“Prega” leve no mundo do furor dominandis

Fernanda Otoni Barros-Brisset

“Tá  dominado, tá  tudo  dominado”1,  canta  o funk na  língua dos adolescentes, num mundo “dominado”  pelas políticas de gestão das populações, pelas leis de mercado e utilitarismo  cientifico.  O controle da qualidade dos serviços, dos riscos, das pessoas, das famílias, parece visar o controle do futuro, sobretudo, através do etiquetamento e vigilância permanente sobre a infância. Mas, por outro lado, crianças e adolescentes demonstram que, no real, o que não cessa nesse mundo é o espaço de um lapso. Por essas brechas, furam o cerco que lhes fora destinado e inventam suas saídas para tirar o corpo fora da dominação geral.

Nos dias que correm, em resposta ao impossível  de controlar, a fábrica das etiquetas trabalha sem parar. Às vezes,  nem colam mais. A pulsão que não  se deixa controlar, segue seu curso decididamente, perturbando a ordem geral, seja na sua forma criativa ou mortífera.

Tom Burr

Uma musicista infantil  interroga na  conversação do  laboratório aFINARTE2: “Hoje  ensino música como antes, mas porque os alunos não aprendem?”  A resposta da patologia mental do aluno já não a convence. E  quanto mais o amo insistir em enquadrar o fazer dos jovens nas etiquetas à  disposição,  por exemplo, classificando  a  sua  arte  como pixação ou grafitagem, mais a resposta pode ser surpreendente: “Sim, eu grapixo!”

O mundo do furor dominandis está em crise e as crianças sabem!

O traço da política do CIEN – As vinhetas  levadas à conversação da III manhã de Trabalhos do CIEN Brasil, “Furando as etiquetas – O traço da política do CIEN”,  que aconteceu em novembro de 2012, em Salvador, demonstram-nos que, à  medida em que se verifica,  nas instituições concernidas ao cuidado da criança, o que Lacan chamou dos impasses da civilização, ali um psicanalista deve se apresentar, convidando cada um a tomar a palavra para falar mais sobre isso. Eis  a forma analítica de dispensar o aprisionamento ao discurso do mestre contemporâneo para dar lugar ao saber fazer de cada um. O CIEN encontra aí seu lugar como invenção, ao prescindir do formalismo do setting sem prescindir da experiência analítica nas conversações que ocorrem nas instituições que se ocupam das crianças e adolescentes. Através dos laboratórios do CIEN, a psicanálise conversa com os outros discursos, com o Outro de sua época, sem se deixar engolir por ele, abrindo alas para soluções singulares lá onde governam os significantes universais.

Aqui e acolá, encontramos laboratórios de antenas bem ligadas à variedade das práticas com as crianças de hoje. Lá, recolhem  o impasse inter-disciplinar frente à criança que fala com seu corpo agitado, calado,perturbado, desobediente, irreverente, esquisito, armado e, tantas vezes, etiquetado pelos diversos discursos que dela se ocupam.  A presença  viva da oferta do CIEN faz abrir, na rotina do trabalho inter-disciplinar, um intervalo para conversar.

O bom uso das etiquetas

Bansky

A experiência  analítica  ensina que é ao falar que a inconsistência do discurso se apresenta, que os amos caem do trono, que o nó da crença nas etiquetas e protocolos se desata. Os manuais do controle, feito de protocolos e etiquetas, mais cedo que tarde, tendem a mostrar que não passam de semblantes de nossa época.  O bom uso do semblante não se deixa colar, “prega” leve, aguardando a contingência da enunciação por vir. O saber autêntico da criança torna-se nossa bússola para ler o real, no momento atual.

Quando um adolescente foi suspenso de participar do laboratório SELEX3,  sob a  alegação de  que  outros  adolescentes poderiam  estar armados e não haveria como garantir a segurança, conforme reza o protocolo, o embaraço se instalou, até que uma enunciação esclarecida trouxe uma orientação para tratar o impasse. “Nossa arma é a conversa”. Lembrei-me do desejo decidido do colega Celio Garcia de que um dia o jovem pudesse largar suas armas e tomar a palavra.

O CIEN faz acontecer o intervalo, a abertura ao instante de ver os furos incrustados no tecido da norma rígida, no panneau das etiquetas médico, legais e sociais. Um psicanalista  ali, dentre tantas vozes, ao fazer escutar um tom e outros, abre lugar para alojar o som inaudível e vibrante do desejo de cada um. As  soluções são sempre sem par e inéditas, como cada conversação no CIEN testemunha.

Afinal, a conversação dos laboratórios do CIEN Brasil deixa  saber  que crianças e jovens inventam suas etiquetas, a boa etiqueta que lhe serve sob medida, um  por um, surpreendendo o  mundo com seu  modo singular de traduzir o seu mais íntimo inclassificável. O que hoje está na ordem do dia, outrora foi o avantvanguard. A criança vem na frente, a juventude é sempre vanguarda.  O jovem fala, pensa, ele inventa moda. Isso se mostra e se demonstra por toda parte, na escola, na rua, nos hospitais, nos tribunais, desde que haja  pelo  menos Um  disposto a escutar o saber da criança sobre o real de sua época e os impasses que lhe concerne.

“Me inclui fora dessa – a bússola que cada um inventa”

Se a III  manhã do CIEN  mostrou, de modo vívido, como um laboratório orientado pelo saber da criança frente aos impasses de seu tempo, sua  transmissão nos  permite, agora, dar  um  passo adiante. Avançemos rumo ao Encontro Internacional do CIEN, em Buenos Aires.

As  ressonâncias da Conversação de Salvador fizeram-se ouvir no argumento que preparamos para vocês, como poderão ler a seguir, no espaço Hífen. Em especial, pretendemos  com isso convidar você a enviar
sua vinheta para esse encontro, cujo tema “Me inclui fora dessa – bússola que cada um inventa”, diz de nossa aposta nas invenções das nossas crianças e adolescentes, no seu saber fazer, em sua decisão apaixonada pelo futuro, se servindo do mestre (me inclui) ao prescindir dele (fora dessa) – traço fundante da juventude de cada época.

As  crianças e jovens são o futuro; cabem à eles inventar as suas saídas para os impasses atuais visando  o  futuro  que lhes aguarda. Passemos então a palavra a eles. Eles inventarão, à sua maneira, uma nova resposta, eis aí a sua cota de responsabilidade. Uma nova geração está  falando com seus corpos,  com seus sintomas. Escutemos, eles portam o saber autêntico em condições de inventar a bússola que nos levará ao amanhã.