Laboratório: “Trocando em Miúdos” A experiência de analisante e o real em jogo nas escolas: Para além da mistura do ouro ao cobre?1
Margarete Parreira Miranda (Responsável)
Frente ao real que toma de súbito o espaço das instituições escolares, o analisante é colocado em xeque pelos professores, crianças e adolescentes. É usual, no transcorrer de uma Conversação, os professores, por exemplo, dizerem, sem se despojarem de intensa agressividade: “Queria ver você dentro de uma sala de aula”, desafiando o suposto saber. Mas, é dessa posição que o trabalho do analisante opera?
Como analisante, tenho de me responsabilizar pelo desejo de trabalhar em contextos tão desafiadores. Interpelo o que me causa ao intervir nos sintomas da sociedade contemporânea, apreensiva com a segregação de crianças e adolescentes nas escolas.
Como praticar esse saber não saber, pergunta Judith Miller2, como sustentar o vazio do não saber em uma prática interdisciplinar? O inter que aproxima as disciplinas seria também o marcador que as diferencia? Considero que a ação do analista se estende sem se fundir, sustentandose no vai e vem de sua prática em extensão, com sua formação em intenção e a transmissão, como nos orienta Lacan no “Ato de Fundação” (2003).
Trago, nesse artigo, uma vinheta prática de onde extraio elementos que possam elucidar pontos referentes à questão proposta: Como minha experiência de analisante me permite apoiar a intervenção em uma Conversação, levando em conta o real em jogo para cada sujeito nas instituições?
O trâmite na instituição
A instituição escolar lida com urgências, barulhos, suores, gemidos, poucos risos, muita comida – merendas, almoços, lanchinhos – silêncios, entonações variadas do dizer, indo dos cochichos aos gritos e contingências. “A agitação perturba o repouso favorável às reflexões”, dizem os educadores.
Nesse contexto, adentra pela sala dos professores, no intervalo para o café, uma professora aos prantos. Imediatamente os colegas acolhem seu choro, justificado pela agressão de seu aluno que a chamou de “vagabunda!” Cercaram-na considerando aquele estado de coisas, e aludindo referências aos comportamentos desmedidos dos alunos de hoje. A professora chorava e chorava dizendo como estava “ofendida com a falta de respeito do aluno”. Negava-se a retomar aquela sala de aula se o adolescente ali se mantivesse. Essa cena se desenrolava em nossa presença.
O que os professores esperavam de nós, já que agiam sob nossas vistas, dando a ver seu desconforto? A colega que me acompanhava interrogou: “Não vamos fazer nada?” Ao que lhe respondi: “Vamos aguardar”.
Antes de sair da sala dos professores, para coordenar uma Conversação já agendada anteriormente, me aproximei da referida professora – que ainda estava se queixando chorosa para os colegas – e lhe disse: “Se você quiser conversar, você me procura?” Ela respondeu que sim. Pretendia com aquela rápida intervenção marcar a diferença entre um lugar analítico possível na instituição, ao que Miller (2007) nomeia “Lugar Alfa”. Esse seria um lugar em que o “falar à toa” assumiria a forma de questão ou de resposta, distinto da situação que lhes ofertavam os colegas naquele momento, em que o sujeito fala o que quiser, à vontade, para “aliviar” ou “desabafar” ou mesmo para ser “consolado”.
O real em jogo e o analisante fora da situação standard
A emergência do real coloca ao analisante concernido nas instituições várias questões frente ao gozo contemporâneo. Como intervir para descompletar com seu ato uma sequência de sentidos e interpretações que potencializam o lugar do nada mortífero e da impotência? Diante do “isso quer gozar” o corte pode arrefecer o excesso de sentido. A posição do analisante permite intervir de outro lugar e restava saber em que ponto o sujeito ou aquela professora consentiria com outra oferta, diferente da compreensão e empatia que os colegas lhe destinavam. Cottet (2005) nos alerta que, “uma clínica do real que não é apenas uma clínica do sentido ou do simbólico, deve necessariamente tocar o sujeito no ponto em que sua fala toca em sua pulsão” (2005, p. 22).
Se estamos lidando com o real na instituição, como suportar o malestar produzido pelo gozo da professora ofendida diante do “vagabunda” de seu aluno, sem apressar em responder a essa demanda de amor ou de saber? Algo do real do analisante está também em jogo em seu ato. E esse real tem destino na psicanálise pura, onde se produz uma operação subjetiva com manejo mais favorável do próprio mal-estar do analisante.
Nas Conversações que se seguiram, aquela professora expressou o seu insuportável ao ser chamada de “vagabunda” pelo aluno. Em vez de buscar sentidos vários para aquele significante em sua vida ou produzir uma sucessão de significados que justificassem o ato do adolescente, interpelei: “Como se posicionar frente ao adolescente que provoca chamando a professora de vagabunda?” Essa intervenção deslocou o fluir da pulsão para outros significantes da cadeia. Esvaziado o excesso de sentido que recobria o mal-estar dos professores, estes subjetivaram questões sobre a dificuldade de lidar com esse enfrentamento diário, com as diferenças do adolescente de hoje com o de seu tempo, as dificuldades em se posicionarem como autoridade, dentre outras.
Naquele momento da Conversação, o discurso psicanalítico pode ainda interagir com a educação ofertando esclarecimentos sobre o “despertar e o exílio dos adolescentes”, seus comportamentos de risco, sua difícil travessia e a transferência para outros representantes – no caso os professores – de suas dúvidas e ressentimentos frente a angústia do “não saber a priori” sobre a sexualidade. Para Miller (MILLER, 2009, p. 2)3 “os efeitos psicanalíticos não resultam apenas do enquadre, mas do discurso, quer dizer, da instalação de coordenadas simbólicas por alguém, que é analista […]”. Os professores em Conversação buscaram outros significantes que revestissem o objeto produtor do seu mal-estar, fazendo deslocar o eixo da queixa para elaboração de respostas. Um afrouxamento foi produzido incidindo sobre o real da professora, permitindo novos arranjos libidinais, o que teve efeitos sobre sua prática.
No transcorrer das Conversações, foram produzidas pequenas e novas amarrações concluindo com o dizer dos professores acerca da mudança de seu manejo com os adolescentes. Os educadores já não se colocavam tão vulneráveis diante das “ofensas”, lidando de maneiras diferentes. Aquela professora disse: “Está mais possível lidar com os alunos: já não tomo o que dizem como se fosse diretamente para mim”. Uma professora declarou que “os alunos mudaram, pois já não estão tão difíceis”. Outros professores reafirmaram esse dizer. Interpelei: “Os alunos é que não estão mais tão difíceis?” Rimos.
Simone Souto (SOUTO, 2008, p. 12) nos lembra em referência à psicanálise aplicada aos CPCTs, que essa prática da psicanálise “põe em primeiro plano a vertente libidinal da transferência e o analista como objeto, fazendo surgir o avesso do sujeito suposto saber, mas também, paradoxalmente, o que, em última instância constitui sua sustentação e sua causa: esse objeto sem nenhum valor que o analista é”.
Para o analisante resta, então, o ganho da elaboração sobre a forma de responder em que experimenta um saber fazer correlato com o objeto a que, na transferência, ele suporta.
Naquela escola, o “analista nômade”4 é convidado a voltar.