ISSN 2178-499X
Viewing posts categorised under: Cien Digital #25

EDITORIAL – Cien Digital #25

by cien_digital in Cien Digital #25, Editorial

Image: O menino da cordilheira, 2016, Esteban Vivaldi

EDITORIAL

Mônica Campos

Caros leitores, é com alegria que chegamos ao 25º Cien digital. Um trabalho realizado a partir da contribuição de múltiplos profissionais e instituições em que o Cien está presente.

Iniciamos com a apresentação de Anna Aromí, “Um moebius lacaniano”, em que a autora faz a leitura do encontro CIEN/CEREDA como uma forma de captar o real da psicanálise. Também por esta via, seguimos com o texto esclarecedor de Daniel Roy, “Pais Exasperados – Crianças Terríveis”, no qual aponta os embaraços de uma época no que se refere às funções parentais e às respostas das crianças.

Tendo em vista os vários lugares e temáticas, na rubrica Laboratórios temos a contribuição de diversos laboratórios: Laboratório Criar (SP), “Da prática à conversação ou da conversação à prática?”; Laboratório Digaí-Escola (RJ), “Surpresas da inter-disciplinaridade” e “Entre o questionamento agressivo e a apatia depressiva, conversação como campo de mediação subjetiva”; Laboratório Encontro de Saberes (SC), “As conversações: os atropelos, a pandemia e as novas possibilidades” e “A localização do que não se vê”; Laboratório Ciranda de Conversa (PR), “Educadores na pandemia: solitários e impotentes” e “Entre o vínculo e a educação: um impasse”; Laboratório Brota (MG), “Do impossível do furo à contingência de um parkour”; Laboratório Mãe e seus Filhos, “O sexual e a zona de fratura: perspectivas para uma prática com crianças e seus pais”. Vale destacar que todos os testemunhos das práticas nos laboratórios evidenciam a orientação e a sustentação pelos fundamentos do CIEN.

Os princípios e fundamentos do CIEN são atualizados e problematizados nas Contribuições de Ana Lydia Santiago, “O que falar quer dizer”, bem como de Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, “A originalidade da interdisciplinaridade do CIEN”. Ambos os textos foram apresentados na Manhã do Cien Brasil em 2018. Ainda nesta rubrica, podemos ler uma instigante contribuição de Flávia Cêra sobre o nosso tempo e seus efeitos em “A família em questão”.

Em Ponto de Vista, Cláudia Regina Santa Silva, responsável pelo laboratório O saber da criança, trata do funcionamento de um laboratório do CIEN, sua formação, seu percurso, seu encerramento e o que é possível extrair levando em conta a bússola desse fazer.

A rubrica Órbita apresenta o trabalho “Violência e confronto na adolescência: o que pode fazer Borda?” de Pedro Braccini (MG). Esse tema foi tratado no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, considerando o uso do diagnóstico TOD/DSM-V (transtorno opositor desafiador) – como um transtorno de conduta da infância e adolescência – para nomear os fenômenos que fazem objeção à coesão do laço social.

Para concluir nossa revista Cien Digital 25 contamos com o CINE-CIEN realizado pelo Laboratório Ciranda de Conversa (PR) e sua construção a partir do filme “Meu nome é Ray”. A questão que se elabora é: sobre qual humanidade falamos? Tema contemporâneo e caro ao CIEN.

O Cien Digital 25 agradece imensamente a gentileza dos artistas Sílvio Jessé e Esteban Vivaldi que nos permitiram compor o trabalho da revista com beleza e sensibilidade cedendo as artes aqui apresentadas.

Boa leitura!

Read more

Um moebius lacaniano[1]

by cien_digital in Cien Digital #25, Hífen

Anna Aromí

Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.

Gostaria de agradecer à Nohemí Brown, por embarcar nessa sua aventura, do outro lado do mundo. Tive que aceitar porque, nos anos em que estive trabalhando no CIEN, dirigindo a revista ‘El Niño’ com Judith Miller, aprendi muito, não só sobre as crianças, mas sobre a psicanálise como tal. Agradeço também à equipe que traduziu os textos para o espanhol; graças ao trabalho minucioso, pude acompanhar muito bem a apresentação.

Vou começar apontando o enquadre deste encontro. Um encontro CIEN-CEREDA, me parece uma proposta original e um ato importante para o Campo Freudiano e para a AMP. Por quê? Porque, no fundo, o que está sendo colocado em jogo na proposta é captar algo do real da psicanálise. Trabalhando com crianças ou com adolescentes, fazendo conversações em uma escola … poderia parecer que no CIEN, estamos longe do passe, poderia parecer que estamos longe da psicanálise pura. E, no entanto, com esta jornada intermediária, com este encontro CIEN-CEREDA, vocês estão colocando em ato, o que eu chamaria de um moebius lacaniano. E isso está na Proposição de outubro:[2] Lacan fala ali, da psicanálise em intensão e em extensão, fala da psicanálise pura e da psicanálise aplicada. Contudo, para ele, nunca se tratou de um binário. É sempre um moebius, ou seja, uma torsão, uma volta do mesmo, bordeado a partir de ângulos distintos.

Recordo-me bem das palavras de Jacques-Alain Miller, no momento do surgimento do CIEN, porque tive a sorte de estar lá.[3] O CIEN nasceu com esta frase: para a psicanálise com crianças, temos o CEREDA, mas não temos nada para o que as outras disciplinas dizem sobre as crianças e sobre o que a psicanálise poderia conversar com elas. Nesse momento o CIEN surge como um centro inter-disciplinar.

Com este significante “inter-disciplina”, abriu-se o campo da extensão a partir da psicanálise com crianças, convidando a fazer funcionar este moebius, esta banda de intensão e extensão, que é onde podemos verdadeiramente captar algo do real da psicanálise. Porque, se há um real na psicanálise com crianças, o CIEN e o CEREDA o abordam de ângulos diferentes e com dispositivos diferentes. Mas, o real é o mesmo assim como nosso desejo de aprender também o é. Por isso, de alguma maneira, tanto um quanto o outro são laboratórios, laboratórios para fazer a psicanálise avançar.

Então, o que aprendemos com esses textos? Vou um pouco rápido, para deixar tempo para a conversação. A primeira coisa que chama a atenção desses textos são os efeitos que as fotografias podem produzir. O que uma fotografia pode chegar a desencadear! No caso de Eloá, encontramos a fotografia do pai vestido de mulher, que o pai envia para a mãe, dizendo “tenho uma relação com um homem”, com o que essa mãe deve ter se perguntado o que ela teria sido, até então, para seu marido. Se o que ele buscava era “relacionar-se com um homem”, quem ou o quê ela fora para ele? Isto está no caso, embora não dito explicitamente, e me parece ser o equívoco, o nó do assunto.

Depois, encontramos o que uma fotografia desencadeia também no caso de Alice, que esteve experimentando os vestidos da histeria: ser a inocente, a sedutora… mas, quando alguém a toma, o faz verdadeiramente e lhe envia a foto do nu, isso a deixa completamente surpresa e exposta. O que se descobre é que, na realidade, ela tem brincado de sê-lo, o falo. Ela brincava de ser o falo e alguém lhe mostrou que ter o falo é outra coisa. E aí, algo se desvelou.

Dou pinceladas, provocações para que vocês possam intervir. Tentaremos produzir uma conversação, na medida em que nos seja permitido pelo Zoom.

Retomemos Eloá. O empuxo à mulher que Margarete nos propõe no título, poderíamos não o centrar unicamente no filho, mas abri-lo como um leque, porque algo disto está no pai, não digo um empuxo à mulher psicótico, mas há algo…. como dizer…? minimamente, há um vestir-se de mulher e tomar um homem como partenaire, do lado do pai. E, que, por alguma razão, quer mostrar à mãe, produzindo nela um efeito de interpretação e de horror.

É algo que nos ensinam todos esses casos, nos ensinam algo de mulheres que se horrorizam. Mulheres assustadas… de certas consequências de seus próprios atos ou de certas consequências de seus próprios percursos, porque a mãe de Eloá havia sido parceira deste homem durante anos.

Então, me parece que Eloá nos ensina de entrada, que o sexo não é algo que venha enganchado no corpo da criança, não é algo que vem parafusado ao corpo. Como o caso do pequeno Hans, que sonhava com a torneira da banheira parafusada em seu corpo no lugar do pênis. O sexo não vem assim. É algo que se produz, que o parlêtre elabora. E Eloá dá provas disso, quando se apresenta com esse aspecto um pouco andrógeno, um pouco desorganizado… assim como estão desorganizadas suas relações com as palavras e com os objetos. Tudo está desorganizado.

Margarete se empresta para se fazer para nós do fio condutor do trabalho dessa criança. Pareceu-me algo original, porque Eloá faz um trabalho muito importante, há mudanças fundamentais em quatro anos, não apenas na maneira de apresentar-se, que vai se definindo, mas também no final quando acaba com o traço simplesmente do cabelo e da voz, o cabelo e a voz, quando a apresentação inicial era uma verdadeira desorganização. Então, as coisas foram se decantando, depurando e a criança está muito melhor. Mas, como isso foi produzido? Como isso foi possível? Isso também me evocou o caso do Pequeno Hans, de Freud, porque Margarete relata o caso, mas não foi ela quem o atendeu, foram outras colegas que trabalharam sucessivamente com a criança e contaram a Margarete, que supervisionou um pouco a coisa ou, pelo menos, foi quem alinhavou o caso para nós. Parece-me importante assinalar que, embora a criança tenha trabalhado com várias pessoas, nem por isso podemos dizer que foi uma prática entre vários.

Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.

O fato de que várias pessoas atendam sucessivamente uma criança, não faz desse trabalho uma prática entre vários. A prática entre vários é outra coisa, é um trabalho em uma instituição onde toda a instituição está comprometida, onde todos estão em transferência com a psicanálise e as crianças circulam nesse ambiente transferencial no qual qualquer um pode se tornar seu parceiro em dado momento. É uma prática da contingência. É preciso ler Antonio Di Ciaccia, ou os colegas belgas e italianos, que têm muitos anos de experiência. Então, não é uma prática entre vários, tampouco é uma análise nos moldes de uma criança que fala com um psicanalista … Aqui é outra coisa, é outra dimensão, o que produziu efeitos terapêuticos notáveis.

Eloá é uma criança que inventa, inventa soluções, inventa jogos e inventa também seu tratamento. Minha hipótese é que essa criança inventou sua maneira de trabalhar, falando com alguém orientado pela psicanálise. E com eficácia! As estagiaire foram suficientemente dóceis para segui-la e Margarete soube orientá-las o suficiente, para que se pudesse produzir os efeitos obtidos ao final. O que poderíamos nos perguntar aqui é se cada criança não inventa sua maneira de se analisar e, do que se trata, é de segui-la em suas invenções.

Outro ponto importante a destacar é que é possível que uma criança esteja em uma posição de abandono do Outro, ou seja, que sua mãe não se ocupe dela, não lhe dê banho, não a lave e que a deixe um pouco abandonada, mas isso não significa obrigatoriamente que a criança consinta, em todos os casos, em se identificar com esse abandono; esta criança não consente, pelo menos não completamente. Ele se queixa com a brincadeira de boneca que cheira mal e que tinha que tomar banho – está falando dela, é claro. Quer dizer, o Outro dá as cartas, mas o sujeito ainda tem que pegá-las. Nesse ato que se produz no inconsciente, uma escolha forçada está em jogo no sujeito, através da qual teremos um melancólico, caso a criança pegue a carta do objeto dejeto.

Neste sentido, me parece muito interessante, isolar o recorte do jogo do pênis. Essa criança não tinha acabado de sair de dentro da boneca e então aparece o pênis, “você viu o menino?”, é uma afirmação dele: “não sou uma menina”. Havia brincado de boneca, havia se apresentado como uma bailarina e, no final, pergunta ao outro “você viu o menino?”, “você me viu?”, “você me notou?”

Um dos trabalhos apresentados hoje retoma a frase de Eric Laurent, “a internet muda a forma de gozar”[4]. A Internet mudou o modo de gozar, e eu acrescentaria, inclusive, que antes que a Internet mudasse o modo de gozar, os filmes de Hollywood mudaram a maneira de beijar. Tem um filme do Giuseppe Tornatore sobre os beijos, Cinema Paradiso – não sei como se chamava aqui no Brasil – que é uma beleza. Não podemos imaginar como as pessoas se beijavam antes de Hollywood, mas, seguramente, depois de Hollywood, as pessoas se beijam como nos filmes ou pelo menos tentam. É o poder do imaginário sobre o gozo e sobre o corpo.

Eloá vem com o impacto da fotografia de seu pai, através de sua mãe, e sente que precisa colocar uma moldura no seu trabalho pela internet, ou seja, que não é suficiente que haja a imagem e haja a tela como filtro para a coisa; ela precisa adicionar uma moldura, uma caixa, para se proteger melhor. A última questão com que termina o texto de Margarete é se o encontro de Eloá com o gozo feminino será pacífico. Ela anuncia que pode não o ser e, de fato, me parece provável, mas a grande questão é: para quem o encontro com o outro sexo é pacífico, alguma vez? Porque o que vemos é que para o pai não foi, para a mãe não foi e nos trabalhos que ouvimos, também não. Assim, o encontro com o outro sexo é algo que justamente não é – pacífico – nunca. O desejo não é a paz.

Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.

