Sobre os excessos de uma situação nada ideal: uma experiência de conversação online
Laboratório “Docentes doentes: deixe-os falar!”[1] – Raquel Guimarães, Virgínia Carvalho
Há conversação online? Seria a resposta a essa questão diferente da que fazemos a cada vez que concluímos uma conversação, questionando-nos se houve de fato uma conversação? Colegas indicam que algumas conversações online não foram possíveis. Gostaríamos de compartilhar com vocês uma experiência que tivemos no Laboratório e que consideramos ter nos ensinado sobre a atualidade da aposta na surpresa que é uma conversação, independente do formato que ela venha a ganhar.
A demanda ao nosso Laboratório para um trabalho a ser realizado em modo online surgiu da preocupação dos gestores de uma escola com as exigências do MEC para o retorno às aulas presenciais. O documento de referência elaborado pelo MEC (Brasil, 2021) especifica que “os funcionários da escola, principalmente os professores, devem ser capacitados com estratégias de promoção e proteção da saúde mental e qualidade de vida”, além de terem “suporte e capacitação para lidar com estudantes em sofrimento psíquico (comportamentos internalizantes ou externalizantes)”. Ele alerta que “no caso de percepção de mudanças comportamentais ou comportamentos disfuncionais, o aluno ou profissional deve ser encaminhado para serviço de saúde”. Como a escola poderia se preparar para promover esse espaço aos docentes? Foi com essa pergunta que o Laboratório foi procurado.
Essa questão se desdobrou em uma outra para nós: seria possível estabelecermos uma conversação como medida profilática? Sabemos que “a conversação é uma prática da palavra para tratar as manifestações indesejadas que produzem insucessos e fracassos”(Santiago, 2011, p.97). Ela visa uma passagem da queixa, que paralisa a ação dos profissionais, a “um outro uso da palavra em que a queixa toma a forma de uma questão e a questão, a forma de uma resposta: invenções inéditas”(Santiago, 2011, p.97). A aposta na associação livre coletivizada que ela promove não ocorre para que todos sintam-se aliviados ao falar, mas sim para que haja um corte que permita desajustar as identificações às quais os sujeitos se encontram fixados. Considerando a dimensão de parasita que a palavra tem, um convite a falar pode servir para reforçar o “gozo do blá blá blá”, o que Laurent (2017) denuncia como uma “psicoterapia generalizada” (p.41) e essa não é a proposta do CIEN.
Em um esforço de poesia pudemos ler que, para além dessa demanda inicial profilática, havia no grupo de professores um desejo de falar sobre seu sofrimento diante das mudanças impostas pela pandemia. Tais mudanças ecoaram também na aposta do Laboratório de que o online poderia viabilizar um trabalho de conversação.
Uma situação nada ideal
Nosso primeiro desafio foi trazer o vivo dos corpos para o virtual. Com câmeras ligadas, os professores demarcaram a importância daquele “lugar de encontro”. Inicialmente, as queixas ganharam muito espaço e se decompunham em quatro eixos: “docência vigiada”, “saber insuficiente”, “medo de voltar” e “falta de prazer no trabalho”.
Quais as diferenças pudemos localizar em relação às conversações on line? Da mesma maneira como no presencial, levaram queixas a partir das quais poderíamos localizar um impasse a ser trabalhado e auxiliá-los a ler ou inventar novas saídas para ele. Embora o modo de fazer tenha ganhado alguns novos elementos, os princípios orientadores da conversação foram os mesmos: localizar o impasse, sustentar a associação livre coletivizada, preconizar o corte, realizar uma conversação sobre cada conversação para conseguir ler o que se passou ali e escutar seus três tempos lógicos, verificando se houve ou não uma conversação. Assim como numa conversação presencial, foi necessário sustentar a urgência por falar, como nos indica Lacan (2003) e que Miller (2013) ressalta à propósito do que permite a continuidade da busca pelo analista.
