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Conversação Inter-disciplinar/CIEN-Bahia: “As (Trans) Formações no Laço Social: A Inquietante Estranheza do Gênero”

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Imagem: Babel – Miguel Gontijo
Mônica Hage Pereira e Wilker França

Por ocasião do forte debate na cidade sobre as questões de gênero e instigados em nos deixar aprender pelos diversos discursos que giram em torno dessa temática, no dia 04 de Maio de 2017, o CIEN-Bahia, em parceria com o Núcleo de Psicanálise e Audiovisual, promoveu uma conversação inter-disciplinar sobre “As (trans) formações no laço social: a inquietante estranheza do gênero”, com a presença da médica endocrinologista Márcia Sampaio, e a psicanalista Marcela Antelo (AME/Membro AMP/EBP). Uma conversação calorosa foi composta por vários profissionais psicólogos, psicanalistas, médicos, estudantes de diversas áreas das Ciências Humanas e um grande contingente de pessoas interessadas pessoalmente no tema.

O CIEN decidido em participar dos debates de temas candentes e que tocam diretamente a população de jovens da nossa atualidade, adota como dispositivo da sua prática, a Conversação, que deverá sempre estar orientada pelo real em jogo que emerge como ponto limite do saber. O espaço vazio, como pontua Judith Miller (2007), marcado pelo traço de união do interdisciplinar, sustenta um espaço que não é de elaboração clínica, mas que se guia pelas formulações freudianas e lacanianas e dos diferentes discursos como modalidade de laço social que Lacan esclareceu em seu Seminário O Avesso da psicanálise (LACAN, 1969- 1970). Lacadée (2007) nos faz lembrar que o “O CIEN tem uma prática, deduzida dos diferentes testemunhos, que faz valer como ele trata os pontos dolorosos da vida cotidiana que o discurso corrente agrava mediante suas queixas e mesmo por seus protestos” (p. 8).

Desta vez, o tema pulsante escolhido girou em torno da questão de “gênero”, e as implicações dessa questão nas “transformações no laço social” – tema norteador do debate do CIEN em 2017. Dentre os diversos discursos, seja o do determinismo biológico ou daqueles que veem no gênero uma norma alienante que levaria o sujeito sempre à sujeição, a psicanálise vem questionar o que é ser homem e o que é ser mulher, descompletando assim, os outros discursos. Para a psicanálise, trata-se, de algo “da ordem de uma posição subjetiva, dando conta de uma certa relação com o corpo e com o Outro” (LEGUIL, 2016, p.40).

Se o gênero nos confronta com certa estranheza, é porque nos remete a uma parte íntima, impossível de dizer em termos de estereótipos, ou em termos biológicos.

A Conversação e um corpo que se transforma

Na conversação discutiu-se que o corpo biológico, herança do jogo de uma genética, não define o gênero do ponto de vista subjetivo. Contudo, no senso comum convencionou-se chamar de homem, o indivíduo que possui um pênis; e de mulher, aquele que possui uma vagina. Aliados a esses órgãos sexuais, este “homem”, ou “mulher”, apresenta-se com toda uma carga hormonal, que o ajuda a definir-se como tal, do ponto de vista da biologia.

A médica Marcia Sampaio nos apresentou vários recursos físico-químicos que a Medicina se utiliza para tentar diminuir o sofrimento daqueles indivíduos que não se “encaixam” no corpo que se tem. Discorreu sobre como se dá o processo de encaminhamento para uma cirurgia de mudança de sexo, destacando que se faz necessário um diagnóstico preciso de um profissional da saúde mental, levando em conta toda a “psicopatologia do paciente”. Destacou, ainda, a necessidade de preencher um protocolo, no qual “se exige de 6 meses a 2 anos de psicoterapia, antes que o paciente inicie o processo de mudança de sexo”.

O discurso médico-científico suscitou várias críticas dos que ali estavam, e foi acusado de ser patologizante “por colocar o sujeito em um lugar de objeto de estudo científico e tentar enquadrá-lo em etiquetas classificatórias”. O argumento utilizado foi o de que “a sexualidade humana não deve se patologizada”.