Vamos agora entrar no trabalho de Soraya. Uma boa maneira de começar é marcando, como avançamos em uma pequena reunião preparatória com Flávia e Nohemí, que as conversações que o CIEN propõe e sustenta – Soraya disse muito bem – não fazem interpretação. As conversações do CIEN não são um tratamento, não são uma terapêutica, não se trata de interpretar ninguém ali. Dito isso, é preciso afirmar que não são uma conversação qualquer, não são uma conversação como as outras, como esses… como se chamam? Tertúlias! Encontros. Os encontros do rádio, televisão, blábláblá. Ali, não acontece nada, em geral não tem nada de interessante, no fundo, eles são feitos para adormecer o staff. As conversações do CIEN têm a particularidade de ter uma espinha dorsal – a ideia da espinha dorsal é de Flávia – têm uma espinha dorsal, que é a psicanálise. Portanto, por esse simples fato, pelo fato de que os que coordenam ou sustentam as conversações são, antes de tudo, analisantes orientados/as pela psicanálise, isso dá a essas conversações uma orientação precisa que não é como as outras, e os efeitos que elas produzem também podem ser diferentes.

O caso de Alice, que Soraya nos apresenta, nos faz voltar a encontrar com o horror das mulheres ou, pelo menos, com o susto das mulheres diante do falo, como algo que vem lhes dizer: “você pode pensar que o é, mas outra coisa é quem o tem”. Essa seria uma primeira questão e a segunda, como diz Lacan, é captar que o falo é algo que se interpõe, é paradoxalmente o que impede a relação sexual.

No trabalho de Soraya, há uma frase a destacar: “posicionar-se nas redes sociais como um eu sem corpo”, porque diz algo do momento atual, agora quando, em todo o Campo Freudiano, a única maneira de trabalhar com os colegas e com os pacientes é com Zoom, Skype ou telefone. Ainda não sabemos os efeitos disso tudo, estamos fazendo a experiência, ou seja, os estamos usando sem saber os efeitos que produzimos. Não sabemos quais efeitos de formação irão se produzir, se é que se produzem; não sabemos quais são os efeitos de relançamento do desejo; poderemos entender tudo isso depois. Então, me parece que essa ideia de “eu sem corpo”, é preciso recortá-la, porque tem um valor de ensino. O que Alice nos ensina é que talvez as redes sociais favoreçam um eu sem corpo, mas não sem o inconsciente. As redes sociais não tamponam, não impedem que o inconsciente surja: é o que acontece com Alice ao receber a foto.

Outra foto que revela! Desta vez, revela a dérobade[5], a fuga da histeria, como se dissesse ‘isso não funciona comigo’, mas que se denuncia, fica claro que ali havia um desejo em jogo, precisamente, que o falo estava em jogo.

Por último, antes de entrar na conversação, eu diria que, neste exercício de moebius entre CIEN e CEREDA, há algo que nos toca como psicanalistas, nos toca no íntimo do nosso desejo de analistas. Parece-me que o que esses trabalhos têm em comum é que eles nos ensinam algo da ética analítica. Ou seja, que não poderiam ser realizados, se não estivessem apoiados na firme convicção, como diz Lacan no Seminário 7, de que o analista não sabe o que é o Soberano Bem[6]. E isso, trabalhando com crianças, é totalmente imprescindível.

Se trabalhássemos pensando que sabemos qual é o bem para uma criança, fosse numa conversação do CIEN ou num trabalho analítico com uma criança, se pensássemos que sabemos o que lhes convém, os efeitos que vimos não teriam sido produzidos, nem os efeitos terapêuticos, nem os efeitos de ensino. Esta é a hipótese que lhes proponho e agora vamos conversar e escutar as de vocês.

 

Transcrição: Daniela Nunes Araújo
Tradução do texto estabelecido pela autora: Mª Cristina Maia Fernandes
Revisão da Tradução: Paola Salinas

[1] Texto elaborado pela autora a partir da transcrição da sua fala no VI Encontro dos Núcleos da NRCereda no Brasil – “Os Impasses do sexual e os arranjos da sexuação”, na Mesa “NRCereda e CIEN: Sobre a Diferença Sexual”, em 11 de março de 2021, via Zoom.
[2] LACAN, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
[3] AROMÍ, A., “La alegría del Niño”, El Niño nº 10. Barcelona, febrero de 2002.
[4] LAURENT, E., Jouir d’internet. Conversation avec Eric Laurent, La Cause du dèsir nº 97, Navarin Editeur, novembre 2017. Disponível em português: Laurent. Eric. Gozar da internet. In: Revista Digital de Psicanálise e Cultura da EBP-MG, n. 12, agosto de 2020. http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet
[5] NT: evasão, fuga.
[6] LACAN, J., O Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
Read more

Pais exasperados – crianças terríveis[1]

by cien_digital in Cien Digital #25, Hífen

Daniel Roy[2]

Construção Crepúsculo Urbano – Foto gratuita no Pixabay

Este é o título que Jacques-Alain Miller nos propõe para a nossa próxima Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança.

É um título à altura da época, que não é um jargão hermético. Ele ressoa com uma realidade bem cotidiana no que diz respeito às relações dos pais e das crianças deste nosso século. Ele também nos diz respeito na medida em que estamos envolvidos nisso. Esse título nos convoca a seguir o fio do questionamento de Lacan no final de seu ensino, em dezembro de 1976: “Ela está, sim ou não, fundamentada, essa relação da criança com os pais?”[3]

Como isso está fundamentado para Nina, de 4 anos, que vem para uma consulta “por que não dou ouvidos à mamãe e ao papai”, diz ela? Eles dizem de sua filha: “ela tem crises”. Ela grita e atira seus objetos, “um verdadeiro tornado”. Punir, falar com ela, nada adianta, “ela não dá ouvidos às ordens.” A mãe se culpa por “ter estragado sua filha” e nota as dificuldades de Nina em se separar dela em quaisquer circunstâncias.

E para Maxence, 3 anos e 7 meses, que não para com as birras, como fazer? “Na família, não conseguimos lidar com ele, ele quer nos organizar!” Ainda bebê, seus gritos eram insuportáveis para seus pais, que não conseguiam acalmá-lo. Nos primeiros encontros, Maxence permanecerá muito colado à mãe, fazendo um uso ilimitado do corpo dela. Maxence não tem um ursinho de pelúcia? “Mas, sou eu!”, sua mãe responderá.

Destes dois encontros e de tantos outros, deduz-se uma perspectiva precisa: as crises, os ataques de raiva, a criança que não escuta, com a qual os pais não conseguem lidar, se esgotando completamente ao fazê-lo, podemos considerar tudo isso como o princípio organizador da família. Além disso, esses significantes, e outros, tornaram-se realmente o que funda uma relação direta e sem mediação da criança com os pais, na medida em que esses significantes realizam um aglomerado de corpos em presença e concentram a atenção e a libido de todos.

Não é a família que está em crise, é a crise que se encontra no próprio fundamento da família: tal é o novo princípio da família pós-moderna. A “criança-terrível” aparece aí como um condensador de gozo para cada um. Todos à beira de um ataque de nervos. Este é o caldeirão em que somos convidados a mergulhar.

Famílias / Transmissões

A família do século XXI não é mais a família dita tradicional ou patriarcal, nem a família conjugal do século passado. Ela é uma nova resposta ao enigma da transmissão que está no cerne desta “formação humana”.

Em 1938, em seu texto “Os Complexos familiares na formação do indivíduo”, a “família moderna”[4] é para Lacan o produto “de uma profunda reorganização”[5] que não é de forma alguma uma simplificação em direção a uma unidade social elementar (pai, mãe, filhos), mas “uma contração da instituição familiar”[6], “sob a influência prevalente do casamento”[7] e ele adota o termo “família conjugal”[8], retirado de Durkheim.

Esta reorganização tem a consequência direta de fazer aparecer toda uma nova dimensão da transmissão, que Lacan destaca em 1969, em sua Nota sobre a criança: “A função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades, destaca a irredutibilidade de uma transmissão […] que é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”[9].

A transmissão não é mais aqui a transmissão automática de um nome e de uma autoridade. Ela só existe vinculada a um desejo, enquanto encarnado, seja pela via de uma falta, seja pela da nomeação na palavra. Há, aí, uma mudança de “eixo da função significante ligada ao termo família”[10].

Nesta configuração, se desenharmos dois círculos que se sobrepõem parcialmente e, se escrevermos em um dos círculos os dois significantes de “pai” e “mãe”, e no outro o de “criança”, podemos, então, escrever em sua intersecção, com o significante “desejo”, os dois nomes de falta e de nomeação. Percebemos, assim, a parte que se trama neste lugar, ao mesmo tempo traço de união (hífen) e espaço de separação, onde virá se alojar o sintoma da criança, como Lacan o indica na sequência de sua “Nota sobre a criança”.

Mas a família daqui em diante está imersa no banho de nossa civilização, onde os objetos provindos da tecnologia, os objetos mais-de-gozar, assumiram a autoridade e fundam a lei para todas as formas do ideal. O gozo está aí em primeiro lugar. Em um de seus últimos seminários, em 10 de junho de 1980, e intitulado por J.-A. Miller, “O mal-entendido”, Lacan extrai as consequências disso e evoca “dois falantes que não falam a mesma língua […] Dois que se conjuram para a reprodução, mas por um mal-entendido realizado”[11]
e que, ao dar a vida, transmitem esse mal-entendido. Trata-se de um mal-entendido que incide sobre o gozo e que se enraíza nas “algaravias (bafouillage) dos seus ascendentes”, do qual o corpo novo de falante faz parte. O anúncio do nascimento é essa algaravia em que se aloja o gozo, mal-entendido estrutural. Então, vamos colocar “dois falantes” em um dos círculos, deixar “criança” no outro, e colocar (inscrever) na interseção, o gozo cercado por seu mal-entendido e pelas algaravias. O real do gozo vem, assim, “se imprimir” por debaixo na trama do discurso e dar uma nova perspectiva ao sintoma, aquela de um real irredutível entre pais e crianças que os une e os separa, “a um ponto de “não se fala disso”[12], presente em cada família.

Famílias / Disfuncionamentos

Eis, então, a atual família resíduo: um conjunto formado pela reunião, no sentido matemático, de dois conjuntos, o dos “pais”, de dois falantes, de um lado e o das “crianças”, do outro. A interseção, sendo constituída pelo que eles têm em comum, ou seja, mal-entendido e algaravia sobre o gozo dos corpos, transmitidos por meio de desejos encarnados, no melhor dos casos. Essa estrutura é suficiente para dar conta da incrível diversidade sociológica das famílias atuais e da grande variedade de tipos de pais e tipos de crianças que elas reúnem, como constatamos em nossas práticas. Mas, o que passa despercebido é que “família” não é mais um significante dado de antemão como inscrito no simbólico, seja por filiação ou por aliança. Esta inscrição é a parte que retorna a cada um dos falasseres, na medida em que eles fazem – ou não – existir a função significante da família, ali onde se impõe sua função de gozo, essa disjunção que muitas vezes faz vir, ao primeiro plano, a função imaginária da família.

Pássaro Esgrima Bico – Foto gratuita no Pixabay

É nessa inconsistência da família pós-moderna, quanto ao simbólico, que penetram os discursos de ajuda aos pais e de remediação cognitiva e comportamental, a fim de rastrear disfunções. Eles vêm atualmente sustentar os ideais da família, explorando a discrepância inevitável entre a “criança-perfeita” e a “criança-terrível”, entre a criança-falo prometida pelo ideal e a criança-objeto, ser de gozo. Essa divisão marca uma mulher ou um homem quando eles se tornam “pai” ou “mãe”. Ela vem “exasperar” em cada um deles, a tensão entre a mais-valia que conta com o acesso a esses significantes mestres e o efeito de castração que, por sua vez, é registrado como perda, se não como falta.

Ao não ser tomada por um dizer singular, essa divisão, então sentida como insuportável, é projetada sobre a criança que assume os traços de um ser enganador e cuja presença custa tempo, energia, dinheiro etc. O coaching parental, o suporte aos pais, enquanto práticas de discurso, asseguram o “serviço de pós-venda” da agência-mestre da família: colocando palavras no sofrimento, dando sentido, ensinando a lidar com as emoções, segundo a vulgata atual. Esses sintagmas de agora em diante ocupam seu lugar no discurso corrente, assim como certos termos “pseudocientíficos” elaborados por especialistas. Substituindo-se aos significantes particularizados que se transmite na língua falada nesse tal grupo familiar, eles fazem consistir os laços de dependência.

Nesta zona de alienação significante, fica ocultado o que circula como desejo e o que se deposita como gozo em jogo, para cada um dos parceiros. Na verdade, é nessa intersecção, que o mínimo processo de separação se funda, dos desmames da infância até as aventuras tumultuadas da adolescência.

Depende disso a possibilidade de uma criança decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais como “causa de seu desejo” e como “dejeto de seus gozos”[13]. Essa decifração, uma criança a faz com os significantes que ela recolhe, que assumem o valor singular do gozo pulsional que os lastreia. Essa é a função privilegiada do jogo da criança, que enlaça, em torno do objeto indizível, as extremidades de corpo, fiapos de gozo e fragmentos de discurso. Este objeto é a válvula que abre, entreabre ou fecha o espaço para uma separação.

Quando este objeto não tem lugar subjetivamente como causa de desejo e resto de gozo, ele se encarna na criança terrível, que “não ouve nada”, “que só faz o que lhe dá na telha”, “tem uma crise”, “impede a todos de dormir”. Os conselhos de orientação dos pais, assim como os diagnósticos de tipo médico, se somam às queixas dos pais e às manifestações sintomáticas da criança e desencadeiam o poder de angústia do objeto a. Essa presença não reconhecida, que assombra o sintoma da criança-terrível, passa a questionar cada um dos pais sobre “a verdade do par parental”[14], exaspera o lugar que um filho pode ocupar “como objeto a na fantasia”[15] de cada um. Essa presença também aterroriza a “criança-terrível”, sob diversas formas fantasmáticas e de pesadelo.

