ABERTURA – II Conversação CIEN América – A criança violenta e a dignidade do sujeito

São Paulo, 13 de setembro de 2019.
Mônica Hage (CIEN-Brasil) e
Daniela Teggi (CIEN-Argentina)

Mônica Hage:

É com muita alegria que vamos dar início hoje à II Conversação do CIEN América, nesta que é a 9ª Jornada Internacional do CIEN. Este trabalho conta com a interlocução com a Fundação do Campo Freudiano e a atenção cuidadosa de Ève Miller-Rose.

A primeira Conversação do CIEN América aconteceu há dois anos, em Buenos Aires, e teve como título: “Os laços sociais e suas transformações”. Nos dois anos de trabalho que se seguiram, pudemos construir a temática de hoje: “A Criança violenta e a dignidade do sujeito”, fazendo uma articulação entre o tema central das Redes do Campo Freudiano sobre a Infância – crianças violentas – e o que pontuou Juan Carlos Indart em sua fala de encerramento em Buenos Aires, sob a forma de perspectivas para um trabalho futuro.

Indart nos fez lembrar que uma conversação do CIEN acontece quando cada um pode inventar, “arriscar-se a colocar em palavras a sua singularidade”. Tomando a expressão “dignidade”, de Alejandro Daumas – e aqui prestamos uma homenagem ao nosso colega –, Indart nos sinalizava a “dignidade singular” como o ponto de alcance máximo a se aspirar em uma conversação. Aponta, assim, como perspectiva e, por que não, também como desafio, o exercício de situar esse “isso” dessa “dignidade singular” com a noção de sinthome, do último ensino de Lacan.

Em outras palavras, a ideia era a de que nos interessássemos pelos ganhos do sinthome, como sustentação para um sujeito se instalar na vida, no mundo e no laço social.

Testemunhamos, hoje, mais uma vez, que as crianças e os jovens, sensíveis às modificações no laço social, orientam o campo de investigação do CIEN. Então, como pergunta que orienta a nossa política, trazemos no argumento a questão: “como ser receptivos aos diferentes modos de resposta sintomática dos jovens e das crianças?” A nossa aposta é na política do sintoma como invenção. Contra os ataques de ódio e violência atuais nos perguntamos: o que podemos coletar como um saber fazer?

Para o CIEN Brasil, “a aposta é a de que cada um possa responsabilizar-se por um dizer que lhe escapa, por um ato que lhe surpreende e reconquistar, como sujeito, a dignidade de seu sintoma e outra possibilidade de laço com o Outro.”

Para a construção dessa Conversação, tentamos enfatizar o próprio dispositivo da conversação no trabalho que fizemos, um a um, com os estados do Brasil. Através de uma interlocução que se deu ao longo deste ano, pudemos ir recolhendo e intervindo, junto às coordenações de cada local, nos pontos de impasse, tentando promover aberturas e novos direcionamentos. O fruto deste trabalho recolheremos hoje com a presença viva da prática de cada laboratório.

A interlocução com o CIEN Argentina, através da presença das colegas Daniela Teggi e Beatriz Udenio, e da nossa futura coordenadora do CIEN Brasil, Flávia Cêra – a quem dou as boas-vindas –, foi fundamental para a construção deste encontro. Uma verdadeira conversação para realizar esta conversação de hoje.

Para animar a conversa, nas duas mesas de trabalho, contaremos com a presença dos colegas Fernando Gómez Smith (NEL) e Flávia Cêra (EBP), sob a coordenação de Vânia Gomes e Mônica Campos.

Antes, gostaria de retomar em que consiste o trabalho do CIEN. No Ato de Fundação de sua Escola, Lacan define que deveria existir, além das seções de “Psicanálise pura” e de “Psicanálise aplicada”, uma seção que ele denominou de “Recenseamento do Campo Freudiano”. Nesta seção, ocorreria, dentre outras coisas, uma articulação entre a Psicanálise e outras disciplinas, que Lacan chamou de “ciências afins”. Nas palavras de Judith Miller, essa terceira seção teria “uma dupla função, visto que concerne, por um lado, à relação que a Psicanálise e os psicanalistas podem manter com outras disciplinas, se deixando instruir por elas e, por outro, à preocupação de educar as inteligências que se especializam nessas diversas disciplinas.