Descompletando alguns discursos que apareceram durante a Conversação, a psicanalista Marcela Antelo, enfatizou que, para a Psicanálise, corpo e organismo não se confundem e destacou que se a anatomia não é o destino, ela só nos interessa enquanto marcada pela linguagem. Em outras palavras, esse corpo biológico que temos, o nosso organismo, se tornará corpo quando for tocado pelo significante. Por sermos seres falantes, “o único lugar onde se pode ter certezas identitárias é a loucura”, nos disse Marcela. Dessa forma, ela questionou as certezas identitárias dos gêneros e afirmou que as diferenças só existem nos discursos, por isso mesmo, para o discurso psicanalítico, gênero é um fenômeno de linguagem.

Como exemplo disso, temos no Facebook americano 56 maneiras diferentes de se ter uma identidade de gênero e na rede social brasileira são 17 nomes diferentes. “Toda essa proliferação de nomes são tentativas de dar conta daquilo que já é traumático, já é um “transtorno”, para todos nós, que é a sexualidade”, diz ela. A psicanálise revela que a sexualidade humana repousa sobre uma ausência estrutural e traumática (FUENTES e ANTELO, 2017).

Na Conversação pôde-se perceber também a presença de uma forte abordagem social e política sobre a questão de gênero. Em algumas falas, foi possível perceber que o incurável impossível se apresenta como impotência principalmente quando é endereçada para o Outro.

Advertidos desse impossível sempre presente na interdisciplinaridade, os impasses vivenciados por vários indivíduos e profissionais diante dessas transformações ficaram em evidência na Conversação. Um sujeito nos relatou uma de suas vivências: Pedro (nome fictício) que se denomina transexual masculino, ao ir a uma consulta de rotina foi questionado pela secretária: “Como assim Pedro? O que um homem vem fazer em uma ginecologista?”

Nesse sentido, Leguil (2016) nos esclarece quando coloca que o gênero para a psicanálise excede toda norma comportamental e afirma que:

“O gênero lacaniano é, portanto, inicialmente, um modo de ser que excede toda norma comportamental. Ele remete a uma certa maneira de assumir, como sujeito, o significante homem ou o significante mulher, e até mesmo ser ultrapassado por aquilo ao qual remete a esse significante, decorrendo de uma outra cena que não a da consciência. Mesmo que haja jogo de gênero, esse jogo não se reduz a uma mascarada. Para além da mascarada, há um endereçamento ao Outro. E um modo singular de responder à angustia, a partir dos efeitos das palavras sobre o próprio corpo. O gênero que se tem, no que diz respeito ao Outro, ou o gênero que se é, se assentam numa interpretação ligada a uma história íntima constituída de bons e maus encontros, de desejo e de repetição, de avanços e retornos ao mesmo. Portanto, esse gênero não remete a uma natureza ou a uma convenção. (…) Trata-se de um desejo de ser ou de não ser, mas também de um gozo que põe em jogo o corpo” (p.112).

A Conversação é uma aposta

As Conversações do Cien são sempre uma aposta, incluindo o corpo, em deixar-se marcar pela diferença. Só podemos dizer que houve uma Conversação quando algo se deslocou. Ou seja, quando as palavras de um, tocaram o outro, e algo se modificou.

A partir disso, uma questão se colocou para nós do Cien: como fazer um bom uso do dispositivo da Conversação quando um impasse não está localizado previamente? Se o não saber é o que faz falar, como se dá uma Conversação quando diferentes saberes são convidados a expor, sustentando-se no discurso de mestre? Como disse Marcus André Vieira, na V Manhã de Trabalhos do Cien/Brasil, “A gente precisa se desafetar um pouquinho para poder perguntar o que está acontecendo… Quando ficamos afetados, já sabemos o que aconteceu.” Quando esses saberes encontram-se apenas para defender seu ponto de vista, a vista do ponto não permite que apareça o seu ponto de opacidade.

Os efeitos de uma Conversação, para cada um, só saberemos à posteriori.

 


Referências:
BROWN, N., MACÊDO, L. e LYRA, R. Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência. Experiências do Cien no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.
FUENTES, M. J. e ANTELO, M. A Semiologia da Sexualidade. A Psicopatologia Lacaniana. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
MILLER, J. Apresentação. In.: CIEN Digital. N. 2. 2007.
LACADDE. P. A vinheta prática tal como ela se elabora no laboratório do CIEN. In.: CIEN Digital. N. 2. 2007.
LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/ mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.
LACAN, Jacques. Seminário 17 – o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
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