Assim, o disfuncionamento não é o que se acredita, ele não se relaciona com um mau arranjo dos papéis parentais ou das relações pais-crianças, nem com o mau funcionamento de uma função psíquica ou cognitiva. O disfuncionamento consiste em não querer saber que a família já é um modo de tratamento do gozo dos corpos falantes presentes, que não responde a nenhum ideal, mas que é, antes, da ordem de uma “religião privada”, da qual ignoramos tudo quando encontramos pais e filhos e da qual temos tudo a aprender sobre as regras que ali se aplicam, os ritos que ali se celebram, os pequenos deuses que ali reinam. Mais fundamentalmente, temos que aprender a língua que ali é falada, sua gramática, seu vocabulário. Estamos, portanto, mais próximos da posição da criança, buscando decifrar os enigmas, dar conta do valor de gozo das palavras, dos atos e dos objetos que circulam e dar a cada um, a parte que lhe cabe. Descompactar “a família holófrase”[16], de alguma forma, sem uma grade de avaliação ou um modelo ideal.

Famílias / Equívocos – bévues

Ao contrário das evidências antropológicas, parece que a família não se enquadra, de forma alguma, em uma lógica do universal e que ela, daqui em diante, entrou em uma lógica do não-todo. Isso condiciona nosso acolhimento dos sintomas das crianças e das queixas e preocupações dos pais. Não podemos mais colocar no princípio de nossa intervenção que para todos os seres falantes, a família é uma função, com o que isso implica que exista um, que seja o pai, a mãe, ou os pais, ou mesmo o especialista ou o coach, que seria seu fundador ou o mantenedor e que, em função disso, ficaria de fora. Deve-se acrescentar que a própria criança é, muitas vezes, localizada, pelos pais, no lugar daquele que funda a família. Sabemos por experiência, que todas essas configurações produzem efeitos potencialmente devastadores para os membros dessa família.

Nós partimos, portanto, de outro ponto de vista, colocando que não existe ser falante que não seja de uma família, o que abre muitas perspectivas a todos aqueles que estão em posição delicada com sua família ou que se consideram “sem família”, mas também para todos os outros. Para cada criança, protegida ou abandonada, há possibilidades de “bricolagens”. Respondendo a uma lógica do não-todo, a instituição “família” oferece outros recursos: aqueles, para a criança, de ser não-toda dependente das identificações familiares, não-toda dependente do amor, filial e parental, ou seja, ser capaz de explorar seus lados menos amáveis. E isso também se aplica aos seus “parceiros no jogo da vida”, pai, mãe, padrasto, madrasta e outros “familiares”.

Talvez agora tenhamos voz e espírito mais livres para enfrentar a criança-terrível, o hiperativo, os dis[17], aquele que morde, aquele que não dorme e seus pais exasperados, em pânico ou desesperados. Podemos acompanhar aqui, o desenvolvimento feito por J.-A. Miller em seu curso “Peças soltas” de 19 de janeiro de 2005, sobre “a questão do exercício da psicanálise na época da leveza”[18]. Ele faz valer que face a este “domínio da leveza”, que visa reduzir o sujeito de sua particularidade a um universal, a psicanálise não precisa entrar “em uma competição de poder terapêutico”[19], na medida em que, com Lacan, ela é a única a levar em conta o lugar do objeto a, tanto como causa do desejo, como mais-gozar, mas igualmente como consistência lógica, como um real “produto do simbólico”[20]. Ele nos incentiva a assumir um ponto de vista “pragmático e de quem faz bricolagem”[21] que consiste em buscar com os sujeitos, os significantes, os S1 que “ajudam a tornar o gozo legível”[22] e que, portanto, “ajudam a tornar legível a história”[23].

Mas, todas as situações que encontramos não respondem a esta dialética que permite instalar “o aparelho de decifrar da psicanálise”[24]. Há aquelas para as quais devemos considerar que, no seio da exasperação de pais exasperados e do terror dos filhos terríveis, se aloja “um gozo ilegível”[25], que só pode permanecer uma “letra velada’, o que significa que temos que respeitá-lo neste lugar, que não temos que procurar reduzi-lo, anulá-lo, interpretá-lo.

Devemos, portanto, levar em conta, essa “economia do gozo” própria a uma família.

Navio Colher Mar – Foto gratuita no Pixabay

Para tanto, o uso do termo equívoco (bévue), de um equívoco (une-bévue)[26], introduzido por Lacan em seu Seminário XXIV, é inestimável para nós aqui, na medida em que amplia o conceito de inconsciente freudiano, enfatizando aí o traço de uma passagem: algo aconteceu, um relâmpago chegou. Um equívoco, não há nada mais próximo, no ser falante, para fazer signo do acontecimento contingente. Não são novas significações que se trata de isolar, mas, a partir de um equívoco (une bévue), “na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala”[27]. Lacan indica “que não há nada mais difícil de apreender do que esse traço do equívoco, pelo qual traduzo o Unbewusst, que significa inconsciente em alemão. Mas, traduzido como um equívoco, significa outra coisa – um obstáculo, um tropeço, um deslizamento de palavra a palavra”[28].

O um-equívoco é um traço que Lacan equipara ao traço unário, como a única coisa que faz Um em um mundo onde “todos não têm nenhum traço comum”[29]. O único traço comum é ser marcado com o traço do um-equívoco. As “besteiras” das crianças, os seus vários tropeços, encontram aí, uma luz renovada!

Então isso nos interessa muito, porque nos coloca de cara com a taxionomia dos distúrbios da infância: distúrbio da linguagem, da atenção, disforia de gênero, distúrbio das condutas, do comportamento, distúrbios dos esfíncteres. Eis todas as principais funções do corpo falante, já ordenadas pelo discurso biopsicossocial da OMS[30], que todas elas entram no traço do um-equívoco. O “distúrbio” é um traço do um-equívoco, mas acolhido, sem o recurso de um véu sobre a letra, por alguém que se confere o atributo do saber, e por este fato impede que Um encerrado no traço do um-equívoco vá em busca de seu Outro. Esta é, de fato, a única maneira de saber que ele não estava escrito ali, e que, portanto, ele não faz destino.

Para nós, isso abre duas maneiras de fazer as coisas: acolher, como traço do um-equívoco, as diversas desordens, distúrbios, a partir do momento em que eles são colhidos em um discurso e, assim, permitir que esses significantes se emitam para outros significantes. É a invenção do inconsciente no sentido freudiano, sempre atual. Mas, a outra manobra que podemos designar com uma palavra que Lacan tomou emprestado do pequeno Hans, “isso consiste em servir-se de uma palavra para um uso diferente daquele para o qual é feita, nós a amarrotamos um pouco e é neste amarrotamento que reside o seu efeito operativo”[31]. Assim, ou amarrotamos para deter a hemorragia ou visamos o relâmpago, esse é o efeito ao qual, às vezes, a poesia ou o dito espirituoso alcançam.

Sugiro que retenhamos deste percurso, que o traço de união (hífen) entre pais exasperados e filhos terríveis não se enquadra nem na dimensão da transmissão, nem num veredito de disfunção, mas que ele não é nada mais que esse traço do um-equívoco que sulca a família. Esse Um-equívoco que, sozinho, pode fundar essa relação da criança com os pais e dos pais com as crianças que, com Lacan, interrogamos no início.

O equívoco contra a norma, sim, é possível.

 

Tradução: Cristina Vidigal.
Revisão: Cristina Drummond e Mª Cristina Maia Fernandes.

[1] Texto publicado no Zapresse em direção às JIE7, pronunciado no dia 13 de março de 2021, por ocasião do encerramento 6ª Jornada do Institut de l’Enfant. Editado por Frédérique Bouvet e Isabelle Magne. Original disponível em: https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Também disponível em Rayuela. Publicación virtual de la Nueva Red Cereda América, n 9, novembro de 2022.
[2] Secretário Geral do Institut Psychanalytique de l’Enfant.
[3] LACAN J., Le Séminaire, Livre 24, L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre, leçon du 14 décembre 1976, ¿Ornicar?, no 12/13, décembre 1977, p. 14.
[4] LACAN J., Os complexos familiares na formação do indivíduo. Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 32.
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] Ibid.
[9] LACAN J., Nota sobre a criança. In Outros Escritos, op. cit., p. 369.
[10] LACAN J., O Seminário, Livro 5, As formações do inconsciente, texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 59.
[11] LACAN J., O mal-entendido. In Opção Lacaniana nº 72, março de 2016, p. 11.
[12] MILLER J.-A., Assuntos de família no inconsciente. In: Asephallus, Revista eletrônica do Núcleo Sephora, v. 2 nº 4, maio a outubro, 2007.
[13] MILLER J.-A., Préface. In L’inconscient de l’enfant. Du symptôme au désir de savoir, Bonnaud H., Paris, Navarin / Le Champ freudien, 2013, p. 11.
[14] LACAN J., Nota sobre a criança, op. cit, p. 369.
[15] Ibid.
[16] Cf. LAURENT È., Institution du fantasme, fantasmes de l’institution, Les feuillets du Courtil, nº 4, efin 1992, p. 9.
[17] N.T.: Dys em francês faz referência aos distúrbios e disfunções da linguagem e da aprendizagem como são nomeados os sintomas no DSM: dislalia, dislexia, disfagias, dispraxias. Mais recentemente nessa sequência foi incluída a disforia de gênero para nomear as singularidades de respostas no campo do sexual.
[18] MILLER J.-A., Piezas Sueltas, Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 102.
[19] Ibid.
[20] Ibid., p. 109.
[21] Ibid., p. 115.
[22] Ibid.
[23] Ibid.
[24] Ibid., p. 114.
[25] Ibid., p. 113.
[26]  LACAN J., Le Séminaire, Livre 24, L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre, leçons du 10 et du 17 mai 1977, Ornicar ?, nº 17/18, Printemps 1979, p. 16-23.
[27] LACAN J., O Seminário, Livro 23, O Sinthoma, texto estabelecido por J.-A. Miller, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 129.
[28] LACAN J., Le Séminaire, Livre 24, L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre, op. cit.p. 18.
[29]  Ibid.
[30]  A OMS define e divulga “uma família de classificações” para definir as duas dimensões de estados disfuncionais e comportamentos disfuncionais: por um lado o CID, Classificação Internacional de Doenças, por outro a CIF, Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, disponível no site da OMS (https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42418/9242545422_fre.pdf)
[31]  LACAN J., Le Séminaire, Livre 24, «L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre», op. cit., p. 21.
Read more

Da prática à conversação ou da conversação à prática?[1]

by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios

Laboratório Criar (em formação) – CIEN-SP – Eduardo Vallejos

Coat on sewing body form – Samantha Hurley from Burst

O Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN) tem como um de seus objetivos que a psicanálise possa se deixar ensinar sobre aquilo que outras disciplinas revelam sobre o saber da criança e do adolescente e, com isso, circular a palavra em espaços onde até então não era possível. Como nos indica J.-A. Miller, a partir do impasse que nos faz falar, produz-se uma “associação livre coletivizada”[2] entre os participantes, tanto sobre experiências profissionais anteriores de cada um, quanto sobre uma experiência comum entre os participantes do laboratório.

Heloisa Telles parece nos indicar esta diferença: “[…] os laboratórios, que organizam o desejo de um debate interdisciplinar dos seus protagonistas e [que] também organizam o espaço que visa dar a palavra a crianças e adolescentes, têm a responsabilidade de recolher e transmitir ‘os efeitos subjetivos do dom da palavra no dispositivo da conversação’’’[3]. Fica claro que o trabalho do CIEN se faz em torno dos impasses que nos mostram as crianças, os adolescentes e aqueles que, na especificidade de seu campo de atuação, encontram dificuldades no trabalho com elas.

Por um lado, temos no laboratório a conversação que se produz a partir das vinhetas práticas que cada participante pode eleger de sua experiência prévia, ou seja, dos impasses que cada um encontra ao trilhar seu próprio caminho. De outro, temos uma conversação que se faz a partir do que se elabora e se oferece, pelo próprio laboratório, às instituições que trabalham com a infância e adolescência. O laboratório, como nos diz Heloisa, também oferece a organização de um espaço em que os integrantes do laboratório não só participam da conversação, desde a sua disciplina, como também, a posteriori, estabelecem a conversação da conversação, debruçando-se sobre os impasses de uma experiência que são de ambos, do grupo acolhido e do laboratório implicado em sua escuta.

Não só o campo da infância e adolescência com seus impasses nos une e sustenta o laboratório. Talvez seja a partir da prática do laboratório in loco, quando este se dispõe a construir um trabalho de escuta a partir da demanda de uma instituição, que podemos circunscrever um “desejo de fazer laboratório” comum a todos. Desejo de quem quiser se responsabilizar em “recolher e transmitir ‘os efeitos subjetivos do dom da palavra no dispositivo da conversação’’’[4].

Éric Laurent nos indica que a partir do dom da palavra, da conversação, se instala a transferência e é preciso “saber que uso se fará dela”[5]. E ele segue: “Quando estendemos o dispositivo analítico a grandes ou pequenos grupos de palavras, a lugares de palavra etc., o fim deve também estar definido. Quando os Kleinianos, Bion, etc., fizeram uso de pequenos grupos, seu enfoque foi o de manter um objetivo para o grupo, e fazer da transferência um instrumento para remeter cada um a seus pequenos assuntos, ao que [cada um] tem a fazer”[6].

