Saber politicamente definível em estrutura e Kynodontas
No seminário Avesso da psicanálise (1969-1970), a partir do estabelecimento de uma “topologia” dos discursos e a articulação de dependência do discurso analítico aos demais -principalmente ao discurso do mestre-, Lacan funda o campo lacaniano e o aproxima ao estatuto de campo de gozo. Dois registros habitam essa concepção de campo: o registro da linguagem, a noção de estrutura que lhe concerne e o registro da experiência do inconsciente, inconsciente tratado por Lacan como campo freudiano. Linguagem e inconsciente desenham o campo do Outro.
Em nome da política da psicanálise, Lacan formaliza o discurso analítico como refratário à Weltanschauung, “visão política do mundo”.
Delimito meu interesse: explorar as possibilidades da afirmação que segue, na qual Lacan se expressa em termos de algo “politicamente definível”:
“É desta maneira que poderíamos ilustrar esse saber que Freud definiu colocando-o no parêntese enigmático do Urverdrängt – o que quer dizer justamente aquilo que não teve que ser recalcado porque já o está desde a origem. Esse saber sem cabeça se posso dizer assim, é um fato politicamente definível, em estrutura”.
LACAN, 1969-1970, p. 84
Um saber decapitado, eis o fato político, correlativo ao nome designado por Freud como recalque originário. Estaria aí a origem da política do inconsciente, sua genealogia? A cabeça subtraída do corpo escravo, desde a origem, indica que o sujeito, – devido ao fato de que é apenas representado –, falta ao simbólico, acéfalo como ser de gozo, cortado em seu ser de gozo. Eis que “o significante-mestre, ao ser emitido na direção dos meios de gozo que são aquilo que se chama saber, não só induz, mas determina a castração” (LACAN, 1969-1970, p. 83).
Um saber de estrutura não é mesmo um saber sobre as relações entre os elementos constitutivos de um conjunto? Na teoria dos discursos sabemos que são quatro elementos que entram em jogo nas relações que um sujeito estabelece, levando em consideração que dois lhe são prévios, resultantes do Outro e diferentes entre si. Tal fato implica uma consequência que chamamos fenda, abertura, subtração, falha, que produzirá um objeto como resto. Um elemento mantém-se irredutível a cada um dos demais e nessa ordem estrutural reconhecemos o que Lacan definiu como a constituição subjetiva.
O significante não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, isto é, à utilização da linguagem como laço, e, assim, diríamos que a política situa-se sobretudo como aquilo que estabelece um laço entre um significante S1 e um outro S2.
Cabe uma nuance. A política não é um saber, qualquer coisa que faça ligação numa relação de razão, um S1 a outro S2, mas se constituindo em discurso é um laço que assegura a coexistência sincrônica dos corpos dos falantes. Estamos no terreno do gozo. Lacan afirma que não há discurso, e não apenas o analítico, que não seja do gozo.
Vemos aí o significante em vista de seus efeitos de laço. Contudo, há efeitos que não se conjugam com aqueles professados pela política da psicanálise, pois atuam numa espécie de perspectiva que conduz a atividade humana pelos atalhos do asujeitamento dos laços sociais a uma obediência cega, brutal, em nome do amor, obediência, identificação, por exemplo.
Antes de seguir nessa vertente, trago resumidamente, outro ângulo que a relação dos termos – política e psicanálise – evoca. Trata-se de uma formulação de Miller à própria pergunta sobre a incidência política na qual o psicanalista teria que encontrar seu lugar. De certo modo, diz ele, pode-se defini-la como subversiva aos ideais sociais. Ela não é progressista. Sempre existe uma parte perdida. É uma subversão que não é positiva. Levada a um ponto mais além, a política deve promover efeitos de despertar e, esse despertar, em relação aos ideais, deve incidir no gozo e na repartição do mais de gozar. O psicanalista encontraria seu lugar, portanto, na “desmistificação dos ideais”.
