O que falar quer dizer?[1]
Ana Lydia Santiago
“Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve.”
Jacques Lacan
O que falar quer dizer? Com esse título, o poeta Jean Tardieu[2] faz cintilar os recursos da língua, o sociólogo Pierre Bourdieu[3] situa questões da interlocução em função dos lugares simbólicos de poder, e o educador Joseph Rouzel[4] estabelece uma prática de entrevista para o trabalho social. A filósofa Barbara Cassin[5], por sua fez, explora o falar como fazer, partindo da linguagem performativa proposta por John L. Austin[6], primeiro a teorizar que se pode fazer coisas com as palavras. E para os psicanalistas que atuam no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN)? O que falar quer dizer? O que fazem, ao propor a circulação da fala entre pares de uma instituição, para abordar impasses e dificuldades surgidos no trato com crianças e adolescentes?
Uma resposta para esta questão apenas se extrai da experiência de cada laboratório do CIEN, ou, mais precisamente, se apreende da fala daqueles que participam das atividades dos laboratórios, quando o encontro com a proposta do CIEN constitui, uma oportunidade de dizer algo que jamais tinha sido possível dizer, antes. Um “ponto doloroso”[7]– sinaliza Judith Miller –, recrudescido pelos discursos do momento atual, silenciado pelo clamor das ideologias.
Fazer chamejar os fundamentos do CIEN transmitidos por Judith Miller em seus textos – iniciativa de Paola Salinas, atual coordenadora do CIEN Brasil –, comporta um duplo propósito: homenagear Judith, que esteve à frente desse Centro, em uma ação engajada, desde sua criação em 1996, e, ao mesmo tempo, reavivar o CIEN. Em 2017, nas homenagens rendidas a ela, por seu decesso, tive oportunidade de expressar o mais sincero reconhecimento a Judith por tudo que ela fez como Presidente da Fundação do Campo Freudiano e, de modo especial, por tudo que ela nos ensinou a fazer com vistas a priorizar, em atividades coletivas, a investigação clínica e o avanço da psicanálise. Nesse momento, em que se trata de fazer uma leitura do CIEN através dos textos de Judith, isolei quatro princípios, a meu ver, norteadores para o trabalho dos laboratórios, lembrando, contudo, que a “bússola fiável” para qualquer ação do CIEN, “é o ensino de Lacan e o desejo que este testemunha, e que supõe que cada um coloque algo aí de seu”[8].
Primeiro princípio:
O CIEN não existe sem as Escolas da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)[9].
Escola é o termo de Jacques Lacan para designar o organismo de trabalho dos psicanalistas, visando cuidar de sua formação e garantir a presença da psicanálise no mundo. Lacan definiu três funções para assegurar tal finalidade, sendo a terceira delas a ampliação do campo analítico por meio da interlocução com outros campos de saber. A interdisciplinaridade, assim posta, deve contribuir para os psicanalistas se manterem à altura da subjetividade da época em que vivem[10], condição fundamental da qual depende a própria sobrevivência da psicanálise.
Judith Miller propagou pelos quatro cantos do mundo, onde existe o movimento das Escolas da AMP, o interesse da interdisciplinaridade para a formação do analista. Não era novidade o trabalho clínico que o psicanalista conseguia realizar no espaço institucional, fazendo a oferta da palavra ao sujeito, intervindo com a interpretação e colhendo os eventuais e consequentes efeitos de seu ato, sobre os sintomas. O inédito da proposta do CIEN consistiu no convite para estes profissionais tentarem apreender o ponto de contato do discurso analítico com o discurso do mestre, ou seja, o ponto de real ao qual se está confrontado, na instituição, diante do esforço de normatização. Trata-se, portanto, para o psicanalista, no CIEN, de conhecer os problemas enfrentados pelos profissionais de outras disciplinas e saber como respondem às questões da criança e do adolescente, guardando sempre a relação com o inconsciente[11].
Segundo princípio:
A interdisciplinaridade, no CIEN, se escreve com um hífen, que designa um vazio[12].
Esse vazio é primeiramente o saber não saber, ou seja, o princípio socrático que o psicanalista assume diante de um paciente e também deve assumir na interlocução com especialistas das áreas do direito, assistência social, saúde e educação, entre outras, para aprender sobre as dificuldades que estes profissionais encontram atuando junto a crianças e adolescentes. Lacan nos ensina que “A questão do saber do psicanalista não é, em absoluto de saber se isso se articula ou não, mas de saber em que lugar é preciso estar para sustentá-lo.”[13] A posição de saber não saber, no CIEN, fundamenta a dimensão da pesquisa interdisciplinar, para o psicanalista aprender com o outro, colher o novo e o resto produzidos pelas outras disciplinas como resposta ao real e às mudanças do mundo – a globalização, a homogeneização galopante e os problemas de segregação fustigados pelo termo racismo. Esses produtos questionam e desafiam a psicanálise a se introduzir no espaço institucional, renovada. Assim, o hífen do inter-disciplinar é “o frescor permanente da práxis analítica, da qual o psicanalista é operador”[14], independentemente de estar em seu consultório ou em uma instituição.