Escutar as trajetórias profissionais de cada participante, com suas angústias e impasses no campo da infância e adolescência, é condição para se formar um espaço de escuta acolhedor, em que os equívocos são bem-vindos e, inclusive, motor do trabalho. No entanto, será que podemos dizer que a conversação, quando se debruça apenas sobre os impasses prévios de cada participante, nos basta para circunscrever a finalidade de um laboratório?

Me parece que Laurent nos dá pistas quando liga o objetivo e finalidade do laboratório à manutenção da transferência dos participantes com o grupo. Mais do que um interesse pelos impasses no campo da infância e adolescência, o que sustentaria a transferência de todos com um laboratório não seria sua extensão no campo social? Não seriam as práticas in loco, com começo, meio e fim, que organizam os participantes em relação a um coletivo e objetivo comum?

Casinha com menino, obra de Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, sem data.

Tento, brevemente, propor uma diferença entre as práticas dos integrantes do laboratório e a prática de um Laboratório. É certo que as práticas dos participantes do laboratório se atravessam e compõem a interdisciplinaridade tão cara à proposta do CIEN, mas a prática de um Laboratório talvez seja algo a ser inventado pelo coletivo ao construir ou acolher, na cidade, uma demanda de conversação.

A pergunta do título se responde, a meu ver. Não se trata da prática à conversação ou da conversação à prática, mas de uma codependência entre ambas as vertentes, uma vez que a prática que ofertamos in loco é o que sustentaria a finalidade de um Laboratório e este não se configura como tal sem a participação das distintas disciplinas que também se dedicam ao trabalho no campo da infância e adolescência.

Talvez esta prática da conversação in loco entre todos os participantes do laboratório seja sua marca de união na medida em que ela inclui, desde seu início, o corte. A prática in loco, ao determinar um enquadre e colocar em perspectiva um fim, revela a urgência própria do momento de concluir. É o corte que engendra uma pressa que faz existir em ato o tempo da libido, diferente do tempo epistêmico. Sem corte nas conversações e sem um fim como perspectiva, a conversação corre o risco de se manter em uma zona de produção e proliferação de sentido, sem incluir em seu centro o real como o que escapa à significação, mas que produz seus efeitos devastadores. Para se chegar à certeza de um ato que possa tratar o real, é preciso fazer par com a pressa.

Esta reflexão sobre o funcionamento do Laboratório CRIAR se deu no início da pandemia, produzindo, ao mesmo tempo, um convite ao trabalho. Como bem pontuou Flávia Cêra na última conversação de 2020 com os laboratórios de São Paulo, é importante que possamos nos deslocar da impotência diante do horror posto pela pandemia, que paralisa, para uma posição de mais consentimento em relação ao real, que nos permite agir e assumir responsabilidades diante do impossível que a tragédia comporta. Quem sabe possamos tecer pelas telas uma prática que consente e está à altura do tempo do real[7], “de onde não se sai”[8], assumindo riscos frente à velha e violenta segregação da qual crianças e adolescentes são alvos constantes, em quase todos os discursos a que são submetidos.


[1] Texto apresentado inicialmente na VII Conversação do CIEN-Brasil, “Zonas de fratura – diferenças, corpos e saberes, realizada em 11/03/2021. A presente versão conta com acréscimos e revisão feitos pelo Laboratório especificamente para esta publicação.
[2] MILLER, J-A. La pareja y el amor: conversaciones clínicas con Jacques-Alain Miller en Barcelona/Jacques- Alain Miller. [et. al.] – 1ªed. – Buenos Aires: Paidós, 2003. p.16.
[3] TELLES, H. P. R. S. “A invenção do CIEN”. In: Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil/. organizado por Nohemí Brown, Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra. Belo Horizonte: EBP, 2018. p.15.
[4] TELLES, H. P. R. S. “A invenção do CIEN”. In: Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil/. organizado por Nohemí Brown, Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra. Belo Horizonte: EBP, 2018.
[5] LAURENT, É. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. In: Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil/. organizado por Nohemí Brown, Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra. Belo Horizonte: EBP, 2018, p. 46.
[6] LAURENT, É. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. In: Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil/. organizado por Nohemí Brown, Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra. Belo Horizonte: EBP, 2018, p. 46.
[7] OTONI-BRISSET, F. Analista: presente! Boletim Punctum, nº 0. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2022. Disponível em: www.encontrobrasileiroebp2022.com.br/argumento-analista-presente/ Acesso em: 30 de junho de 2022.
[8] OTONI-BRISSET, F. Analista: presente! Boletim Punctum, nº 0. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2022. Disponível em: www.encontrobrasileiroebp2022.com.br/argumento-analista-presente/ Acesso em: 30 de junho de 2022.
Read more

Surpresas da inter-disciplinaridade

by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios

Esteban Vivaldi, Salvador-Bahia, sem título, 2022

Laboratório Digaí-Escola – CIEN-Rio – Anna Luiza Almeida, Franciele Gisi M. de Almeida, Gricel Hor-Meyll, Mirta Fernandes e Vânia Brito Gomes

Realizamos três conversações com coordenadores, psicólogos, assistentes sociais e educadores de um Projeto Educacional que trabalha com internos do DEGASE – RJ. Pelo laboratório Digaí Escola participaram as psicanalistas Mirta Fernandes e Gricel Hor-Meyll.

A partir destas experiências, que nos pareciam descontínuas, com longos intervalos entre elas, e da dificuldade em extrair no laboratório o ponto de impasse que se colocava como limite aos profissionais do projeto, retomamos uma questão que nos interessava há algum tempo: como recolher depoimentos dos diferentes participantes de uma conversação? Quais os efeitos e consequências de uma experiência, do ponto de vista de um profissional de uma outra disciplina?

Instigados por essas perguntas, provocamos, após as conversações, um encontro com as coordenadoras do projeto, o que produziu uma reflexão sobre a prática no laboratório, a presença do psicanalista e os efeitos da experiência inter-disciplinar. Esse querer saber sobre os efeitos e consequências dessa experiência permitiu que não só pudéssemos retornar ao que havíamos recolhido e fazer uma releitura, mas que pudéssemos também formular a importância de algo que sustenta a função Laboratório no CIEN: a inter-disciplinaridade.

Na primeira das três conversações realizadas, os professores partem de uma queixa, a frustração com os resultados do trabalho, pois a maioria dos meninos que tem passagem pela criminalidade reincide e retorna ao DEGASE.  Surgem várias queixas sobre os agentes socioeducativos que trabalham com os meninos, mas os educadores concluem que os agentes também sentem o “peso do sistema”. Tanto os meninos quanto os agentes ficam “desumanizados” por estarem encarcerados. Alguém lembra que eles, os educadores, estão lá para tentar desestruturar o sistema “por dentro do sistema”, mas o resultado é tão pequeno, diante de tanto investimento, que a sensação é de impotência. Até que alguém constata, com surpresa, que eles passaram a maior parte do tempo falando dos agentes. Neste momento, decidimos encerrar aquela conversação. Marcar a perplexidade e a surpresa é o corte que relança algo para o próximo encontro.

No segundo encontro, há tensão entre alguns educadores e a coordenação do projeto. Perguntam-se por que tantos educadores vêm deixando o projeto. Há um incômodo com essa saída, que, segundo uma das coordenadoras, ocorre sem que nada seja dito previamente, impedindo que se tente resolver as questões. Os educadores começam falando das dificuldades no trabalho dentro do DEGASE, mas passam a identificar dificuldades no projeto e surgem queixas sobre os privilégios de alguns educadores. A coordenação do projeto propõe uma nova reunião, sem a presença do CIEN, para que possam discutir estas dificuldades. A implicação da coordenação seria um efeito da conversação? Mais uma vez, irrompe algo surpreendente, que fura a consistência da coordenação, instaura um incômodo e a convoca a trabalhar as questões que emergiram.

O terceiro encontro foi on-line, já durante a pandemia, para tratar da angústia dos educadores com a situação dos internos, diante da impossibilidade de atuar, presencial ou virtualmente. Dizem que sem a presença deles, os jovens teriam ficado “sem nada”. Para sustentar algum vínculo, planejaram enviar cartas aos internos, mas, embora muitos educadores tivessem se comprometido, poucos escreveram. Um dos presentes diz que não considera a ação efetiva, e que deveriam se mobilizar pelo desencarceramento: “Só temos um tiro e não podemos errar”. Colocamos esse ponto em questão, será que só tinham mesmo um tiro? E por que não podiam errar? Ao final do encontro, decidiram seguir com a ideia das cartas e que todos seriam bem-vindos para ajudar. O rapaz que a princípio foi contra, diz que vai participar.

Foto de Daniel Frank no Pexels (pexels-daniel-frank-305197)

Esse ponto surgido ao final da terceira conversação parece condensar uma questão que circulou nos três encontros. Uma relação com o ideal de “salvar os meninos”, “mudar o sistema”, que, ao não se efetivar, os deixava frustrados, impossibilitados de reconhecer e valorizar a importância do empenho de cada um. Ao interrogar a certeza “só temos um tiro e não podemos errar”, abre-se a possibilidade de uma aposta nos efeitos possíveis do trabalho. A exigência idealizada de serem os “salvadores” dos jovens e o imperativo que se coloca com “não poder errar”, afrouxa-se. A intervenção nesse ponto permitiu que essa fala tão consistente pudesse ser furada, colocando um intervalo entre tudo e nada, abertura para que o desejo de enviar as cartas pudesse ser relançado. Tomando a palavra, os integrantes fornecem significantes que facilitam a localização dos ideais do grupo e do impossível em jogo, o que possibilitou a aposta em ações próprias como a escrita das cartas, para manter os vínculos e sustentar o desejo de um projeto possível.

No segundo tempo do trabalho no Laboratório, agora com as coordenadoras, localizamos pontos diferentes dos inicialmente identificados por nós. Uma delas observa que na segunda reunião havia ficado muito mal com a saída de educadores, que lhe parecia repentina, mas naquele momento percebia que talvez não houvesse mesmo uma escuta. Nesse encontro, revela-se aos integrantes do laboratório uma posição de mestria não identificada anteriormente, o que possivelmente fazia obstáculo e não nos permitia extrair os pontos de deslocamento das conversações. Percebem que algumas pessoas, em geral caladas nas reuniões internas, falaram nas conversações. Acham que, ao promover as conversações, a coordenação sinalizava interesse e cuidado com os educadores, dando lugar também às próprias dificuldades, o que produziu uma maior aproximação com a equipe.

O testemunho das coordenadoras revela a importância da inter-disciplinaridade não só nas conversações, mas também no a posteriori das elaborações no laboratório. O material recolhido pôde receber leituras e sentidos não só a partir de uma prática orientada pela psicanálise, mas também de outras práticas. Isso pôde produzir uma experiência singular, diferente para cada um. O querer saber mais sobre as consequências da conversação enlaçou ao laboratório às coordenadoras do projeto, permitindo que se decantassem outros efeitos da experiência.

O efeito surpresa, onde emerge o inesperado, diferencia a prática e a função da inter-disciplinaridade no CIEN, pela troca de experiências no encontro com outros profissionais que se ocupam do mesmo objeto de trabalho com referenciais diferentes. Guardar um lugar de desconhecimento, de abertura para o imprevisto também no Laboratório, parece fundamental para fazer avançar essa prática inter-disciplinar.

Read more

As conversações: os atropelos, a pandemia e as novas possibilidades

by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios

Laboratório Encontro de Saberes – CIEN-SC[1]

O impasse e o atropelo

Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, O menino e a arapuca, sem data

O Laboratório Encontro de Saberes, do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN), de Santa Catarina, vem realizando conversações quinzenalmente em uma Escola da Rede Municipal de Florianópolis desde julho de 2019. A demanda adveio porque alguns adolescentes estavam se cortando dentro da Escola.

Ao final do ano, nas reuniões presenciais do Laboratório realizadas após cada conversação, e denominada por nós de “decantação”, um modo de destrinchar os conteúdos imbricados nas conversações destacou-se para os integrantes do Laboratório: o significante “atropelo”. Em uma turma do sexto ano, os alunos começam a relatar os “atropelos” fora da Escola: de bicicleta, andando pelas ruas, do ônibus etc. Os relatos eram constantes, até que um integrante do Laboratório intervém dizendo: O que acontece fora da Escola? O que atropela? Na reunião de decantação, a partir da reflexão sobre a conversação realizada e os pontos que nos chamaram a atenção, chegamos à seguinte formulação: O atropelo da infância! Foi com base nisso que pensamos em uma atividade aberta com esse título e, quando estávamos elaborando, fomos atropelados pela pandemia do novo Coronavírus.

As conversações presenciais foram suspensas, assim como as aulas na rede municipal de Santa Catarina. Diante da nova e inesperada situação, ficamos algumas semanas sem nos encontrarmos, quando a orientadora educacional da mesma Escola entrou em contato demandando um encontro virtual para conversar sobre a situação dos professores e dos profissionais da educação diante da pandemia.

Como dar continuidade à pesquisa do Laboratório? Foi essa a pergunta que ficou ao conversar com a orientadora educacional e ao ouvir as queixas dos professores: “Medo da perda do emprego!”, “É férias ou quarentena?”, “Ensino remoto ou à distância?” e “Como mandar as tarefas aos estudantes sem levar em consideração a desigualdade? Afinal de contas, muitas crianças só se alimentavam realmente dentro da Escola.”

