MESA DE ENCERRAMENTO
II Conversação CIEN América – A criança violenta e a dignidade do sujeito
São Paulo, 13 de setembro de 2019.
Um encerramento, uma abertura
Paola Salinas (CIEN Brasil) e Beatriz Udenio (CIEN Argentina)
Paola Salinas: Um encerramento e uma abertura. Vamos tentar extrair algo do que se trabalhou hoje intensamente, e tentar abrir alguns pontos.
Destaco, para iniciar, dois significantes que organizaram e orientaram nosso trabalho: a conversação, e depois de três anos de trabalho no CIEN Brasil incluo esse outro significante – a transmissão. Tem sido uma questão importante no trabalho da comissão do CIEN Brasil, e no CIEN Argentina, pensar como transmitir aquilo que fazemos nos laboratórios, essa possibilidade de afetar o outro, e transmitir a singularidade e especificidade do trabalho que o CIEN faz. Gostaria, então, de começar por esse ponto.
Para construir o encontro de hoje, utilizamos o dispositivo da conversação como forma de trabalho dentro da própria comissão de leitura e seleção dos textos. Lemos os textos previamente, discutimos o que cada um nos causou, o que cada um abriu como pergunta, e ainda, o que foi possível a cada um transmitir ou não. A partir daí, pudemos retomar a conversa com os laboratórios autores dos textos. Assim, a comissão se ocupou de tentar ler aquilo que era transmissível em cada texto, e devolver uma pergunta que visava destacar a intensidade e a preciosidade de trabalho, que muitas vezes não aparece no papel. Hoje pude rever alguns dos textos e perceber giros nas construções, especificamente no que diz respeito ao esclarecimento da função da conversação, de onde aparecia um furo, onde havia um impasse e poder dizer em que, a abertura, o vazio aberto nos espaços de conversação, permitiu a cada laboratório avançar.
Visamos para além de cada situação descrita, zelar pela transmissão do funcionamento que sustentou uma posição que possibilitasse a invenção em cada caso.
Ainda, gostaria de enfatizar alguns pontos trazidos hoje. Primeiro, em algum momento, uma mesa colocou a crença no inconsciente como um exercício permanente no laboratório, já que crer no inconsciente não garante que a hiância e o furo estejam abertos – é algo que pode se dar a cada vez ao se sustentar esse lugar.
Um outro ponto importante é o que fazemos em uma conversação. Hoje ficou claro que esse fazer acontece a partir de uma pergunta. Há um estatuto da pergunta no dispositivo da conversação do CIEN, como foi dito na mesa anterior.
Ao mesmo tempo, vimos que em uma conversação surgem significantes. O que se faz com esses significantes? Constatamos que não é exatamente a mesma coisa que se faz na experiência analítica. Vimos situações que trouxeram um fazer com esses significantes no ponto em que surgem para tamponar a dignidade ou a palavra, vimos o trabalho com esses significantes a partir dessa perspectiva da inter-disciplinaridade dos discursos e da conversação.
Para finalizar, gostaria de retomar a frase dita por Matías, adolescente que foi atendido no dispositivo, e é importante ressaltar que não priorizamos o caso clínico, mas como o dispositivo da conversação no laboratório redimensiona a prática dos profissionais e permite, dentro de um protocolo, uma outra forma de intervir. Há a dimensão do caso que pode aparecer ou não: em uma instituição de saúde é mais propício que apareçam os casos como “casos clínicos”, já nas escolas aparecem como outros tipos de casos – é o que esse dispositivo permite para que estejamos à altura de receber as crianças e adolescentes em cada lugar. Então, retomando a fala de Matias a respeito de uma internação para restrição de uso de drogas, ele dizia que não queria ficar internado, pois lá “ensinam só a ficar dentro e não a ficar fora”. Isso me fez pensar, “bom, e o que o CIEN faz com relação a essa borda do dentro ou fora”?
Podemos pensar o CIEN como a possibilidade de abertura de um espaço, de um lugar, de uma pergunta. É uma abertura que permite uma invenção e, com ela, a possibilidade da dignidade. O CIEN como possibilidade de abertura para que cada sujeito possa, nela, surgir: o professor, a criança, o orientador, o adolescente, a professora, o médico, a assistente social… e a partir daí um novo laço pode se fazer, ou seja, entrar. É uma entrada diferente daquela a que o Matías se recusa, é poder entrar de outra maneira no laço social.
Beatriz Udenio: Chegamos ao final desta Conversação. De todos os pontos destacados, tomarei somente alguns deles. Como em toda Conversação, algo seguirá nos empurrando a prosseguir.
