
Um moebius lacaniano[1]
by cien_digital in Cien Digital #25, Hífen
Anna Aromí

Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.
Gostaria de agradecer à Nohemí Brown, por embarcar nessa sua aventura, do outro lado do mundo. Tive que aceitar porque, nos anos em que estive trabalhando no CIEN, dirigindo a revista ‘El Niño’ com Judith Miller, aprendi muito, não só sobre as crianças, mas sobre a psicanálise como tal. Agradeço também à equipe que traduziu os textos para o espanhol; graças ao trabalho minucioso, pude acompanhar muito bem a apresentação.
Vou começar apontando o enquadre deste encontro. Um encontro CIEN-CEREDA, me parece uma proposta original e um ato importante para o Campo Freudiano e para a AMP. Por quê? Porque, no fundo, o que está sendo colocado em jogo na proposta é captar algo do real da psicanálise. Trabalhando com crianças ou com adolescentes, fazendo conversações em uma escola … poderia parecer que no CIEN, estamos longe do passe, poderia parecer que estamos longe da psicanálise pura. E, no entanto, com esta jornada intermediária, com este encontro CIEN-CEREDA, vocês estão colocando em ato, o que eu chamaria de um moebius lacaniano. E isso está na Proposição de outubro:[2] Lacan fala ali, da psicanálise em intensão e em extensão, fala da psicanálise pura e da psicanálise aplicada. Contudo, para ele, nunca se tratou de um binário. É sempre um moebius, ou seja, uma torsão, uma volta do mesmo, bordeado a partir de ângulos distintos.
Recordo-me bem das palavras de Jacques-Alain Miller, no momento do surgimento do CIEN, porque tive a sorte de estar lá.[3] O CIEN nasceu com esta frase: para a psicanálise com crianças, temos o CEREDA, mas não temos nada para o que as outras disciplinas dizem sobre as crianças e sobre o que a psicanálise poderia conversar com elas. Nesse momento o CIEN surge como um centro inter-disciplinar.
Com este significante “inter-disciplina”, abriu-se o campo da extensão a partir da psicanálise com crianças, convidando a fazer funcionar este moebius, esta banda de intensão e extensão, que é onde podemos verdadeiramente captar algo do real da psicanálise. Porque, se há um real na psicanálise com crianças, o CIEN e o CEREDA o abordam de ângulos diferentes e com dispositivos diferentes. Mas, o real é o mesmo assim como nosso desejo de aprender também o é. Por isso, de alguma maneira, tanto um quanto o outro são laboratórios, laboratórios para fazer a psicanálise avançar.
Então, o que aprendemos com esses textos? Vou um pouco rápido, para deixar tempo para a conversação. A primeira coisa que chama a atenção desses textos são os efeitos que as fotografias podem produzir. O que uma fotografia pode chegar a desencadear! No caso de Eloá, encontramos a fotografia do pai vestido de mulher, que o pai envia para a mãe, dizendo “tenho uma relação com um homem”, com o que essa mãe deve ter se perguntado o que ela teria sido, até então, para seu marido. Se o que ele buscava era “relacionar-se com um homem”, quem ou o quê ela fora para ele? Isto está no caso, embora não dito explicitamente, e me parece ser o equívoco, o nó do assunto.
Depois, encontramos o que uma fotografia desencadeia também no caso de Alice, que esteve experimentando os vestidos da histeria: ser a inocente, a sedutora… mas, quando alguém a toma, o faz verdadeiramente e lhe envia a foto do nu, isso a deixa completamente surpresa e exposta. O que se descobre é que, na realidade, ela tem brincado de sê-lo, o falo. Ela brincava de ser o falo e alguém lhe mostrou que ter o falo é outra coisa. E aí, algo se desvelou.
Dou pinceladas, provocações para que vocês possam intervir. Tentaremos produzir uma conversação, na medida em que nos seja permitido pelo Zoom.
Retomemos Eloá. O empuxo à mulher que Margarete nos propõe no título, poderíamos não o centrar unicamente no filho, mas abri-lo como um leque, porque algo disto está no pai, não digo um empuxo à mulher psicótico, mas há algo…. como dizer…? minimamente, há um vestir-se de mulher e tomar um homem como partenaire, do lado do pai. E, que, por alguma razão, quer mostrar à mãe, produzindo nela um efeito de interpretação e de horror.
É algo que nos ensinam todos esses casos, nos ensinam algo de mulheres que se horrorizam. Mulheres assustadas… de certas consequências de seus próprios atos ou de certas consequências de seus próprios percursos, porque a mãe de Eloá havia sido parceira deste homem durante anos.
