deverão pertencer. As políticas universalizantes, com avaliações baseadas em etiquetas, vêm promovendo uma infância catalogada.
Dentro da Instituição Pública, seja ela da área de Saúde, Educação ou Justiça, compartilhamos com profissionais impelidos a responder ao imperativo do controle social. O saber de cada um encontra-se obturado.
Demandados pelas escolas, pelos Conselhos Tutelares, pelas famílias, ou por outros profissionais médicos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, etc., os profissionais “psis”, por sua vez, costumam ser solicitados a responder àquilo que nenhuma outra instância conseguiu “solucionar” – as “demandas impossíveis”. É preciso, nesse momento, não sucumbir à impotência. Mas, “na impotência, colocar um ponto de possibilidade”, como nos disse Maria do Rosário Collier, na III Manhã de Trabalhos do CIEN.
Pensando nesse ponto de possibilidade, trago uma vinheta de um atendimento pela equipe do ambulatório infanto-juvenil do Hospital Juliano Moreira. M. tem 14 anos e chega, encaminhado pela colega psiquiatra, praticamente sem sobrancelhas, pois vem arrancando os pelos frequentemente. Muito inquieto, mal consegue permanecer sentado enquanto conversa. Sempre rindo, sugerindo certo desdém, me fala que o irmão, usuário de drogas, perturba-o muito: “o problemático é ele”. Sente-se injustiçado em casa, “tudo de errado, dizem que sou o culpado…”.
O pai, “já muito cansado”, diz que “não aguenta mais.” Não sabe o que fazer com M. pois ele não o obedece. Recebe queixas diárias da escola, que também não sabe como agir com esse aluno, que “não se concentra em nada”, “não assiste às aulas, “bagunça muito” e “nada aprende”. Frequentemente M. sai de casa sem autorização dos pais e fica “aprontando na rua, provocando brigas com os vizinhos.” Em um encontro, M. me pergunta se tenho facebook. Indago-lhe porque e ele diz que gostaria de me adicionar como amiga, para que eu ficasse lhe dizendo, no decorrer da semana: “M. não faça isso, M. não faça aquilo…” “Você poderia me dizer, pelo facebook, o que devo, ou não, fazer”. Bastante surpresa com essa “invenção”, hesitei em aceitá-la por não me sentir confortável ocupando o lugar de “lei” que esse adolescente me demandava. Pouco tempo depois, o pai, que também em diversas vezes me demandou esse lugar, me diz, num momento de desespero, que irá procurar o Conselho Tutelar pois precisa de “algo que faça o filho parar” e que agora a situação piorou pois M. não quer vir mais para os atendimentos. Vale ressaltar que antes disso acontecer, o pai havia me solicitado que internasse M.
Busco, com essa vinheta, trazer um pouco dos impasses que nos deparamos num ambulatório de um hospital psiquiátrico e de como muitas vezes é preciso inventar, criar um ponto de possibilidade diante da impotência. O que teria ocorrido se aceitasse a proposta virtual de M.? São pontos para reflexão e, quiçá, entrarem numa roda de Conversação. Se buscamos trabalhar na perspectiva da interdisciplinaridade, porque não debater sobre a “solução” encontrada por M., através da sua “inclusão” na lista dos meus amigos do facebook?
Questões como essa ilustrada acima, e tantas outras do cotidiano institucional, levam-nos à reflexão e constatação da importância de um lugar para debatê-las, de forma tal que as demandas que nos chegam do universo multidisciplinar (professores, representantes dos Conselhos Tutelares, etc.) possam encontrar na roda de Conversação, um espaço possível onde a palavra circule e o não saber seja suportado, isto é, um espaço interdisciplinar. Dessa forma, começamos a discutir sobre a implantação de um laboratório do CIEN ainda que, nesse momento, ele se configure como Laboratório em Formação.
Em entrevista concedida recentemente, por ocasião do XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, Judith Miller coloca que o CIEN é uma das maneiras de dizer, de inventar, uma modalidade que valoriza o trabalho social e que pode permitir a cada um dar conta da impotência.
Os profissionais, das diversas disciplinas, que participam das experiências do CIEN não sustentam uma clínica psicanalítica, mas, segundo Udenio (2011), se orientam por aquilo que os praticantes da psicanálise podem lhes transmitir do que extraem de sua formação, de sua análise pessoal – daí a denominação de “analisantes esclarecidos” – e do que sua prática analítica lhes ensinou.
Sobre isso, Miller (2012) tece um comentário: “os analistas do Campo Freudiano nos laboratórios do CIEN realizam um trabalho – não clínico – mas tendo como tarefa arranjar no mundo contemporâneo – denunciando os entraves que fazem obstáculo e os falsos semblantes que o querem calar – um espaço onde o inconsciente se torne audível. Para isso, o inconsciente deve ter um destinatário…”
As Conversações interdisciplinares do CIEN permitem, segundo Judith Miller, “abrir espaços onde a subjetividade de cada um possa encontrar um lugar.” Ao darmos a oportunidade de se tomar a palavra, atentos ao que escapa e não se encaixa nas normas, teremos a chance de “recolhermos efeitos de sujeito”.
Num mundo em que, cada vez mais, o que um sujeito enuncia encontra-se desacreditado; onde não há espaço para a singularidade, é responsabilidade do CIEN, através dos seus laboratórios, promover este espaço.
Com a expressão paradoxal “me inclui fora dessa”, proferida por um adolescente que participava de um dos laboratórios em Belo Horizonte, Beatriz Udenio nos traz, em entrevista concedida por ocasião do XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, um exemplo precioso de como cada um poderá incluir sua singularidade no mundo. Poder estar no mundo, resguardando a sua singularidade, não é tarefa simples. Teria sido essa a maneira encontrada por M. de “incluir-se” – estando na minha lista de amigos do facebook, ainda que não conseguisse sustentar, por muito tempo, qualquer vínculo, sequer nos atendimentos?