Em uma das conversações realizadas com os professores, eles manifestaram o desejo de que, “no retorno”, nós do CIEN pudéssemos “ir aos pequenos também” (crianças com idade escolar abaixo do quinto ano do Ensino Fundamental). Tal demanda surgiu de uma professora participante da primeira reunião de professores, que ocorreu de modo presencial, no ano de 2020.

A escola, ainda antes da pandemia, começou a implementar os “Territórios Brincantes”. Metodologia importada da Educação Infantil que visa possibilitar a apropriação de conceitos de forma lúdica, por meio de interações em espaços planejados e estruturados de uma fração do mundo adulto. Realizado também para as crianças e adolescentes do Ensino Fundamental a partir do trabalho na prática de conteúdos curriculares, de modo interdisciplinar, facilitando a introjeção dos conhecimentos.

Nas conversações on-line algumas questões se colocaram: “Como será o retorno? A criança estará com saudades e vai querer nos abraçar, como lidar com isso? A gente não pode dar um abraço? E a máscara? É uma questão do olhar: perceber a si e aos outros.” Localizou-se aí uma demanda pela conversação do Laboratório para tratar desse novo impasse surgido: a normatividade em um lugar onde se pressupõe que seria impossível. Após alguns minutos a orientadora diz: “o professor também deve ser um ouvinte, estar em um outro lugar.”

Nas últimas semanas a orientadora educacional envia uma mensagem manifestando o desejo de incluir o CIEN no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da Escola onde realizamos conversações. O PPP é um documento orientador e registra as práticas da Escola e deve ser atualizado anualmente mantendo-se vivo e fidedigno. A orientadora é uma das articuladoras do Programa Saúde na Escola (PSE)[2] – o qual tem como pressuposto a formação integral dos estudantes – articulado à saúde mental. Encontra nas conversações do CIEN uma correspondência significativa com as ações do referido Programa. Nesse sentido, ela considera importante citar o CIEN como ator, “nós estamos lá”. O PSE não é só “dela”, por isso gostaria de colocar ênfase na continuidade do trabalho das conversações com a Escola, mesmo diante da pandemia. Um integrante do Laboratório aponta aí uma questão de escrita ao dizer que não é necessário estarmos no PPP para estarmos na Escola. Há, portanto, um desejo de continuidade e de um certo protagonismo da conversação entre o CIEN e a Escola. “Fazer algo no outro e ele fazer algo em mim, ter reverberação, se isso não é conversação, não sei o que é”, afirma a orientadora educacional.

Seguimos com a pesquisa na Escola tendo em vista a realização dessa atividade sobre o atropelo da infância.

Uma nova demanda na pandemia

Durante a pandemia surgiu a demanda de uma outra Escola, agora da Rede Particular da cidade de Lages, em Santa Catarina.

Mediante uma conversação on-line entre a coordenação do CIEN, a coordenação pedagógica e a direção dessa Escola, escutamos relatos de muita pressão em relação às aulas remotas, angústias e sobrecarga de trabalho. “Eles tiveram que se adaptar de um dia para o outro com as tecnologias, em jornadas duplas ou até triplas, se pensarmos nos trabalhos domésticos e na educação em casa dos próprios filhos”, afirma uma das coordenadoras pedagógicas. Outra coordenadora relata o medo de alguns profissionais de serem demitidos e de como recebem áudios de pais reclamando. Os professores e coordenadores são alvos de “descargas” das angústias dos pais. Relatam sobre a adaptação dos alunos e continuam queixando-se dos pais. A diretora da escola afirma “Precisamos ouvir esses pais, aliviar as tensões.” Ao invés de uma conversação com os professores, que aparece no primeiro momento, surge a demanda da direção, com uma certa urgência, de uma conversação on-line entre a coordenação pedagógica, o CIEN e os pais. Assim, apareceram-nos algumas questões: como as crianças estão vivenciando esse momento? O que os pais podem formalizar?

Como a Escola poderia fazer um laço com essas famílias? A coordenadora levanta um impasse: “Quais são as saídas para esse tempo?” Aparece uma certa tensão entre a Escola e os pais. A coordenadora pedagógica da educação infantil (crianças de 1 a 6 anos) relata que o aproveitamento das atividades encaminhadas é inferior a 50%. Um impasse? Como proceder com as famílias?

A coordenadora toma a palavra, enquanto mãe de dois filhos gêmeos: “parece que estou no divã, falei coisas que não tinha falado com ninguém”. Uma mãe afirma que o filho não quer voltar para Escola, pois ele nunca teve o pai em casa como estava acontecendo. “Eu não quero que o Coronavírus vá embora”, diz essa criança.

Uma mãe revela sua angústia com o filho único: “não estou preocupada com o conteúdo, isso ele repõe depois, mas a falta de convivência não tem como repor. Ele não tem irmãos, primos… E não deixo ele na tv, tablets.”

Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, sem título, sem data

Algo inesperado acontece nessa mesma conversação, reservada aos pais, quando uma aluna do 7o ano, inscrita com o nome da mãe, abre a câmera e pede a palavra: “Meus pais não puderam estar aqui, mas eu só queria agradecer aos professores de arte e filosofia que têm sido muito importantes nesse momento para minha saúde mental.” Diante de tal depoimento, surge uma questão: Como um dispositivo de conversação pode circular em um modelo on-line, sem ver quem fala? Afinal de contas, a imagem não aparece, só a voz. Esta se apresenta como uma presença, estamos no on-line, na janela. Em tempos de tempestades, diversas adversidades, cada um na sua janela, na sua singularidade tentando se equilibrar em seu barco.

O barco é a metáfora utilizada por uma das mães ao dizer sobre o que pensa deste momento: “Eu vejo o Coronavírus como uma tempestade, e cada família está em um barco. Ou seja: a tempestade está para todos, porém cada família tem um barco diferente, alguns é um iate, com muitas possibilidades, e em outros o barco está furado.”

Observa-se que as experiências vivenciadas pelas crianças, familiares e professores, durante a pandemia foram diversas: em uma, a ideia de manter um vínculo com a “realidade” via Escola, como se as aulas por vídeo, o contato visual com os professores, fossem o vínculo com a realidade interrompida pelo novo Coronavírus; em outras experiências surgiu o relato de muitas crianças desejarem continuar em casa, pois antes os pais, por conta do trabalho fora de casa, permaneciam muito tempo longe delas. Ou seja: como lidar com as alteridades perpassadas pela pandemia?

Nossa última conversação foi com os professores da educação infantil – “os mais prejudicados” – segundo a direção da Escola. A coordenadora toma a palavra e lança a questão: “Como estamos e qual o papel da Escola neste momento?” As professoras então relatam um sentimento de culpa, pois interpretam a saída das crianças da Escola como responsabilidade delas. E se interrogam: “O que não fizemos?”, “É um balde de água fria”, diz uma outra professora. Nesse momento, uma profissional do administrativo da instituição toma a palavra e diz que é ela quem recebe as ligações dos pais comunicando a saída do filho da Escola. Cada dia são duas, três ligações. Encontramos um sofrimento muito grande nesses profissionais da educação infantil, os quais têm de lidar com a saída das crianças, o aumento da jornada de trabalho e a própria instabilidade no trabalho.

“Como vão ficar as crianças?” É a pergunta que antecede o impasse: “Como nós professores vamos ficar?” Tomando a conversação como um dispositivo em que o movimento inter-disciplinar pode possibilitar a abertura de um espaço para a invenção, por meio de soluções singulares, seja das crianças, dos adolescentes, dos pais ou dos profissionais que circulam nas instituições, continuamos com os efeitos desse dispositivo on-line e seus embates com o Real, a pandemia do Coronavírus.


[1] Integrantes do Laboratório: Adriana Farias Pereira, Ana Maria Alves de Souza, Fernanda Martinhago, Gustavo Ramos da Silva (responsável pelo Laboratório), Patrícia Laura Torriglia, Soledad Torres e Valesca Lopes (coordenação CIEN-SC). Colaborou com a escrita do trabalho: Marcia Frassão (coordenação CIEN-SC).
[2] Este Programa compõe uma política nacional, que iniciou em 2007, com a finalidade de contribuir para a formação integral dos estudantes da rede pública de educação básica, por meio de ações de prevenção de doenças, promoção de saúde e atenção à saúde. Dentre as ações do PSE, destacam-se as mais relacionadas ao campo da saúde mental, como: a avaliação clínica e psicossocial, prevenção e redução do consumo do álcool e uso de drogas e a educação permanente em saúde (BRASIL, 2007). Referência: BRASIL. Presidência da República. Decreto Nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Institui o Programa Saúde na Escola – PSE, 2007.
Read more

Educadores na pandemia: “solitários e impotentes”.

by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios

Laboratório Ciranda de Conversa- CIEN-PR – Bárbara S. F. Campos[1] e Renata P. Soares[2]

Simbolo-de-rede-sem-fio-wifi-abstrato. In: br.freepik.com/vetores-gratis/

A pandemia que tomou conta do mundo no ano de 2020 exigiu de todos um difícil isolamento social. A educação foi profundamente afetada. Alunos, educadores, funcionários e famílias sofreram os impactos do ensino remoto em seu dia a dia e ninguém saiu ileso do fechamento das portas das escolas. A angústia invadiu a todos, acompanhada pelo desconhecimento e pela urgência na busca de soluções, que em sua maioria se mostravam desajeitadas e antiquadas diante dos desafios da época.

O Laboratório Ciranda de Conversa[3] se ocupa da inter-disciplinaridade entre a psicanálise e a educação. Busca sustentar o hífen entre o inter e o disciplinar, como nos aponta Lacadée: marca de um pequeno espaço que não quer dizer nada, “um vazio que pode indicar o lugar de uma ausência vibrante, viva, como um coração que bate, pulsante[4]. O hífen é marca da união e também do vazio que aponta para o real em jogo, capaz de furar o saber prévio e acolher o imprevisível. É o que pode permitir que uma rajada de ar circule e produza um enigma que, talvez, dê lugar ao novo: “um ganho de saber que abre para propostas inéditas, trazendo um a-mais de vida ali onde reinava a pulsão de morte”.[5]

Uma das principais características do Laboratório é o deslocamento, o “ir” até aonde os impasses o convoca. Sendo assim, foi preciso uma reinvenção, assim como para as escolas, no período do isolamento. Quando uma das participantes do Laboratório trouxe a angústia de algumas educadoras com as aulas on-line, um impasse surgiu: como fazer? O mês era junho de 2020 e não havia familiaridade com as plataformas de reuniões remotas e ou qualquer prática prévia de conversação nesse modo. A decisão de propor uma conversação entre os participantes do Laboratório e as professoras foi uma aposta, uma aposta na circulação da palavra. Se a educação estava no modo on-line, talvez o Laboratório pudesse se aproximar das escolas por esta via.

A primeira Conversação foi entre alguns professores de escolas públicas e privadas da cidade de Curitiba e os participantes do Laboratório Ciranda de Conversa. De início foi possível perceber que não era um encontro com a “Escola” e todo seu contexto: cenário, agitação, trocas, barulho, alunos e professores em interação. Foi um encontro com professores fora de lugar e seu sufocamento diante de um espaço ainda não construído social e psiquicamente. Logo no início, uma professora expôs sua angústia trazendo as seguintes palavras ao grupo: “Não pensaram em nós, não pensaram neles (alunos). Há um descrédito no professor. Como a escola no Brasil está mais preocupada com o conteúdo, quando estamos num momento excepcional? Estamos servindo a um protocolo, que não é para nós e não sabemos para quem é”. Foi a partir desse ponto que a Conversação girou nesse primeiro momento. As professoras se diziam desamarradas dos laços que cultivaram na escola, com os alunos e entre seus pares. Estavam impotentes diante do isolamento e da forma como a educação vinha sendo conduzida. Nas escolas públicas, os professores não eram os responsáveis por ministrar aulas remotas para suas turmas, mas, um professor escolhido pela Secretaria de Educação gravava as aulas do período e essa aula ficava disponível, via aplicativo ou televisão, para todos os alunos matriculados no período no ano letivo. Cabia ao professor responsável por cada turma acompanhar as notas e frequências, assim como tirar dúvidas quando necessário. Elas diziam: “não estamos sabendo de nada.” Ou seja, além do não saber frente ao real da pandemia, elas desconheciam o processo de aprendizagem dos seus alunos. Não eram elas que preparavam as aulas, tampouco acompanhavam seus alunos porque eles raramente apareciam no horário que elas estavam disponíveis para dúvidas. Elas nem mesmo sabiam onde e como seus alunos estavam. “Tenho 400 alunos e estou acompanhando por aplicativo WhatsApp, mas só vejo 3 ou 4. É uma farsa!, diz uma professora, que em seguida se lembra de um pesadelo: “a pedagoga entra na sala de aula e diz: você é uma fraude! eu respondo: mas eu não sei o que fazer! Ela me diz: faz qualquer coisa só para entregar.” Os significantes fraude e farsa aparecem constantemente para nomear o lugar dessas professoras naquele momento. São professoras fora de lugar, que não ensinam, sem laços.