Para um psicanalista estar à altura dos seus deveres no mundo, esperam-se dele diversas tarefas.

Estão aí sutileza e a delicadeza do trabalho do CIEN. Convido vocês a se deixarem tocar pelo que irão escutar e, com os corpos, a se manifestarem em nosso debate! Passo, antes, a palavra a Daniela Teggi.

Daniela Teggi:

Bom dia a todos. É um prazer estar aqui e iniciar o movimento de abertura desta Conversação.

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à Paola Salinas e aos colegas do Brasil pelo intenso trabalho realizado para podermos estar aqui hoje reunidos e comparecer a este encontro.

Obrigada a Ève Miller-Rose, por sua presença e sua companhia; e a cada um de vocês.

Bem-vindos à Segunda Conversação Internacional do CIEN Americano. Segunda Conversação que nos encontra transitando outro tempo no Campo Freudiano e em nosso CIEN. Um tempo que nos obriga, nos força a estar atentos e disponíveis, nesse laço tão peculiar que é a interdisciplina.

Nas “regras do jogo”[1], nas Jornadas do CIEN do ano 2000, Judith Miller se referia à interdisciplina deste modo: “Crer no inconsciente é o que o CIEN compartilha com o conjunto do Campo Freudiano, e é por este fato que pertence ao Campo Freudiano. Mas o CIEN tem uma pretensão, para além do Campo Freudiano, partindo da crença no inconsciente, aquilo que chamamos interdisciplinaridade. E nesta interdisciplinaridade, o CIEN está animado por um desejo, ou seja, a marca de um não saber, um furo no saber. É precisamente este furo o que anima o CIEN; é muito singular e se dirige aos outros saberes, às outras disciplinas que atuam no vínculo social.”

O projeto de investigação do CIEN continua, persiste, resiste, percorremos suas vias através das experiências dos Laboratórios e para isso nos servimos do instrumento da Conversação, sustentando o furo de saber, suportando seus efeitos, e, acrescento, suportando seus efeitos corpo a corpo e suas transformações, como disse Éric Laurent. Dando destaque às respostas e invenções de cada criança e dos que trabalham com elas.

Uma aposta que se sustenta, a cada vez, no laço com outros e requer, por parte dos interlocutores, uma disposição espontânea, e, para dizê-lo de algum modo, de interesse, de espera, sem preconceitos.

Hoje, o empuxo feroz de um discurso burocrático e totalizador atravessa os campos da saúde, educação, social e jurídico, arrasando tanto a criança como o adulto, manifestando-se em uma intolerância radical e em respostas desmedidas.

A pergunta inicial do argumento “o que é que se faz escutar na contemporaneidade?”, será colocada em tensão. Crianças e jovens se fazem escutar com suas respostas e são a bússola em um tempo inquietante.

Em uma entrevista realizada por Le Diable Probablement, “A reconquista do Campo Freudiano”[2], Judith Miller, ao final afirma: “O mundo mudou muito desde Lacan. Estou convencida que não posso fazer nada melhor do que consagrar que seu ensino e o desejo do qual dá testemunho continuem sendo transmitidos: é uma verdadeira escolha da civilização, uma aposta essencial sobre o porvir. O porvir me parece inquietante, é claro, mas este desejo e este ensino permanecem como uma bússola fiável e isso supõe que cada um coloque algo de si”.

Convido, então, que cada um de nós coloque algo aqui hoje, nesta Conversação, que a animemos entre todos, que sustentemos esse furo de saber para sair um pouco modificados deste encontro.

Deixemo-nos ensinar pelas experiências de campo e por suas ressonâncias, e novas perguntas se decantarão a partir do nosso encontro, submergindo-nos em um trajeto novo. Obrigada.


[1]  Miller, J. Las reglas del juego. Jornada del CIEN, “Detrás de las normas, el detalle”, 19 de julho de 2000.
[2]  MILLER, J. La reconquista del Campo Freudiano. Entrevista. In: El caldero de la Escuela. Nueva série. Publicación de la Escuela de Orientación Lacaniana, n. 16, año 2011.