O CIEN tem uma história que está presente em cada Conversação. Porque em cada Conversação se destaca algo do que, em seu momento, seguido de uma elaboração coletiva, seus assessores nos transmitiram – Alexandre Stevens e Eric Laurent – que nos acompanharam em muitas de nossas Jornadas e Conversações. Como Judith Miller, presente também em cada movimento do CIEN. Essas pontuações seguem vigentes, fazendo parte dos princípios nos quais nos apoiamos.
Mas há também a atualidade do CIEN, uma atualidade que conta com isso, mas também introduz e captura novidades.
Algumas dizem respeito aos laços que foram se estreitando entre o CIEN argentino e o CIEN brasileiro. Também, a presença de Ève Miller-Rose, Secretária do Instituto do Campo Freudiano, marcando um novo tempo, do CIEN e das Redes do Campo Freudiano. É o movimento que também assistimos nos laboratórios do CIEN, onde deixamos algumas coisas, pegamos outras, recuperamos algo de outro momento e depois esse impulso novo, essa novidade, essa surpresa, essa contingência que nos marca.
Quero dizer algo sobre o título que demos para a mesa de encerramento de várias de nossas Jornadas e Conversações: “Pontuações e perspectivas”. Juan Carlos Indart, assessor do CIEN, que nos acompanhou nas últimas Conversações americanas, dizia que ficava um pouco incomodado com esse lugar de ter que fazer pontuações e abrir perspectivas. Ele não pôde viajar desta vez, mas seu incômodo nos colocou a trabalho de tal modo que, quando pensávamos os títulos para cada espaço desta Conversação, surgiu este: “Um fechamento, uma abertura”.
Cada Conversação chega a um fim. Marcado pelo tempo e pelo que até ali foi possível dizer. Jacques-Alain Miller sublinhou isto em múltiplas ocasiões. Capturam-se alguns pequenos saberes e se perfilam movimentos por vir. Precipitamos algumas soluções, novidades, circunscrevemos impasses, perguntas abertas, e seguimos. Portanto, o título dado a esta mesa implica esse movimento: trata-se de um fechamento, mas dá lugar a uma abertura. Como frequentemente constatamos no trabalho dos Laboratórios.
O título do IX Enapol, que ocorrerá estes dias – “Ódio, cólera e indignação” – me convidam a situar dois afetos que vejo muito presentes nos trabalhos do CIEN.
Um, a alegria. Poderíamos escrever sobre a alegria do CIEN. A alegria que se notou em cada uma das mesas, por exemplo ao terminar a leitura dos trabalhos e começar a Conversação, quando aparecia o chiste, a piada e certo gozo da vida, que era o que se tratava de transmitir, pelo obtido ou, inclusive, dando conta daquilo que não se encontrava ainda em tal ou qual trabalho. Se ressalto isto, é porque com frequência nos deparamos com o efeito devastador dos discursos atuais, onde a burocracia produz o contrário à alegria. Lembro aquilo que Lacan mencionou em seus Escritos: “Todos sabem que sou alegre (…) Não sou triste. Ou, mais exatamente, só tenho uma tristeza (…) é haver cada vez menos pessoas a quem eu possa dizer as razões de minha alegria, quando as tenho”[1]. Não temos alegrias o tempo todo. Mas creio que poderíamos dizer que o trabalho no CIEN e estas Conversações são uns desses momentos em que encontramos alguns outros com quem compartilhar a alegria.
O segundo ponto ao qual queria me referir é o desejo. O desejo na dimensão de potência fecunda que lhe outorgamos na psicanálise, mas também em sentido mais amplo. Lembro que uma das professoras que interveio, fez referência àquilo que coloca em jogo em seu ato de ensinar. O desejo daquele que ensina nos ocupou em muitas ocasiões. No campo pedagógico se fala disso, nomeando-o como arte ou como vocação. Creio que no enquadre do CIEN, o desejo é crucial. Lembro com isso de uma referência do Seminário 10, A angústia, de Lacan, onde se refere ao desejo do analista e propõe a fórmula “te desejo, ainda que não o saiba” Te desejo, ainda que não saiba o que desejo, qual objeto estou acolhendo, que você desconhece e eu também.
Aí o desejo anda de mãos dadas com um não-saber. Não estamos distantes de situar esse não-saber como suporte dos trabalhos dos laboratórios, sustentado em um desejo, como vazio fecundo, justo ali onde o mercado oferece os saberes como mercadoria para preencher. Nos laboratórios, foi assinalado sob a forma de normas homogeneizadoras, protocolos, programas; novos objetos que o mercado lança para manter tudo quieto sob seu controle. O desejo como vazio fecundo, assim como na pureza da psicanálise se oferece a quem vem tratar seu sofrimento, nos laboratórios se constata em cada um daqueles sobre os quais intervém, de tal modo que cada um dos jovens ou crianças em questão possam encontrar um modo de transformar seu sofrimento em algum tipo de solução que lhe permita se fazer um lugar no mundo. Então, em seguida da alegria e do desejo, é preciso colocar o corpo.