Messy-pencils. Photo by Matthew Henry from Burst

É possível captar a impotência e o sufocamento das professoras ao se ouvir a frase: “desconhecemos totalmente o que acontece com o outro. Para fazer algo com o outro é preciso saber um pouco dele. Estamos no escuro.” São sujeitos paralisados frente a um Outro todo poderoso, mortífero. Porém, a psicanálise, como êxtimo na conversação, “recolhe seus efeitos exatamente por destruir a crença na solução universal, nos imperativos da tradição, no pensamento único, diluindo as identificações em massa e sustentando a vitalidade de um furo operante. É tarefa dos analistas fazer falar os impasses da civilização e, no ponto em que vigora a fórmula “para todos”, realizar a subversão necessária para dar lugar à solução de cada um.”[6] Aos poucos, de forma muito sutil, pequenas rajadas de ar passaram a circular nas conversações. As professoras trouxeram uma pequena reflexão sobre o que é ser educador, e sobre a educação. Cada uma pôde trazer algo de si, de seu sujeito educador. De alguma forma, começaram a se deslocar da pergunta sobre que o Outro quer de mim, esse Outro mortífero, que mal podiam nomear, para uma reflexão sobre si mesmas como sujeitos educadores. Começaram a pensar nas trocas entre seus pares, realizadas em seus grupos de WhatsApp. Uma contou que perguntava sobre seus alunos para as famílias quando as encontrava no mercado. Outra contava que dançava em frente ao computador para motivar seus alunos, sem medo de pagar mico. A professora de arte pôde nos contar sobre como a arte e o Laboratório a transformava enquanto sujeito.

Como nos aponta Juan Carlos Indart, o CIEN, “ao entrar com essa extimidade, efetivando um não-todo, esse amor e esse gozo furam o discurso do mestre, o discurso universitário, os semblantes de Outro do Outro, sejam estes de um imperativo “a secas” ou de um imperativo de saber; e de um modo não muito calculado mas, com consequências precisas, em diferentes corpos podem advir acontecimentos novos, que furam cada um, dando-lhes vida nova, um gosto de fazer algo que não seja obedecer a ninguém, e que os colegas do CIEN declinam muito bem de diferentes formas: uma posição de sujeito, a dignidade dessa singularidade, um ideal pelo qual dê gosto viver, ou manejar o mesmo sintoma que levava a matar e a morrer como recurso para tecer uma vida com alguns vínculos sociais”[7]. Por fim, a conversação se encerrou com uma das professoras podendo dizer: “é momento de fazer do jeito que dá, de servir desse momento para refletir onde estão os furos na educação. Fazer o que é possível.


[1] Psicanalista praticante. Participante do Laboratório Ciranda de Conversa CIEN-PR, animadora da Conversação online com os professores.

[2] Psicanalista praticante. Responsável pelo Laboratório Ciranda de Conversa CIEN-PR.

[3] O Laboratório Ciranda de Conversa-CIEN Paraná realiza conversações com os profissionais que atuam em instituições escolares, assim como com as crianças e adolescentes, possibilitando que coloquem em palavras as situações de impasses e mal-estar. Seus participantes são Bárbara Snizek Ferraz de Campos (animadora da conversação online com os professores), Eugênia C. Souza, Idavir Trebien, Karina Veiga, Niura Kiame, Paula Butture, Stephanie Gorte, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Tânia Verona, Willie Anne Provin (animadora da conversação online com os professores).

[4] MILLER, J. “O que é o CIEN.” In. BRISSET, F., SANTIAGO, A. L., MILLER, J. (Orgs.) Crianças falam! E têm o que dizer. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p. 24.

[5] RÊGO BARROS, M.R.C.. “A prática interdisciplinar do CIEN.” In BROWN, N., MACÊDO, L. LYRA, R. (Orgs.) Trauma, Solidão e Laço na infância e na adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.

[6] OTONI-BRISSET, F. “Crianças falam! e têm o que dizer.” In: BRISSET, F. SANTIAGO, A. L., MILLER, J. (Orgs.) Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p. 12.

[7] INDART, J. C. “Del síntoma as CIEN y del CIEN al síntoma.” In: El niño [CIEN]. Publicación del Instituto del Campo Freudiano. Revista Periódica – número -15. Abril de 2020. Olivos: Grama Ediciones, p. 12. Tradução Livre.

Read more

Do impossível do furo à contingência de um parkour

by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios

Laboratório Brota – CIEN-MG – Cristiane F. C. Grillo e Nádia L. Lima

Silvio Jessé, Mucugê-Bahia

Uma demanda da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte referente à evasão escolar provocou a criação de um Laboratório do CIEN: Brota – juventude, educação e cultura. Iniciamos o trabalho com os adolescentes e os professores de uma escola localizada na periferia da cidade. O trabalho orientado pela psicanálise lacaniana não objetiva restaurar o vínculo do adolescente com a escola, atendendo a uma demanda da política educacional, mas aposta na abertura de um lugar de conversação sobre os impasses e os enlaçamentos possíveis entre os adolescentes, o saber e a cultura.

As conversações com os professores permitem que os docentes possam falar dos seus próprios impasses, da sua relação com um certo ideal educativo, mas também com o desejo de uma transmissão. Em uma das conversações, depois de um ano de trabalho, a diretora da escola nos diz que aprendeu muito no Brota, sobretudo que o adolescente é o que a gente vê nele. Ela traduz, à sua maneira, a colocação de Lacadée[1] sobre  o risco mais grave que um jovem corre, o de ser aprisionado em uma nomeação  predicativa que vem do Outro.

Os adolescentes são convidados a participar das conversações e de ateliês no Centro de Referência da Juventude (CRJ). Os ateliês, de artes visuais, circo, dança, escrita, design, gastronomia e teatro, se pautam pelo desejo e pelo saber dos adolescentes. As conversações alojam a palavra dos adolescentes, produzindo enigmas e deslocamentos. A equipe, constituída por alunos e professores de diferentes cursos da Universidade, como medicina, psicologia, educação, artes visuais, dança e letras, alguns deles participantes do laboratório do CIEN, se debruça sobre as falas e invenções nos ateliês e nas conversações, como forma de elaborar e de construir continuamente esse trabalho inter-disciplinar.

Alguns adolescentes participam dos ateliês e das conversações de um modo peculiar. João interrogou uma psicanalista sobre o motivo dela trabalhar com esses meninos difíceis. Ela respondeu que não os acha difíceis e ele acrescenta vivamente: por isso eu gosto de vir aqui. João trabalha nos sinais de trânsito, fazendo malabares. Ele participava pontualmente dos ateliês e das conversações, dizendo: já fiz, já conversei. Aprendemos com ele que seu tempo era o do sinal, fugaz. Os professores relatavam que esse menino que ficava nos corredores da escola, passou a entrar na sala de aula, ainda que não permanecesse durante todo o tempo proposto.

Felipe, inteligente e provocador, hesitava em falar sobre a família, especialmente sobre o pai, que estava preso. Na conversação, ele tecia uma história familiar fragmentada: relatava que alguns dos irmãos eram na verdade primos, filhos de um tio assassinado por um policial. Ele dizia que mesmo assim queria ser policial e também psicólogo, porque tem muito jeito para ajudar os outros. Contudo, Felipe tinha muitas dificuldades para fazer amigos e justificava: eu perco o amigo, mas não perco a piada. No teatro, ele escolheu representar o coordenador mais querido da escola.

Foto de M Venter:
https://www.pexels.com/pt-br/foto/pessoa-sentada-na-montanha-1659438/

Leo abordou uma psicanalista depois da conversação para pedir emprego: preciso de dinheiro para comprar casa, carro e moto. Ela perguntou sobre sua vida e ele respondeu que a vida dele daria um livro. Ela questionou se ele gostaria de fazer esse livro e ele propôs começar do início da sua vida. Ele disse que nasceu em Belo Horizonte e que o pai não teve coragem para carregá-lo no colo. Leo interrompeu seu relato nesse ponto dizendo que a maçã que ele havia comido pesava como uma pedra no seu estômago (os adolescentes haviam comido maçãs que faziam parte de uma exposição de arte). Na semana seguinte, na conversação, ele falou da sua infância, da cena de um assassinato em frente à escola e de como a mãe o carregou para transpor uma poça de sangue. Posteriormente, ao longo das conversações, ele esboçou um projeto para seu futuro: queria ter uma vida boa, para compartilhar com uma mulher e um filho. Não queria ser muito rico, nem criminoso, nem pobre. Apontou uma moto que desejava. Disse que queria uma vida boa, com amor, mas não sem os objetos.

Observamos que os adolescentes participam, cada um com seu estilo, das conversações e ateliês, e que também erram pelo espaço, eventualmente nos procurando durante seus percursos, em um tempo delimitado por eles. Observamos seus deslocamentos espaciais e discursivos, o que emerge das conversações e o que retorna a elas.

Observamos também os atos, que escapam aos acordos estabelecidos. Em uma ocasião alguns adolescentes esvaziaram extintores de incêndios no CRJ. Interrogados sobre o ato, Pedro relatou que gostava de ver o pó se espalhar no chão, e Marcos alegou que o ato foi uma resposta à fala jocosa de outro adolescente: acenda meu fogo. Marcos falou então de seu impasse, alternando um discurso homofóbico com uma vida sexual marcada por experimentações homoafetivas.

Em uma tarde, Marcos deu socos na parede, fazendo três furos. Ele nos disse que não sabia que a parede era frágil (de gesso), mas não havia nada a dizer sobre o segundo e o terceiro furos. O adolescente se ofereceu para consertar a parede, o que não aconteceu. Ele faltou algumas vezes e retornou.

Este episódio convocou a equipe a falar sobre a forma como cada um foi tocado pelo furo, e sobre a proposta de um conserto. Colocamos tal impasse no centro da conversação da equipe inter-disciplinar. Concluímos que o deixaríamos sozinho diante do ato e da proposta de reparação, pois nos precipitamos em apagar o furo, ao invés de sustentarmos a vitalidade de um furo operante.[2]

Esse ato do adolescente apontava para um impossível de dizer. Concluímos que, ao invés de buscarmos tamponar o furo com um sentido, a aposta no real desvelado no ato poderia abrir o campo dos possíveis.

Assim, propusemos uma conversação sobre os destinos dos furos, pensando em intervenções artísticas, que não tamponam ou procuram explicar os atos. Marcos participou com entusiamo da intervenção de bricolagem e depois nos apresentou um projeto de ateliê de parkour, detalhando a etimologia da palavra e a história do movimento. Explica que oriundo dos subúrbios de Paris, o parkour consiste em percorrer um caminho cheio de obstáculos e ultrapassá-los. Ressalta que esse ateliê será importante para que os jovens possam  superar obstáculos.

O adolescente pode então criar um percurso novo, nos mostrando como sabia fazer com os obstáculos (muros, etc.) e como podia transmitir esse saber-fazer. Nas conversações da equipe, do laboratório, pudemos também aprender certo saber fazer com uma exuberância pulsional que escapa ao sentido, deixa marcas e subverte cada proposta. O dispositivo da conversação interdisciplinar é uma forma de tratamento do real para que as respostas dos adolescentes possam tomar o valor de uma invenção.[3]

Vemos que para alguns não é a lei, ou as normas, os acordos simbólicos que operam. É necessária uma borda, mais do que um limite.[4] Algo que se interponha entre o adolescente e um ato destrutivo, mas também entre o adolescente e a nomeação que vem do Outro.[5] Aprendemos com os jovens a apostar neles, sempre, acolhendo as suas respostas como invenções diante do real. Do indizível, do impossível do furo, pode advir a contingência de um parkour, de um percurso singular e sintomático. A conversação pode acolhê-los como seres falantes, que às vezes não sabem que o são, podendo alojar a palavra e dar-lhe curso, para que seu ser de palavra brote! [6]


[1] LACADÉE, P. O despertar e o exílio: Ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de janeiro, Contra Capa, 2011.
[2] BRISSET, F. Apresentação. In: Brisset, F.O; Santiago, A.L e Miller, J. (orgs.). Crianças falam! e têm o que dizer. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte, Scriptum, 2013.
[3] BROWN, N. O trauma e o real na clínica: o que inventam as crianças? In: Trauma nos corpos, violência nas cidades. Revista Curinga, n 39. Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas, junho de 2015, p. 69-72.
[4] STEVENS, A. Devant l’enfant violent: un cadre ou un bord? Disponível em: http://institut-enfant.fr/2018/12/03/devant-lenfant-violent-un-cadre-ou-un-bord/. Acesso em 07 de junho de 2019.
[5] MILLER. J. -A. Crianças Violentas. Opção Lacaniana, 77. São Paulo, abril de 2017.
[6] FAJNWAKS, F. Fazer borda. In: Grillo, C.F.C.; Lima, N.L. Brota: Juventude, Educação e Cultura. Tubarão, Copiart, 2020.
Read more

O sexual e a zona de fratura: perspectivas para uma prática com crianças e seus pais

by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios

Laboratório Mães e seus filhos – CIEN-MG – Cristina Marcos, Juliana Motta, Larric Johnny Malacarne, Mariana Vasconcelos dos Santos, Mateus Mourão e Paula Pazzini Salles

Light and squares abstract art. Photo by Matthew Henry from Burst

Provoca surpresa o quanto a advertência feita por Lacan em 1953 permanece atual, convocando analistas de todo o mundo a se colocarem a trabalho num esforço coletivo de operar transformações potentes na clínica para acompanhar as mudanças na subjetividade ao longo do tempo. Vale retornar ao texto lacaniano para sondar a força de suas palavras: “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”[1].

Imbuído neste movimento, Daniel Roy, em seu texto “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”[2], nos transmite, antes de tudo, um convite. Um convite que foi feito a ele próprio por Jacques-Alain Miller e que tomamos também como um encorajamento para a nossa prática dos laboratórios do CIEN. O trabalho a ser feito, diz Daniel Roy, e aqui acrescentamos no CIEN, é o de produzir um saber de peso frente às desordens rápidas. Ele diz de desordens especialmente sensíveis no campo da infância e que testemunham a deriva ocorrida nos continentes de nossas convicções – os semblantes que nos mantêm – e de nossos hábitos – os gozos que nos convêm –, deriva que produz linhas de falha e zonas de fratura. A diferença sexual é o nome dado a uma dessas zonas.