Terceiro princípio:
O estilo de trabalho do CIEN é a pesquisa em laboratórios.[15]
Judith Miller nomeou os grupos de trabalho do CIEN de laboratórios, uma expressão, segundo ela, “pouco conhecida no Campo Freudiano, mas muito utilizada por outras disciplinas que, enquanto científicas, fazem pesquisa.”[16] O trabalho em Laboratório[17], pareceu-lhe a melhor maneira de se dirigir às outras disciplinas e escutá-las. A constituição de um laboratório decide-se a partir de um impasse.
Um laboratório se constitui apenas em razão de um encontro, o encontro de um real contra o qual se chocam os profissionais de diferentes disciplinas, confirmando que a chave não estaria em um saber já estabelecido, mas na invenção, da qual testemunharão estes profissionais para desenhar o cume do qual essa chave aparece. Eles não a detêm de saída; detêm apenas aquilo contra o qual se chocam.[18]
A chave para o impasse sobressai do próprio impasse, de sua abordagem pela fala, a partir da qual, contingencialmente, uma solução pode advir para cada um. Eis a visada da operação com a fala praticada pelos laboratórios do CIEN, nas instituições. O CIEN conta, portanto, com as fontes inventivas e poéticas da contingência, do equívoco, do encontro.
Para alguém participar de um laboratório, não é necessária a condição de analisante; o trabalho do laboratório não visa provocar a entrada em análise das pessoas envolvidas; mas é preciso ao menos “um não saber ao redor do saber analítico, o que singulariza o desejo do analista.”[19]
Segundo Judith Miller, o registro do trabalho dos laboratórios cumpre uma função essencial. O CIEN valida “o bem fundado da cultura do escrito”, incentiva os laboratórios a prestar contas de sua trajetória, percalços, avanços e consequências, em um relatório anual, que, divulgado pelo CIEN nacional, permite aos outros laboratórios e à comunidade analítica:
Ler e interpretar a importância de um momento, às vezes percebido só-depois, pela maioria das pessoas. Que o testemunho de uma experiência – redigido por um ou por vários de seus participantes – se constitua em material de leitura e interpretação.
Colher o efeito de transmissão que comportam os testemunhos das experiências.
Orientar o CIEN na medida em que, por meio dos testemunhos, se pode apreender as condições em que foi possível “traduzir os impasses em palavras” e, com isso, operar uma mutação, fazer surgir “uma perspectiva de subjetivação”.[20]
Quarto princípio:
A Conversação é a prática da palavra, do CIEN, para a tradução dos impasses.
A prática da conversação foi inventada por Jacques-Alain Miller como um dispositivo ativo para a realização de encontros do Campo Freudiano, um modo de tratar aspectos controversos ou insucessos que provocam questionamentos e, quando se formulam perguntas, há um chamado à conversa, à troca com os outros. Em sua proposta, a conversação é uma ficção operativa a serviço da produção de um passo a mais, de algo novo no saber já estabelecido.[21]
O CIEN apostou nesse dispositivo como uma prática inédita da palavra para tratar os impasses que os discursos universalistas e as políticas, surdos à particularidade do ser falante, agravam ao reduzir o cidadão a consumidor-produto, o corpo ao organismo ou um sintoma ao déficit[22]. No CIEN, a prática da conversação leva em conta a maneira como o discurso analítico e a orientação lacaniana subverte o laço social, sensível à subversão do sujeito, ou seja, aos efeitos do sem sentido da linguagem. Assim, o CIEN visa atingir o singular de cada sujeito por meio da circulação da palavra entre muitos, estando engajado em preservar o que é novo e revolucionário na criança e no adolescente, segundo a clínica do detalhe[23].
O desafio da conversação própria ao CIEN, nos diz Judith Miller, é operar um deslocamento que resulta em tocar a dimensão da pulsão e seus destinos. Desfazer as identificações e permitir um jogo de vida advindo de uma outra relação com o Outro.
Portanto, para o CIEN, falar quer dizer acionar as engrenagens do Grafo do desejo, para que as relações ao Outro se articulem e o sujeito possa apresentar suas respostas, emanantes do furo, do vazio, que também é causa e se mostra ausência vibrante, onde, antes, o silêncio, de mãos dadas com a pulsão de morte, impelia “a passagem ao ato cega ou o caminho da repetição sintomática.”[24]