Em todas as experiências que vocês narraram aqui e que nós compartilhamos, em certo momento chave da experiência, o ensinante ou o operador ou o psicólogo que a transmitia, fazia referência a um “colocar o corpo”. Do lado do operador, um modo diferente de se envolver, que lhe permitia, além disso, dar conta de certo júbilo constatado em tal ou qual sujeito, nesse novo modo de sustentar o corpo. Juan Carlos Indart sinalizou isso em Conversações anteriores: trata-se de algo que não se consegue sempre, mas em algumas ocasiões se constata. Um momento novo, no qual algum rapaz ou alguma criança, de repente, pôde se erguer e nomear-se de outra maneira; um instante de dignidade singular[2].
Há também, no modo de trabalho do CIEN e sua ferramenta fundamental, a Conversação, estilos de conversações, a variedade, não há uma norma para isso – como se escutou nos intercâmbios desta jornada. Se nós quiséssemos localizar critérios ou normas de como deve ser uma Conversação no CIEN, se “desnaturaliza”, não poderia continuar sendo o que é. Então também há essa variedade, que vocês poderão constatar ao retornar à publicação que se fará desta Conversação.
Outro ponto para destacar, que surgiu de vários, é o que acontece quando se abre a dimensão da palavra. Lembro aqui a referência de uma intervenção de Éric Laurent, onde lia os efeitos do trabalho de vários Laboratórios e dizia: que quando se abrem as comportas da palavra, é preciso saber muito bem quando e onde se deter – porque efetivamente há um limite com relação ao que se trata na singularidade de um caso em uma situação de uma experiência de análise e até onde chegamos com as experiências do CIEN. Isto é algo que esta Conversação também cuidou: até onde se provoca essa abertura à palavra, prudentes em seu alcance, respeitando os limites dessa intervenção[3]. Poderíamos dizer que esta Conversação de hoje nos ensinou sobre o que fazemos: facilitar, acompanhar, atuar como bons anfitriões, para que cada um tome a palavra e faça com sua palavra, com outros, alguma invenção.
Destacamos, então, a invenção.
Na mesma intervenção que mencionei anteriormente, Juan Carlos Indart nos dizia que com legitimidade poderíamos dizer que o CIEN se orienta pela noção do sintoma, tal como aparece descrito no último ensino de Lacan. Concordamos que é preciso trabalhar, investigar, para precisar essa perspectiva. Em sua aplicação ao trabalho dos laboratórios, trata-se de como resgatamos o constatável nas experiências do CIEN. Remeto-me a alguns momentos da Conversação onde se verificou como alguns dos jovens ou crianças de que falamos, fazem uma virada e saem do lugar de violentos, submetidos, deprimidos, fora de lugar, objetos dos protocolos, lá onde uma intervenção provoca o encontro com um desejo, com um interesse particularizado, com algo que sempre costuma ocorrer nas margens – tal como a psicanálise também nasceu. Um discurso nas margens, lugar a partir de onde sustenta sua capacidade de esburacar ou atravessar algo. Então, de repente, vemos emergir a imagem de um rapaz que pode se colocar de outra maneira frente a seu próprio sofrimento, às condições que lhe couberam na vida.
Paola Salinas: (…) isso toca a dimensão da transmissão, ou seja, para que consigamos que um “pibe” possa tomar a palavra dessa forma é necessário transmitir algo a ele, assim como é necessário que possamos transmitir uma lógica a quem nos escuta, para que não fiquemos em clichês. Só se transmite a partir de uma posição – é o que você diz – que leva o corpo. É extremamente difícil a cada vez fazer um espaço para uma invenção, é a cada novo laboratório e a cada conversação. Portanto, nenhum saber pré-estabelecido, nem o saber a respeito do CIEN. Isto é fundamental, um saber a respeito do CIEN não garante que consigamos produzir esses espaços colocados por Beatriz. Daí a importância da nossa discussão constante. O CIEN Argentina, a comissão de leitura, ou, por exemplo, quando a Vânia retoma a pergunta para a equipe que se ocupa do “Janela da escuta” sobre como a conversação retornou para equipe, é pra saber o que se transmitiu. Foi, voltou e causou o quê? Ou seja, para que a gente se implique – para usar o significante da implicância da professora – nessa proposta de trabalho.
