Violência e confronto na adolescência: o que pode fazer borda?

Pedro Braccini Pereira[1]

Foto de Vitor Freitas [pexels-victor-freitas-1072842 (1)]
Não nos é habitual, para designar os adolescentes que vem nos ver devido a seu sintoma e sofrimento, destacar um qualificativo comumente estigmatizante, tal como pode ser o significante “violento”. Porém, partimos da constatação de que esse termo nos convoca cada vez mais a uma posição, a partir do discurso do Outro social e suas instituições. Os pais de hoje exprimem, frequentemente, uma inquietação diante de algumas atitudes de suas crianças e adolescentes, especialmente quando eles se opõem aos seus anseios. A neuropsiquiatria dominante já consagrou, atualmente, no campo social, sob a sigla T.O.D., um diagnóstico com o significante vazio “transtorno opositivo desafiador”, considerado nessa lógica um transtorno de conduta da infância e adolescência.

Adolescentes ou jovens “violentos” é uma expressão do discurso corrente, que tende a alçar as manifestações violentas dos adolescentes a uma categoria comportamental. Sabemos que dar consistência a uma categoria assim a torna suscetível de ser instrumentalizada por políticas autoritárias. Temos visto inclusive a passagem de um paradigma da proteção da infância, com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – e seus avatares, a um paradigma de proteção contra os chamados adolescentes violentos ou potencialmente violentos. O maior exemplo disso é o constante retorno da discussão sobre a diminuição da maioridade penal.

Para a psicanálise lacaniana, a expressão “adolescentes violentos” nomeia uma série de fenômenos que fazem objeção à coesão do laço social. É o nome de um impasse coletivo, uma assinatura do fracasso do laço simbólico no tratamento do que surge como real. Por isso, é crucial situar nessas situações de violência, que elas são, antes de tudo, uma queixa do Outro. Uma vez que elas fazem sintoma menos para o adolescente que transborda a violência do que para os seus responsáveis e seu entorno[2].

Não se trata de aceitarmos com os olhos fechados a imposição do significante violento pela família ou escola. Não podemos negligenciar que existe uma revolta do adolescente que pode ser sã e se distinguir da violência errática. Essa revolta é importante de acolher, na medida em que eventualmente podemos sim ter razão de nos revoltarmos.[3] Para Lacan[4], o lugar no mundo se adquire em geral “em virtude da precipitação”. Poderíamos dizer de algo da ordem de um atropelo. No caso, é o atropelo do Outro como condição do sujeito. Afinal, desde a sua chegada ao mundo, o que está em jogo para a criança é se fazer um lugar como corpo falante entre os outros corpos.

As quase infinitas possibilidades de modos de gozo, que se desinibiram no corpo social contemporâneo, fazem escalar na cena o lado obscuro da força das pulsões sexuais, que Freud chamou pulsão de morte. Cada investimento pulsional de um objeto carrega consigo essa marca. A escolha de um objeto, ao se afirmar, produz também, e ao mesmo tempo, uma rejeição daquilo que não foi eleito. É esse rejeito que é o terreno fértil da violência[5].

Foto de Steve Johnson no Pexels

Porém, violência tampouco se trata de um conceito psicanalítico, não sendo redutível nem à agressividade, nem à pulsão de morte. Entretanto, ela não depende apenas do registro do fenômeno, e certamente toca algo da estrutura. Por isso, é necessário se extrair de uma clínica da observação, em que o fenômeno satura a percepção da trama desses novos sintomas.

A violência convoca, especialmente, à dimensão do ato, um ato que separaria do insuportável e esvaziaria o gozo. A lógica de um ato violento é a de uma expulsão, ou seja, uma expulsão do objeto que está em excesso e que passa fora do corpo, impondo a expulsão do próprio sujeito. Por vezes a expulsão se efetua na própria realidade, quando, por exemplo, um sujeito é expulso da sua escola.

Se o momento de violência ultrapassa o sujeito e constitui para ele um puro fora do sentido no tempo do seu surgimento, uma maneira de torná-lo legível é situar que ele é uma resposta à angústia, compreendida como sinal de um mais de gozo ou de um impossível de suportar. No Seminário 10 sobre a angústia, encontramos essa correlação forte entre angústia e ato, quando Lacan[6] indica que no momento em que o sujeito vai passar ao ato, existe a dimensão de angústia que precede.

Jacques-Alain Miller[7] se pergunta se a violência é um sintoma, uma vez que definimos o sintoma como uma recusa do gozo. A emergência da violência, por sua vez, seria o próprio testemunho de que não houve substituição de gozo. A práxis psicanalítica, com os adolescentes de hoje, se modifica justamente devido ao fato de sua extensão ao “isso que não é sintoma”, e o tema da violência é mais uma maneira de entrar nessa exploração.