Como podemos entender a diferença sexual enquanto fratura? Trata-se de uma fratura nos semblantes, fratura no real produzida pelo encadeamento discursivo dos semblantes, ou ainda pela deriva contemporânea desses últimos? Posto que a inexistência da relação sexual é uma condição com a qual o ser falante deve se haver desde que é habitado pela linguagem, o que disso muda com as desordens rápidas do contemporâneo?

Este trabalho é fruto de elaborações do Laboratório Mães e seus filhos construído a partir da aceitação ao convite feito por Daniel Roy, no sentido de podermos nos ocupar de tais questões. Para isso, voltamos nossa atenção especialmente ao campo onde a diferença sexual, por ele nomeada enquanto zona de fratura, testemunha a “deriva ocorrida nos continentes de nossas convicções”[3]. Dessa forma, retomando a metáfora do autor e extrapolando seu uso, a força dos questionamentos colocados pode ser medida pelos efeitos que apresentou no próprio fazer de nosso laboratório – ou pelo abalo sofrido nos continentes de nossas convicções. Inseridos no contexto das crises psiquiátricas que chegam nas instituições públicas de saúde mental para crianças e adolescentes, o contato com a provocação feita por Daniel Roy deu início a uma série de conversações no interior do laboratório sobre as zonas de fratura inerentes à própria maternidade, paternidade ou parentalidade. Dentre outros motivos, tais discussões participaram da decisão pela troca do nome anterior do laboratório de “Mães em crise” para “Mães e seus filhos”. A crise, ou a zona de fratura, é inerente e está colocada. Resta perguntar o que se pode fazer com isso. Desde então o método psicanalítico da conversação tem nos permitido construir um saber sobre a prática junto à clínica das mães e seus filhos, com desdobramentos dentro e fora de nosso laboratório.

Teoria

Uma das perspectivas trazidas por Daniel Roy em seu texto remete especialmente ao Seminário 18, quando, na segunda lição, Lacan[4] faz uma sutil diferenciação entre “identidade de gênero” e “identificação sexual”. Na identidade de gênero, o que está em jogo é, dizendo cruamente, uma distribuição populacional dos semblantes. Trata-se de performar “homem” ou “mulher”, fato que organiza a tentativa de distinguir os gêneros antes mesmo da fase fálica. Essa distribuição promove uma diferenciação, que Daniel Roy compara à designação de títulos de nobreza: nobres marqueses, distintos homens, eminentes mulheres.

Se Lacan diz que é uma diferença “com efeito, muito natural”, não é por acreditar, por exemplo, num determinismo da anatomia, mas sim porque o campo dos semblantes é o campo da natureza. Trata-se de um âmbito onde tudo é possível, pois uma vez que o parecer se equivale ao ser, identificar-se a um gênero é tão elementar, tão natural como dar um título de nobreza. Essa simplicidade encontra seu limite quando a proliferação de semblantes esbarra em algo de intransponível. Aí sim, estamos no campo do sexual. E o que nos leva até lá não é senão o discurso, a articulação discursiva dos semblantes.

Para desenvolver um pouco mais esse ponto, pode-se recorrer ao ensino de Miller na primeira lição de seu curso de 1991 sobre A Natureza dos Semblantes[5]. Miller delimita a separação radical entre o Real, de um lado, e os semblantes, do outro, e em seguida comenta que a natureza está do lado dos semblantes, como diz Lacan ao comentar das aparências que proliferam na natureza: o arco-íris, o trovão, mesmo o pênis, as exibições copulatórias dos animais etc. Para deixar essa correspondência mais clara, Miller recorda a natureza no sentido pré-moderno: aquela em que abundam sereias, monstros aquáticos, aquela sobre a qual Hamlet pôde comentar que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a filosofia”. É um mundo onde virtualmente tudo é possível.

O que muda então, no século XVII, é precisamente a introdução do discurso da ciência, ao qual devemos a subjetividade moderna e as condições de nascimento da psicanálise. A ciência intervém trazendo um novo modo de fazer com os semblantes, que é sua articulação em um discurso de tal modo que demonstre algo da dimensão do impossível, tocando assim o Real. A partir desse giro, observamos um empobrecimento radical da natureza.

Foto de Matthias Zomer no Pexels (pexels-matthias-zomer-68814)

Voltando ao texto de Roy, vemos que “a cada vez que o sujeito é convocado como homem ou mulher, esses semblantes têm eficácia real”[6]. Na medida do discurso, nem todos os semblantes se equivalem; nem todos têm essa eficácia que Miller articula como a passagem do nível do parecer/ser para o nível da existência. São alguns semblantes que logram “pescar” alguma coisa do Real, alguma coisa do gozo sexual exilado no impossível; eles escavam um buraco que aloja um pedaço desse gozo na forma de um mais-de-gozar.

Esses semblantes que têm uma “solidariedade” ao gozo sexual são precisamente o Falo e o Nome-do-Pai, aqueles a que Daniel Roy se refere quando diz “os semblantes que nos convêm”[7]. Eles são transmitidos pela tradição e nomeiam um modo de gozo, o gozo fálico, precisamente através de uma fratura, de uma incidência do significante no Real. Em outras palavras, a função fálica incide no Real, produzindo ali um corte, que é a inexistência da relação sexual. O sujeito sexuado é uma resposta do Real a esse corte, a escrita de um modo de gozo, masculino ou feminino, que fará suplência a essa zona de fratura. Logo, para a psicanálise o que está em cena não é um determinismo biológico, mas uma posição do sujeito frente a esses semelhantes, frente à linguagem. No caso do gozo do mais-de-gozar, ele tem um nome que geralmente é transmitido pela tradição paterna.

O que muda nisso tudo, quando pensamos no contemporâneo? Diversos autores do campo freudiano têm comentado sobre uma característica específica deste contexto que ganha várias nuances: queda do falocentrismo, descrença no grande Outro, forclusão generalizada, feminização do mundo, declínio da função paterna, depleção simbólica, etc. Nas derivas dessa época, aqueles semblantes escolhidos pela tradição se encontram menos assegurados, sua eficácia é menos garantida. E essas desordens, relembrando Daniel Roy, são especialmente sensíveis no campo da infância. Temos observado em conversações clínicas do Laboratório Mães e seus filhos, entretanto, que também são marcadamente sensíveis no campo da maternidade e da paternidade. Os semblantes que nomeiam o gozo precisam ser transmitidos; a identificação sexual depende de uma “imiscuição do adulto na criança”[8] que se dá sob a égide do Nome-do-Pai. Essa identificação depende certamente de “uma decisão insondável do ser”, mas também depende de algo da estrutura familiar. Não se trata exatamente do romance familiar, que é um semblante e pode assumir as formas mais diversas possíveis, mas sim do fato de que ser pai ou ser mãe é mais do que um parecer, não são semblantes quaisquer na medida em que transmitem um modo de gozo. Daí a angústia própria das funções paterna e materna, que não se cumprem sem uma certa visita do Real.

As observações que mencionamos acima têm lugar em instituições públicas de referência em saúde mental para crianças e adolescentes do Município de Belo Horizonte, nas quais alguns dos membros do laboratório Mães e seus filhos compunham o corpo clínico. Tais espaços concedem o privilégio do questionamento e produção de saber que parte de uma clínica vasta e complexa. Pais e avós, sejam eles biológicos ou adotivos, cuidadores do abrigo, ou até mesmo profissionais do sistema socioeducativo, estão e precisam estar sempre presentes. Pensando na dupla sujeito-analista, trata-se de uma clínica que não se faz sem a presença de um outro elemento, este que frequentemente, na ordem das intervenções, não é o terceiro. Os impasses e desafios oriundos desse trabalho foram levados mensalmente para conversações clínicas entre todos os membros do laboratório Mães e seus filhos, originando as questões que se desdobram ao longo deste texto.

Teoria e Prática

Na prática com crianças e adolescentes e seus pais/responsáveis, com frequência encontramos diante de nós algo da ordem de uma fratura exposta, verdadeiras urgências subjetivas. De fato, os Laboratórios do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN) nascem de um impasse, de uma questão que possa ligar seus participantes pela falta, criando um desejo de trabalho. Tem como orientação a “oferta da palavra”, um lugar em que a palavra possa circular e que, cada um com sua experiência, possa trazer para o trabalho uma miudeza, uma preciosidade que possa orientar seus participantes a cada vez, criando saídas para as questões e impasses que surgem no trabalho com esses sujeitos[9].

O laboratório “Mães e seus filhos” nasce com a pergunta: “De onde operar o encontro das mães com seus filhos, crianças e adolescentes, durante a visita hospitalar?” Essa pergunta se constituiu, em princípio, a partir dos casos clínicos construídos em uma instituição hospitalar manicomial. Naquele contexto, as mães estavam internadas em momento de crise psiquiátrica e o encontro com seus filhos se dava pelas visitas, ou pelo discurso das mães sobre seus filhos. A atividade atual ainda se sustenta pelo encontro, agora em rede de serviços de urgência substitutivos, voltados para crianças e adolescentes, e as conversações com os responsáveis pelos usuários do serviço que ocorrem dentro do espaço. Os elementos oriundos destas conversações são a mola propulsora daquelas que empreendemos em um segundo momento, entre os laboratoriantes, a fim de extrair algum saber que nos possa orientar a prática.

Em um destes encontros entre os profissionais de diferentes categorias que compõem o laboratório, temos como impulsionador o relato de um dos trabalhadores do serviço substitutivo de saúde mental. O conteúdo trata de uma família de cinco integrantes: o pai pastor, a mãe e três filhas. A perda do poder financeiro do genitor provoca um deslocamento de responsabilidade à mãe, que passa a exercer a função de trabalhadora sexual para sustentar a casa. Diante do insuportável do corpo, inicia uso devastador de substâncias para tratá-lo. Deixa as duas filhas mais novas na cidade do interior e parte para a capital com a filha mais velha, adolescente. Ambas circulam pelas cenas de uso, indiferenciadas, a adolescente em situação de exploração sexual constante para obtenção do objeto droga para consumo de ambas. Em seu discurso, a menina relata que a única forma de cessar o uso é se tornando uma mãe.

Este relato de um corpo adolescente indiferenciado causou à nossa discussão o resgate do termo utilizado por Marie-Hélène Brousse[10], que recorre à figura dos buracos negros – como descritos pelos astrofísicos no quadro da teoria da relatividade – para caracterizar os efeitos da diferença sexual sobre o discurso e a fala. Para a autora, assim como tudo o que entra no interior do buraco negro – toda a informação, toda a matéria –, é assimilada ao buraco negro, de modo que todos os objetos que caem nele se tornam inacessíveis, desde o momento em que se entra no campo da diferença sexual, tudo o que define a singularidade dos modos de gozar e das posições subjetivas torna-se inacessível.

Mesmo assim, é frente a buracos negros e zonas de fratura que nós, laboratoriantes, somos afinal convidados a colocar nosso desejo. Com Daniel Roy, recordamos que “nenhum código permite ao sujeito decifrar o que lhe acontece e, portanto, ele não sabe por que aquilo lhe acontece, nem o que quer dizer”[11]. Contudo, está a seu cargo fazer disso alguma coisa, e a escuta do psicanalista pode contribuir para fazer derivar novas possibilidades. Destacamos que é diante dessa falha que vão se construir as teorias sexuais infantis e se edificar as diversas identificações da infância, de maneira que cabe ao analista preservar essa singularidade e bordejar a novidade da invenção da criança quando ela se torna violenta demais.

No contexto das urgências psiquiátricas, contudo, frequentemente o praticante é convocado a dar uma resposta àquilo que se apresenta na instituição. Além disso, por vezes essa resposta precisa ser rápida, pois a demanda pode ser exorbitante. Em uma clínica tão complexa, falta espaço para pensar, verdadeiro impasse que foi tema de uma conversação ampliada entre diversos laboratórios do CIEN Minas em Agosto de 2020. Chegou-se ao significante “pausa” enquanto uma necessidade, no trabalho, ordenadora de uma possibilidade de incidência do discurso analítico nesta clínica: assim como o momento de ver, o momento de compreender tem seu lugar. Desse modo, as discussões em sala de plantão, antes de definir a “conduta” para o caso e as conversações entre psicanalistas, aparecem como possibilidades de operar essa função.

Em uma segunda conversação, outro laboratoriante traz o relato de  uma menina que aos 12 anos chega para acolhimento e, quando indagada sobre os motivos de estar ali, prontamente anuncia: “Minha mãe fala que eu tenho crises, tiques e TOCs”. Impressionado, o profissional reformula sua indagação e questiona “Sua mãe fala? E o que você me diz?” A isso, sem vacilar, a criança repete: “Minha mãe fala que piorei depois que eu conheci meu pai. Minha mãe fala que eu puxei isso que tenho do meu pai, ele tinha crises de nervoso…” O profissional, insiste: “Sua mãe fala… Sua mãe fala… Eu quero ouvir de você! O que você me conta?”. A menina dá risada, mas fica em silêncio e o discurso se interrompe. O profissional tenta uma vez mais fazer um corte e dizer para a menina que ela não é nem a mãe e nem o pai, mas sim ela própria, ao que ela responde, sem rodeios: “É, mas tem a genética”.