Então, me parece que Eloá nos ensina de entrada, que o sexo não é algo que venha enganchado no corpo da criança, não é algo que vem parafusado ao corpo. Como o caso do pequeno Hans, que sonhava com a torneira da banheira parafusada em seu corpo no lugar do pênis. O sexo não vem assim. É algo que se produz, que o parlêtre elabora. E Eloá dá provas disso, quando se apresenta com esse aspecto um pouco andrógeno, um pouco desorganizado… assim como estão desorganizadas suas relações com as palavras e com os objetos. Tudo está desorganizado.
Margarete se empresta para se fazer para nós do fio condutor do trabalho dessa criança. Pareceu-me algo original, porque Eloá faz um trabalho muito importante, há mudanças fundamentais em quatro anos, não apenas na maneira de apresentar-se, que vai se definindo, mas também no final quando acaba com o traço simplesmente do cabelo e da voz, o cabelo e a voz, quando a apresentação inicial era uma verdadeira desorganização. Então, as coisas foram se decantando, depurando e a criança está muito melhor. Mas, como isso foi produzido? Como isso foi possível? Isso também me evocou o caso do Pequeno Hans, de Freud, porque Margarete relata o caso, mas não foi ela quem o atendeu, foram outras colegas que trabalharam sucessivamente com a criança e contaram a Margarete, que supervisionou um pouco a coisa ou, pelo menos, foi quem alinhavou o caso para nós. Parece-me importante assinalar que, embora a criança tenha trabalhado com várias pessoas, nem por isso podemos dizer que foi uma prática entre vários.

Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.
O fato de que várias pessoas atendam sucessivamente uma criança, não faz desse trabalho uma prática entre vários. A prática entre vários é outra coisa, é um trabalho em uma instituição onde toda a instituição está comprometida, onde todos estão em transferência com a psicanálise e as crianças circulam nesse ambiente transferencial no qual qualquer um pode se tornar seu parceiro em dado momento. É uma prática da contingência. É preciso ler Antonio Di Ciaccia, ou os colegas belgas e italianos, que têm muitos anos de experiência. Então, não é uma prática entre vários, tampouco é uma análise nos moldes de uma criança que fala com um psicanalista … Aqui é outra coisa, é outra dimensão, o que produziu efeitos terapêuticos notáveis.
Eloá é uma criança que inventa, inventa soluções, inventa jogos e inventa também seu tratamento. Minha hipótese é que essa criança inventou sua maneira de trabalhar, falando com alguém orientado pela psicanálise. E com eficácia! As estagiaire foram suficientemente dóceis para segui-la e Margarete soube orientá-las o suficiente, para que se pudesse produzir os efeitos obtidos ao final. O que poderíamos nos perguntar aqui é se cada criança não inventa sua maneira de se analisar e, do que se trata, é de segui-la em suas invenções.
Outro ponto importante a destacar é que é possível que uma criança esteja em uma posição de abandono do Outro, ou seja, que sua mãe não se ocupe dela, não lhe dê banho, não a lave e que a deixe um pouco abandonada, mas isso não significa obrigatoriamente que a criança consinta, em todos os casos, em se identificar com esse abandono; esta criança não consente, pelo menos não completamente. Ele se queixa com a brincadeira de boneca que cheira mal e que tinha que tomar banho – está falando dela, é claro. Quer dizer, o Outro dá as cartas, mas o sujeito ainda tem que pegá-las. Nesse ato que se produz no inconsciente, uma escolha forçada está em jogo no sujeito, através da qual teremos um melancólico, caso a criança pegue a carta do objeto dejeto.
Neste sentido, me parece muito interessante, isolar o recorte do jogo do pênis. Essa criança não tinha acabado de sair de dentro da boneca e então aparece o pênis, “você viu o menino?”, é uma afirmação dele: “não sou uma menina”. Havia brincado de boneca, havia se apresentado como uma bailarina e, no final, pergunta ao outro “você viu o menino?”, “você me viu?”, “você me notou?”
Um dos trabalhos apresentados hoje retoma a frase de Eric Laurent, “a internet muda a forma de gozar”[4]. A Internet mudou o modo de gozar, e eu acrescentaria, inclusive, que antes que a Internet mudasse o modo de gozar, os filmes de Hollywood mudaram a maneira de beijar. Tem um filme do Giuseppe Tornatore sobre os beijos, Cinema Paradiso – não sei como se chamava aqui no Brasil – que é uma beleza. Não podemos imaginar como as pessoas se beijavam antes de Hollywood, mas, seguramente, depois de Hollywood, as pessoas se beijam como nos filmes ou pelo menos tentam. É o poder do imaginário sobre o gozo e sobre o corpo.