“É uma espécie de sabedoria política, nada mais. Existe uma tese, política, que a sociedade tem por seus semblantes. O que quer dizer que não há sociedade sem recalque, sem identificações e, sobretudo, sem rotina. A rotina é essencial. A tese fundamental que funda a política de Lacan é a disjunção do significante e do significado. Não se saberia o que quer que fosse se não tivesse uma comunidade tendo suas rotinas, para mais ou menos nos mostrar a via.”
MILLER, 1998, p. 19
A língua corrente proporciona uma homonímia fecunda da palavra “mestre”, na dupla possibilidade: figura da educação e da dominação: o que fica como nó, no mesmo significante, são os infinitivos verbais, saber e poder. Não é sem importância pensarmos que, no avesso da política da psicanálise, a ideia do saber totalizante é imanente à política. É da nossa atualidade a paixão do saber total.
Kynodontas ou Canino
Um belo e inquietante filme, Kynodontas 2009, – (Canino em português) –, vindo da terra de Sócrates, (a imprensa o associou à atual crise político/econômica da Grécia) oferece-nos a ocasião de pensar a inumanidade quando o Mestre se proclama Senhor como educador e dominador. Canino é uma alegoria que nos conduz, pelo absurdo, ao encontro de uma família que vive num mundo intramuros, descontaminado do laço social, consequentemente, dos efeitos de subjetivação. À maneira do Éden, antes da intromissão da serpente, ali vivem aqueles que jamais conheceram outra vida senão essa que lhes organiza a lei familiar: apenas com a queda do dente canino-”direito ou esquerdo, não importa”, se estaria autorizado a sair pra além dos muros. O universo desses três filhos que não dispõem de nomes próprios – são infans em corpos de jovens – reduz-se ao espaço idílico em que passam os dias a se anestesiar e a inventar jogos de resistência. Sequer as palavras identificatórias da procedência dos produtos (tipo água engarrafada), adquiridos pelo pai, – esse sim, vai ao “mundo” sendo dono de uma usina –, atravessam os muros. Os aviões que cortam o espaço aéreo da asséptica bolha são elementos para uma farsa pois substituídos por pequenos aviões de brinquedo, jogados desde o alto, no jardim, pela mãe, dão ocasião a momento “educativo”, nos moldes comportamentais da recompensa e castigo. É notável o deslizamento das cenas do adestramento dos cães e dos filhos “aprendendo” a latir para se defenderem de um gato. A criação de um código linguístico que os filhos aprendem através da voz da mãe gravada em fita cassete, sustenta essa “realidade” na qual se evita o choque traumático promovido pela língua no corpo.
Nesse sistema linguageiro, a palavra estrada, por exemplo, é definida como “vento muito violento”, assim como uma carabina é um “belo pássaro branco”. Gato? “uma criatura feroz, capaz de despedaçar um humano”. Zumbi? “uma pequena flor amarela”. Palavra/coisa, impossibilidade de metonímia e metáfora, suprema ignorância do sexual. No entanto, há o ato sexual no Éden. Supervisionado e organizado pelo pai que traz, de olhos vendados, uma jovem empregada de sua empresa, a quem paga pelo trabalho sexual com o filho. Aqui, sexo equivale à necessidade e, de fato, não produz nenhum efeito de experiência para o jovem, no sentido de instaurar a experiência traumática de onde se poderia advir um ponto de apoio necessário a um “despertar” pulsional. Sequer quando o pai designa a irmã como parceira sexual para o filho.
De toda maneira, o trágico surge após a entrada da jovem “êxtima” na casa: tal como a serpente do poema de Paul Valéry, ela introduz o veneno/elemento heterogêneo na pureza do programa educativo familiar. Algo é arrebentado, justamente no real da boca da “mais velha”. Por não cair o dente canino, ela quebra violentamente seus dentes numa ferida inaugural, em busca da subtração necessária a que aceda à subjetividade, ao sintoma, à contingência, à morte.