Ela parece se referir a uma transmissão de um modo peculiar de gozo, um modo de ser e sofrer naquela família e, portanto, também a transmissão de um modo de filiação. A menina nos convida a pensar em uma outra genética, uma genética discursiva. Mais uma vez o convite feito por Roy[12] nos coloca a trabalho. O autor nos fala de uma solidariedade de semblante entre as gerações, solidariedade que indica e encobre ao mesmo tempo o real do gozo em jogo e que confere consistência à estrutura familiar, sob suas modalidades tão diversas. Neste sentido, a família aparece tanto como o lugar onde se transmite a falha do sexual, como o lugar em que ela se mascara.

Em uma terceira situação, os pais de um menino de seis anos procuram o plantão de um serviço demandando um relatório psiquiátrico que diga que o filho não tem condições de ir à escola. Fazem isto porque o menino não quer ir pra escola de jeito nenhum. Quando são informados de que na avaliação da equipe o menino tinha plenas condições de frequentar a escola, ameaçam processar o serviço de saúde mental. Em nenhum momento passou pela cabeça dos pais daquele menino que eles poderiam – e talvez fosse importante – dizer a um menino de seis anos que ele precisa ir à escola. Seria este um exemplo das desordens ocorridas no campo da infância que testemunham a deriva ocorrida nos continentes de nossas convicções – os semblantes que nos mantêm – e de nossos hábitos – os gozos que nos convêm? Sobre isto, vale resgatar mais algumas provocações feitas por Daniel Roy:

Não seria nesse momento de crise que a psicanálise ou o praticante são solicitados por um desses distúrbios da criança que proliferam hoje sob denominações que são a roupagem dos experts? Nós não teríamos que fazer ressoar o valor da inibição, do sintoma ou da angústia para a criança? Estes diversos distúrbios não seriam com efeito respostas e defesas face a este momento de crise, em que se vê abalada a identificação fálica que sustentava até então esta criança? Devemos considerar que esta identificação fálica – sempre disponível no tempo da infância e atualmente privilegiada no seio da família e no discurso corrente – permite realmente a uma criança se manter à distância das questões da identificação sexual? Não deveríamos considerar de preferência a crise do falo como o momento fundamental em que se sintomatiza a vida da criança, em que ela começa a aprender o regime sinthomático de sua inscrição no discurso sexual?[13].

Ao permitir que as provocações do autor possam ressoar em nós e dar início a um trabalho que tenha no horizonte produzir um saber de peso, o laboratório Mães e seus filhos sustenta a convicção de que o campo da diferença sexual, essa fissura discursiva, zona de fratura por excelência, é anterior ao sofrimento das crianças e atravessa também seus pais e mães.

O que pode um laboratório do CIEN frente às desordens com crianças e seus pais no contemporâneo? A qual saber poderá ele recorrer quando se deparar com essas zonas de fratura em seu fazer? No texto “A criança e o saber”, Miller[14] nos apresenta o vetor que guia nossa ação: restituir o lugar do saber da criança, disso que as crianças – e por que não seus pais? – sabem. Para Daniel Roy[15]], àqueles que se propõem a atuar a partir da psicanálise cabe se informar sobre o que as crianças, meninas ou meninos, sabem da diferença sexual, do que querem ou não saber a respeito da mesma, e do que podem ou não podem saber. Para nós, do laboratório Mães e seus filhos, seguramente o que podemos – e esperamos saber fazer- é não recuar diante daquilo que é caótico e disruptivo.

pixabay cornfield-gff49cb941_1920

Considerações Finais

Em momento de concluir, uma hipótese se insinua. A diferença sexual sempre foi uma zona de fratura, já que a relação sexual é excluída para o ser falante. O que o desafio particular das desordens contemporâneas põe em jogo é uma certa falência dos semblantes que até então tinham eficácia em recobrir e organizar um gozo e uma identificação em torno dessa zona. A deriva das identificações e as irrupções do gozo parecem testemunhar algo que é da ordem de uma fratura exposta. Esse significante nos faz pensar, uma vez que nosso laboratório tem se ocupado da irrupção dessas fraturas nas urgências subjetivas na clínica de crianças e adolescentes e seus pais. De fato, Lacan[16] põe em primeiro plano os “casos de urgência” no seu Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, e nos parece que a urgência com a qual estamos confrontados é aquela da invenção. Os sujeitos que buscam a clínica, e assim encontram as vias para as conversações que ocorrem nos serviços e que estimulam também as que ocorrem no laboratório, hoje em dia estão às voltas com a invenção de algo que dê conta de manusear os impactos destrutivos dessa fratura, talvez sem o recurso da tradição paterna, mas podendo a cada vez se servir dos efeitos das conversações.

Dessa forma, ao longo do trabalho do laboratório pôde-se coletar a partir das conversações alguns elementos para uma prática com Mães e seus filhos, os quais foram sendo discutidos até aqui. Em um momento inicial as conversações ocupavam-se de relatos trazidos por profissionais na escuta de crianças e adolescentes que chegavam aos serviços de urgências em saúde mental. Como fruto desses primeiros encontros, fomos identificando que também os pais e responsáveis apresentavam a demanda por um espaço de palavra para tratar justamente essa zona de fratura, cujos efeitos se observava nas crianças. Assim, desde o início de 2022 nosso laboratório tem sustentado um espaço de conversação para mães e pais das crianças e adolescentes atendidas nas instituições públicas de saúde mental de Belo Horizonte, sendo este um efeito de nossas próprias conversações.


[1] LACAN, J. (1998[1953]) “Função e Campo da Fala e da linguagem em Psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 321.
[2] ROY, D. (2019) “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 6. Disponível em: https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[3] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[4] LACAN, J. (1971) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 30.
[5] MILLER, J. A (1991) De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós Editora, 2002. p. 14.
[6] ROY, D. (2019) “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 10. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[7] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov., 2019, p. 6. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[8] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 10. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[9] MOTTA, J.; MARCOS, C. (2018). Mães em Crise. In: CIEN Digital, nº 22, nov., 2018, p.37. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/Cien-Digital-22.pdf
[10] BROUSSE, M.-H. (2019) “O buraco negro da diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019,p. 18. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[11] ROY, D. (2019) “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 7. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[12] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In:CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p.10. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[13] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 11-12. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[14] MILLER, J.-A (2011). “A criança e o saber”. In: CIEN Digital, nº 11, jan., 2012, p. 8. Disponível em: https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital11.pdf
[15] ROY, D. (2019) “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 12. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[16] LACAN, J. (1976). “Prefácio à edição inglesa do seminário 11”. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, p. 567.
Read more

Entre o vínculo e a educação: um impasse[1]

by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios

Laboratório Ciranda de Conversa – CIEN-PR – Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Fernanda Baptista e Renata Silva de Paula Soares
Máquina De Escrever Vintage - Foto gratuita no Pixabay

Máquina De Escrever Vintage – Foto gratuita no Pixabay

O Laboratório Ciranda de Conversa CIEN Paraná[2] realizou, no ano de 2022, Conversações em uma instituição que atende 100 crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco social na Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná. A instituição atua em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social na realização do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. No primeiro encontro, estavam presentes 5 ‘professores’, o educador social – que ocupava o cargo de pedagogo – e o psicólogo da instituição. Enquanto todos se apresentavam para nós, as animadoras, foi possível perceber que, para os que se denominavam ‘professores’ e o quanto era importante para eles que as crianças “seguissem regras”. “É muito difícil criar vínculo, eles não seguem regras e o planejamento não dá certo”, disse a ‘professora’ de artes, explicitando o ambiente escolar da instituição e a vontade de disciplinar as crianças e adolescentes. “A sociedade é formada por regras”, emendou outra ‘professora’. O educador social, pontuou que as crianças atendidas pela instituição não têm segurança, “vivem à margem da regra”, “aqui é um espaço de acolhimento, vínculos e convivência”, o que nos indicou sua posição divergente do grupo.

Na segunda Conversação estavam presentes quatro ‘professores’, que iniciaram falando sobre a ‘muvuca’ que havia acontecido na semana anterior: descreveram cenas de violência entre as crianças e, em seguida, voltaram aos comentários de que os mesmos não aceitam a autoridade. Sobre um dos meninos, disseram: “como ele sabe que ninguém vai bater nele, ele extrapola.” Continuaram dizendo que estavam nos seus limites. A ‘professora’ de português comentou que foi vítima de violência na infância e mesmo assim “não desconta nos outros”. Os ‘professores’ falavam de crianças que eram “psicopatas, loucos”, que precisavam de medicações psiquiátricas, que fugiam da realidade e que ninguém os aguentava. “A gente é o último recurso que eles vão ter na vida deles”. Quando pontuamos que a instituição era um local de acolhimento, um dos ‘professores’ disse: “é uma sofrência”, outro completou: “eles têm que aprender.

Em seguida, as falas continuaram girando em torno do sentimento de impotência que os afetava. Eles disseram que gostariam de ensinar e que as crianças não davam valor ao aprender. “A educação não é transformadora para essas crianças.” O educador social pontuou que as crianças não eram descoladas da realidade, mas que a realidade delas era outra. Surgiu um enorme impasse sobre a frequência das crianças nas ‘oficinas’. Percebíamos, a cada Conversação, que os ‘professores’ acreditavam que as crianças deveriam frequentar as oficinas seguindo o planejamento da educação formal. Já o educador social, era aberto à ideia de que as crianças pudessem escolher as oficinas e tivessem horários livres durante o período que estivessem na instituição. Para os ‘professores’, o fato de algumas crianças e adolescentes não gostarem e não quererem estar em suas ‘aulas’, era uma questão muito séria. O educador social argumentava que estava tudo certo se as crianças e adolescentes não quisessem fazer nada, às vezes, porque ali era um lugar seguro. A esta fala surgiu o que parecia ser uma abertura quando o psicólogo disse: o que transforma é o vínculo e, ali não era uma escola, completando que não havia uma resposta pronta sobre como fazer.

Porém, na Conversação seguinte, os ‘professores’ voltaram a se queixar sobre situações de violência entre as crianças e para com eles. Mostravam-se muito indignados com os xingamentos que recebiam e com as agressões sofridas. Em seguida começaram a apontar problemas na comunicação entre os educadores, reclamando que não havia uma diretriz clara que norteasse o trabalho na instituição: “a chefia não estava valorizando a disciplina”. Decidimos lançar questões aos educadores, sobre seu papel junto às crianças e adolescentes e sobre o espaço. Sendo assim, perguntamos se a instituição era um lugar de ensinar ou não, de ensinar o quê. Enfim a Conversação avançou sobre o ideal em jogo no lugar. O psicólogo nos contou que a idealizadora do local era uma defensora da educação e que acreditava no seu papel transformador. Dito isso, revelou que a instituição muitas vezes ia “contra o Estado”, pois, ligada à Assistência Social do Município, precisava ‘disfarçar’ as ações educativas que realizava. Contou que a intenção era ser um reforço escolar. “São ‘professores’ e são salas de aula. Existe plano de aula.

Na quarta Conversação, fomos informadas que o educador social não fazia mais parte da equipe: “Ele tirou a autoridade da gente com as crianças. As crianças podiam escolher as oficinas. Para o Laboratório ficou claro que o significante educação ao entrar em choque com o significante acolhimento gerou uma crise na instituição, mas que o saber detido pela instituição não pôde ser questionado. Em Conversação entre o CIEN Brasil[3], foi localizado por Nohemí Brown os ditos com valor orientador para a instituição. A partir do S1 seguir regras, os S2 se articulavam como verdade, adquirindo valor de mestria. Se ‘os alunos’ seguissem as regras, o planejamento daria certo. Ou ainda, se eles seguissem as regras, os vínculos seriam criados e a educação seria possível. O dito do educador social: “eles vivem à margem da regra”, não pôde introduzir um furo, que possibilitaria uma reverberação para separar S1 e S2.

As conversações na instituição inquietaram as participantes do Laboratório, uma vez que deixaram a questão se algo da contingência havia escapado às animadoras ou se a instituição estava fechada ao acolhimento, tanto de um novo saber fazer, quanto do Laboratório. Entretanto, é preciso relançar a aposta no discurso psicanalítico, que não tem uma verdade universal e, talvez, possa ser capaz de abrir brecha, uma passagem de ar, no discurso do mestre ao qual somos confrontados quando nos aventuramos a estar entre outras disciplinas, a frequentar outros lugares a tentar ser outro entre vários. As pontuações das animadoras e a oferta da palavra, assim como a posição divergente do educador social, apesar de apontarem para a produção de um equívoco frente ao S1 em jogo da instituição, não perturbaram a defesa na instituição, tampouco abriram uma brecha para Conversações sobre o próprio mal-estar do qual se queixavam. Não foi possível aos educadores sociais, que trabalhavam em uma instituição social, se perguntarem sobre serem ‘professores’, para talvez se implicarem em algo da crise que enfrentavam e se questionarem sobre o lugar de mestria que a ‘educação’, aos moldes da instituição, ocupava, obturando possíveis furos no ‘saber fazer’ frente ao real exposto pela prática junto às crianças e adolescentes.


[1] Trabalho apresentado por Bárbara Snizek Ferraz de Campos no VII Encontro dos Núcleos da NRC e VIII Conversação do CIEN – Brasil: A família em questão! A criança – seus pais. A criança – além dos pais. Realizado em 27/11/2022.
[2] Seus participantes são: Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Eugênia C. de Souza Pelogia, Fernanda Baptista, Idavir Trebien, Karina Veiga, Niura Kiame, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Willie Anne Provin.
[3] Conversação CIEN-Brasil, Pais exasperados – Crianças terríveis, que ocorreu em 01/10/2022 via zoom e foi animada por Nohemí Brown (EBP/AMP) Coordenadora da Nova Rede CEREDA – Brasil.
Read more