Então, o que foi diferente nessa conversação em que os corpos estiveram presentes através da tela? Como novos elementos destacamos: a fala um a um, ou seja, um por vez, o que provavelmente não ocorreria numa conversação presencial e também a escrita no chat. Esta última à medida em que ia aparecendo, era lida e re-endereçada ao autor para que falasse sobre o escrito. Aos poucos, foram deixando de usar o chat para falar. No final de uma das conversações, uma professora se serviu dele para escrever algo que localizava pra ela o que havia sido aquela conversação. Iniciamos a conversação seguinte com aquele dizer, pois consideramos que o texto do chat pode ter função de escrito se conseguimos dar-lhe voz, vivificando-o, a partir da indicação de Lacan no Seminário 20 de que um escrito não é para ser compreendido.
Nessa experiência que fizemos, através do online, os professores puderam expressar seu incômodo com o aumento da cobrança que a tela do computador impôs a seus afazeres: “passei a colocar o meu trabalho em xeque”, “me sinto exposta o tempo inteiro. “Um palco que não gosto”, “O que eu sei é suficiente?”. As aulas remotas traziam à cena o olhar dos pais e a exigência de funcionamento. Frente ao real da pandemia, o fracasso da educação se materializou nas inúmeras queixas de que a situação não era ideal para a aprendizagem. Se a educação é um ideal, as situações nunca serão e cada um precisa inventar com o que tem. “Se virar com o que pode dar”, conforme afirmou uma participante após tal intervenção na conversação.
“Os alunos estão aprendendo?”
No movimento das conversações, as queixas deram lugar a uma questão, não mais ligada à pandemia, mas sim à educação: “os alunos estão aprendendo?”. Houve uma redução do escópico presente nas aulas online, trazendo para o primeiro plano a função da educação e da escola. Ou seja, se o impasse inicial era com o online, no decorrer das conversações, o que surgem são questões antigas e cotidianas: “Não é de hoje que os meninos não entregam as atividades, isso não é exclusivo do remoto”, “é ilusão achar que o corpo presente é garantia, é comum alguns assistirem aula, mesmo quando era presencial, sem prestar atenção em nada”. Evidenciaram um denominador comum da aprendizagem que perpassa tanto o ensino presencial quanto o remoto, o que nomearam como “o aspecto relacional”, afirmando que é nas relações que a educação acontece. Surge a questão sobre o que farão sem poder tocar os corpos quando houver o retorno ao modo presencial.
A dificuldade no retorno às aulas presenciais, após o longo período fora das salas, começa a ganhar contorno: “Não sei como trabalhar com eles no retorno”, “vejo uma aula totalmente diferente, me assusta”. “Sempre tive medo dos meus alunos se machucarem nas minhas aulas. Hoje meu maior medo é que minha aula seja lugar de contágio”. A indicação dos professores de que “a educação é um contrato de risco” e que “a docência é uma invenção a partir do que os alunos trazem” possibilitou suspender o medo, para que saíssem da paralisia. “A escola é lugar de educação, não de contágio” – pontuaram as animadoras da conversação.
“Amputar o excessos”
Um momento de concluir se anuncia quando uma professora aponta que o “aspecto relacional” considerado fundamental e manifestado através de carinho, afeto e acolhimento é também o que transborda inviabilizando o trabalho educativo. Outro docente traz o termo “excesso” para descrever as relações na escola: “Estamos entregando mais acolhimento do que a gente consegue. Estamos lá online, o tempo inteiro”, “tem uma desmedida nisso, tá tudo confuso, sem borda”. Localizaram que esse excesso cansa e apaga o prazer que cada um encontra na docência, retomando a questão central da educação: para que serve uma escola? Indicam como saída “negociar melhor os excessos, inclusive de afeto e de carinho, pois isso mata o que é vivo da educação”. As animadoras apostam no corte, servindo-se do significante “amputação”, que havia surgido na conversação, para apontar que frente ao excesso não há negociação. Isso os mobiliza a pensar em algumas estratégias para barrar a enxurrada de demandas que recebem diariamente, tal como não ter que atender às mensagens encaminhadas pelos pais durante o final de semana.
A fala de uma das professoras ao final indica que a conversação permitiu decantar a função da escola, produzindo um esvaziamento: “É preciso cautela para não abrir portas que não vamos conseguir acolher. Dar lugar a esse desejo de acolher, entendendo nosso lugar de escola”. “Na educação tem luta, mas também tem prazer”, concluem.