Entre o vínculo e a educação: um impasse[1]
Laboratório Ciranda de Conversa – CIEN-PR – Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Fernanda Baptista e Renata Silva de Paula Soares
O Laboratório Ciranda de Conversa CIEN Paraná[2] realizou, no ano de 2022, Conversações em uma instituição que atende 100 crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco social na Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná. A instituição atua em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social na realização do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. No primeiro encontro, estavam presentes 5 ‘professores’, o educador social – que ocupava o cargo de pedagogo – e o psicólogo da instituição. Enquanto todos se apresentavam para nós, as animadoras, foi possível perceber que, para os que se denominavam ‘professores’ e o quanto era importante para eles que as crianças “seguissem regras”. “É muito difícil criar vínculo, eles não seguem regras e o planejamento não dá certo”, disse a ‘professora’ de artes, explicitando o ambiente escolar da instituição e a vontade de disciplinar as crianças e adolescentes. “A sociedade é formada por regras”, emendou outra ‘professora’. O educador social, pontuou que as crianças atendidas pela instituição não têm segurança, “vivem à margem da regra”, “aqui é um espaço de acolhimento, vínculos e convivência”, o que nos indicou sua posição divergente do grupo.
Na segunda Conversação estavam presentes quatro ‘professores’, que iniciaram falando sobre a ‘muvuca’ que havia acontecido na semana anterior: descreveram cenas de violência entre as crianças e, em seguida, voltaram aos comentários de que os mesmos não aceitam a autoridade. Sobre um dos meninos, disseram: “como ele sabe que ninguém vai bater nele, ele extrapola.” Continuaram dizendo que estavam nos seus limites. A ‘professora’ de português comentou que foi vítima de violência na infância e mesmo assim “não desconta nos outros”. Os ‘professores’ falavam de crianças que eram “psicopatas, loucos”, que precisavam de medicações psiquiátricas, que fugiam da realidade e que ninguém os aguentava. “A gente é o último recurso que eles vão ter na vida deles”. Quando pontuamos que a instituição era um local de acolhimento, um dos ‘professores’ disse: “é uma sofrência”, outro completou: “eles têm que aprender”.
Em seguida, as falas continuaram girando em torno do sentimento de impotência que os afetava. Eles disseram que gostariam de ensinar e que as crianças não davam valor ao aprender. “A educação não é transformadora para essas crianças.” O educador social pontuou que as crianças não eram descoladas da realidade, mas que a realidade delas era outra. Surgiu um enorme impasse sobre a frequência das crianças nas ‘oficinas’. Percebíamos, a cada Conversação, que os ‘professores’ acreditavam que as crianças deveriam frequentar as oficinas seguindo o planejamento da educação formal. Já o educador social, era aberto à ideia de que as crianças pudessem escolher as oficinas e tivessem horários livres durante o período que estivessem na instituição. Para os ‘professores’, o fato de algumas crianças e adolescentes não gostarem e não quererem estar em suas ‘aulas’, era uma questão muito séria. O educador social argumentava que estava tudo certo se as crianças e adolescentes não quisessem fazer nada, às vezes, porque ali era um lugar seguro. A esta fala surgiu o que parecia ser uma abertura quando o psicólogo disse: o que transforma é o vínculo e, ali não era uma escola, completando que não havia uma resposta pronta sobre como fazer.
Porém, na Conversação seguinte, os ‘professores’ voltaram a se queixar sobre situações de violência entre as crianças e para com eles. Mostravam-se muito indignados com os xingamentos que recebiam e com as agressões sofridas. Em seguida começaram a apontar problemas na comunicação entre os educadores, reclamando que não havia uma diretriz clara que norteasse o trabalho na instituição: “a chefia não estava valorizando a disciplina”. Decidimos lançar questões aos educadores, sobre seu papel junto às crianças e adolescentes e sobre o espaço. Sendo assim, perguntamos se a instituição era um lugar de ensinar ou não, de ensinar o quê. Enfim a Conversação avançou sobre o ideal em jogo no lugar. O psicólogo nos contou que a idealizadora do local era uma defensora da educação e que acreditava no seu papel transformador. Dito isso, revelou que a instituição muitas vezes ia “contra o Estado”, pois, ligada à Assistência Social do Município, precisava ‘disfarçar’ as ações educativas que realizava. Contou que a intenção era ser um reforço escolar. “São ‘professores’ e são salas de aula. Existe plano de aula.”
Na quarta Conversação, fomos informadas que o educador social não fazia mais parte da equipe: “Ele tirou a autoridade da gente com as crianças. As crianças podiam escolher as oficinas.” Para o Laboratório ficou claro que o significante educação ao entrar em choque com o significante acolhimento gerou uma crise na instituição, mas que o saber detido pela instituição não pôde ser questionado. Em Conversação entre o CIEN Brasil[3], foi localizado por Nohemí Brown os ditos com valor orientador para a instituição. A partir do S1 seguir regras, os S2 se articulavam como verdade, adquirindo valor de mestria. Se ‘os alunos’ seguissem as regras, o planejamento daria certo. Ou ainda, se eles seguissem as regras, os vínculos seriam criados e a educação seria possível. O dito do educador social: “eles vivem à margem da regra”, não pôde introduzir um furo, que possibilitaria uma reverberação para separar S1 e S2.
As conversações na instituição inquietaram as participantes do Laboratório, uma vez que deixaram a questão se algo da contingência havia escapado às animadoras ou se a instituição estava fechada ao acolhimento, tanto de um novo saber fazer, quanto do Laboratório. Entretanto, é preciso relançar a aposta no discurso psicanalítico, que não tem uma verdade universal e, talvez, possa ser capaz de abrir brecha, uma passagem de ar, no discurso do mestre ao qual somos confrontados quando nos aventuramos a estar entre outras disciplinas, a frequentar outros lugares a tentar ser outro entre vários. As pontuações das animadoras e a oferta da palavra, assim como a posição divergente do educador social, apesar de apontarem para a produção de um equívoco frente ao S1 em jogo da instituição, não perturbaram a defesa na instituição, tampouco abriram uma brecha para Conversações sobre o próprio mal-estar do qual se queixavam. Não foi possível aos educadores sociais, que trabalhavam em uma instituição social, se perguntarem sobre serem ‘professores’, para talvez se implicarem em algo da crise que enfrentavam e se questionarem sobre o lugar de mestria que a ‘educação’, aos moldes da instituição, ocupava, obturando possíveis furos no ‘saber fazer’ frente ao real exposto pela prática junto às crianças e adolescentes.