Para uma pragmática da abordagem de adolescentes com essas apresentações, Miller[8] sugere, entre outros, que pode ser que a manifestação violenta anuncie uma psicose em formação. Diante de cada caso e a cada vez, ele sugere sempre nos perguntarmos sobre alguns pontos. Seria essa violência manifesta naquele sujeito uma violência sem frase? Seria uma pura irrupção da pulsão de morte e de um gozo no real? O adolescente consegue colocar palavras e simbolizá-la? Mesmo que ela seja signo de um puro gozo no real, isso não quer necessariamente dizer que se trata de psicose. De qualquer forma, ela traduz em todos os casos um rasgo na trama simbólica. Trata-se de procurar saber qual a extensão desse rasgo.

É preciso descolar adolescentes e violência. Filtrar para fora do pequeno sujeito a coisa violenta, para podermos situar o que a desencadeou. Porque procuramos menos sua causa do que sua ocasião. Começamos por disjuntar o adolescente como corpo falante da coisa violenta que toma posse desse corpo. Como fazer essa distinção? Uma pista talvez se dê a partir dos seguintes questionamentos: quais são os contornos ou roupagens da coisa violenta no adolescente? Como pode advir daí um processo de formatação de um sintoma? Quais recursos ele encontrou para construir uma saída à invasão que fez crise no seu grupo social, no seu corpo e no seu mental? Qual acolhimento esse momento de violência recebeu da parte dos adultos presentes? Quais saídas dar a isso que se produz nesses momentos de impasse?

Por vezes o adolescente fica agitado por uma presença excessiva no seu próprio corpo, cujos movimentos são para ele confusos e fora do sentido. A psicanálise permite ler e circunscrever esses movimentos na sua fonte, via de regra não identificada pelo adolescente: um ou vários objetos pulsionais (objeto oral, anal, olhar e voz) que se autonomizam, como tantos objetos violentos não identificados que o bombardeiam de gozo. Falar a um psicanalista permite um processo de formalização do objeto ou objetos em causa, o que introduz um limite a essa invasão.

Em outras séries de eventos violentos, é um Outro feroz que encarna a coisa violenta. Esse Outro para o adolescente pode ser representado por um colega ou grupo de colegas, um adulto em posição de poder (professor, pais, etc.), as instituições do Outro social, ou pela própria linguagem. Trata-se então de operar um movimento visando diminuir o poder desse Outro, de descompletar sua vontade e de abrir um espaço vazio onde o sujeito possa se alojar sem se sentir em perigo.

As duas situações têm seu começo no surgimento de um “excesso” que vem se associar ao corpo. Esse excesso não é nomeável nas coordenadas da língua intima do sujeito[9]. É crucial na nossa ação fazer valer a eficácia pragmática do recurso aos semblantes diante da pulsão de morte, para que esta ache um lugar. Não é necessário temer a existência dessa potência de destruição, já que temos que estar cientes dessa presença em cada um de nós.

Miller[10] diz que o analista deve proceder com a criança violenta, porque não com o adolescente, de preferência por meio da doçura, sem renunciar a manejar, se preciso, uma contra–violência simbólica. Frequentemente somos tentados a nos mostrarmos firmes para parar a violência de uma criança. Entretanto, firmeza não se opõe a doçura. Podemos agir firmemente e falar com doçura. O chamado à interdição não opera a partir do momento em que a violência é a própria pulsão, a satisfação que o adolescente encontra no simples fato de quebrar e de destruir. Existe um fora de limite imediatamente presente, em que o simples enunciado de um limite não limita o ilimitado.

Diante de um gozo sem limite, nem um enquadramento, nem regulamentos e nem uma lei convêm. O que opera é a constituição de uma borda. A borda se constitui entre real e saber, entre um gozo que transborda e o campo significante que se trata de dizer apenas uma parte. Essa borda, Lacan a nomeou função da letra[11]. Ela pode reduzir para o sujeito o peso do sentido e permitir à violência ceder lugar à fala. Fazer borda é introduzir a dimensão do semblante.


[1] Psicanalista, psiquiatra.

[2] LEDUC, C. Ce que les enfants disent de la violence? In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.83.

[3] MILLER, J-A. Enfants Violents. In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.19-31.

[4] LACAN, J. Meu Ensino (1967-1968). Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p.13.

[5] ROY, D. Mon enfant est-il violent ? In: Institut Psychanalythique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019, p.35-37.

[6] LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p.128.

[7] MILLER, J-A. Enfants Violents. In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.19-31.

[8] MILLER, J-A. Enfants Violents. In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.19-31.

[9] ROY, D. Deux violences, un noyau. In: Institut Psychanalythique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris : Navarin éditeur, 2019, p. 55-56.

[10] MILLER, J-A. Enfants Violents. In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.19-31.

[11] STEVENS, A. Un cadre ou un bord ? In: Institut Psychanalythique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris : Navarin éditeur, 2019. p. 147.