Beatriz Udenio: Você mencionou a angústia em sua intervenção. A angústia está muito próxima do desejo. Aprendemos isso com Lacan: a angústia como antessala do desejo, a angústia dos operadores, a angústia do analista inclusive. E justamente, se conseguimos deslocar dali algo que está mal situado, como tampão, o objeto a, então esse vazio – que sustentamos com o uso do hífen (na inter-disciplinaridade) – torna-se um vazio fecundo.
Você evoca também a frase de Matías, que é genial: “não te ensinam a estar fora, te ensinam a estar dentro”. Nos remete a algo que fez uma marca no CIEN. Contamos, no CIEN, com uma expressão que um rapaz de um laboratório de Minas nos brindou, que Fernanda Otoni destacou e que tomamos como título de nossas Jornadas do CIEN do ano de 2013[4]. Quando o rapaz foi convidado a participar de uma conversação de um laboratório, respondeu: “me inclui, fora dessa”. Trata-se de uma inclusão topológica, ou seja, no CIEN também levamos em conta a noção de extimidade. Não devemos retroceder diante da colocação de algumas das noções da psicanálise, se podemos sustentá-las na prática que o CIEN nos ensina. Nos ensina sobre o trabalho com outros, nas margens, no hífen, nem dentro, nem fora. Freud dizia que o inconsciente tem estrutura de borda. Lacan retomou a Freud e dizia “a pulsão também tem estrutura de borda e é topológica”. Mas não seguirei por aí hoje. Me desloco e volto…
Plateia: (Risos)
Beatriz Udenio: … e também me incluo desde fora.
Para concluir, podemos dizer que é muito importante para o trabalho dos que integram os Laboratórios do CIEN poder sustentar esse trabalho que permite deslocar os protocolos e se mover um pouco dos lugares assegurados. É o que estas experiências nos ensinaram. Não somente perfurar, mas bordear, mover um pouco de lugar, abrir um espaço novo. Encontrar, a cada vez, a boa maneira de fazê-lo.
Paola Salinas: Agradeço a Beatriz e a todo o intercâmbio que tem se realizado entre os colegas do CIEN. Para encerrar, levanto dois pontos: Primeiro, nunca é demais ressaltar que não é necessário que seja o analista aquele que produz efeitos numa conversação do CIEN. Basta ser um participante atravessado pelo inconsciente, estar articulado ao inconsciente, o que, definitivamente, não é algo restrito aos analistas. A psicanálise tem o lugar de anfitriã – hoje nós ouvimos professoras, diretoras, sustentando esse vazio fecundo. Evidente que se trata de um dispositivo que não vai sem a psicanálise, sem dúvida nenhuma, mas ele coloca inclusive o psicanalista para aprender.
E, para concluir, gostaria de dizer da minha alegria com o trabalho na comissão, agradecer a comissão do CIEN Brasil. Estamos encerrando um momento, vamos fazer uma permutação no CIEN Brasil, e agradeço publicamente minhas colegas de comissão com as quais produzimos uma conversação constante nesses últimos três anos e principalmente no último um ano e meio em conversações diretas com os coordenadores dos Estados, e eles, por sua vez, conversações diretas com os laboratórios. Em algumas ocasiões a comissão nacional esteve presente nessas conversações. Colocamos o corpo nisso e a palavra sem dúvida, o que nos permitiu uma experiência e um aprendizado, a meu ver, surpreendente sobre o que não se sabe, e como se faz com isso. Agradeço a Vânia Gomes, do CIEN Rio, Mônica Hage do CIEN Bahia e Mônica Campos do CIEN Minas, que estiveram neste trabalho.
A partir de janeiro, Flávia Cêra passará a coordenar a próxima comissão CIEN Brasil. Agradeço ainda a presença da interlocução com a Fundação do Campo Freudiano, presença de pessoas importantes nesse lugar de êxtimo. E aqui, agradeço a Eve Miller-Rose, que para nosso trabalho no Brasil foi fundamental. Este trabalho seguirá porque ampliamos uma rede, uma rede de trabalho que já existia, e na qual cada um, a seu tempo, encontra um lugar. Essa comissão pôde encontrar um lugar e a seguinte assim o fará, no que concerne ao CIEN América, mas também à relação com a Fundação do Campo Freudiano que nos orienta e de alguma maneira nos permite ir de um campo a outro, com todo o estrangeiro e o que não se sabe acerca de lugares diferentes que temos que ocupar. Entonces, fue un gusto, ¡hasta la próxima conversación!
Beatriz Udenio: Até a próxima Conversação Brasil!! Onde for o próximo ENAPOL será a próxima conversação do CIEN América!