Eloá vem com o impacto da fotografia de seu pai, através de sua mãe, e sente que precisa colocar uma moldura no seu trabalho pela internet, ou seja, que não é suficiente que haja a imagem e haja a tela como filtro para a coisa; ela precisa adicionar uma moldura, uma caixa, para se proteger melhor. A última questão com que termina o texto de Margarete é se o encontro de Eloá com o gozo feminino será pacífico. Ela anuncia que pode não o ser e, de fato, me parece provável, mas a grande questão é: para quem o encontro com o outro sexo é pacífico, alguma vez? Porque o que vemos é que para o pai não foi, para a mãe não foi e nos trabalhos que ouvimos, também não. Assim, o encontro com o outro sexo é algo que justamente não é – pacífico – nunca. O desejo não é a paz.

Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.
Vamos agora entrar no trabalho de Soraya. Uma boa maneira de começar é marcando, como avançamos em uma pequena reunião preparatória com Flávia e Nohemí, que as conversações que o CIEN propõe e sustenta – Soraya disse muito bem – não fazem interpretação. As conversações do CIEN não são um tratamento, não são uma terapêutica, não se trata de interpretar ninguém ali. Dito isso, é preciso afirmar que não são uma conversação qualquer, não são uma conversação como as outras, como esses… como se chamam? Tertúlias! Encontros. Os encontros do rádio, televisão, blábláblá. Ali, não acontece nada, em geral não tem nada de interessante, no fundo, eles são feitos para adormecer o staff. As conversações do CIEN têm a particularidade de ter uma espinha dorsal – a ideia da espinha dorsal é de Flávia – têm uma espinha dorsal, que é a psicanálise. Portanto, por esse simples fato, pelo fato de que os que coordenam ou sustentam as conversações são, antes de tudo, analisantes orientados/as pela psicanálise, isso dá a essas conversações uma orientação precisa que não é como as outras, e os efeitos que elas produzem também podem ser diferentes.
O caso de Alice, que Soraya nos apresenta, nos faz voltar a encontrar com o horror das mulheres ou, pelo menos, com o susto das mulheres diante do falo, como algo que vem lhes dizer: “você pode pensar que o é, mas outra coisa é quem o tem”. Essa seria uma primeira questão e a segunda, como diz Lacan, é captar que o falo é algo que se interpõe, é paradoxalmente o que impede a relação sexual.
No trabalho de Soraya, há uma frase a destacar: “posicionar-se nas redes sociais como um eu sem corpo”, porque diz algo do momento atual, agora quando, em todo o Campo Freudiano, a única maneira de trabalhar com os colegas e com os pacientes é com Zoom, Skype ou telefone. Ainda não sabemos os efeitos disso tudo, estamos fazendo a experiência, ou seja, os estamos usando sem saber os efeitos que produzimos. Não sabemos quais efeitos de formação irão se produzir, se é que se produzem; não sabemos quais são os efeitos de relançamento do desejo; poderemos entender tudo isso depois. Então, me parece que essa ideia de “eu sem corpo”, é preciso recortá-la, porque tem um valor de ensino. O que Alice nos ensina é que talvez as redes sociais favoreçam um eu sem corpo, mas não sem o inconsciente. As redes sociais não tamponam, não impedem que o inconsciente surja: é o que acontece com Alice ao receber a foto.
Outra foto que revela! Desta vez, revela a dérobade[5], a fuga da histeria, como se dissesse ‘isso não funciona comigo’, mas que se denuncia, fica claro que ali havia um desejo em jogo, precisamente, que o falo estava em jogo.
Por último, antes de entrar na conversação, eu diria que, neste exercício de moebius entre CIEN e CEREDA, há algo que nos toca como psicanalistas, nos toca no íntimo do nosso desejo de analistas. Parece-me que o que esses trabalhos têm em comum é que eles nos ensinam algo da ética analítica. Ou seja, que não poderiam ser realizados, se não estivessem apoiados na firme convicção, como diz Lacan no Seminário 7, de que o analista não sabe o que é o Soberano Bem[6]. E isso, trabalhando com crianças, é totalmente imprescindível.
Se trabalhássemos pensando que sabemos qual é o bem para uma criança, fosse numa conversação do CIEN ou num trabalho analítico com uma criança, se pensássemos que sabemos o que lhes convém, os efeitos que vimos não teriam sido produzidos, nem os efeitos terapêuticos, nem os efeitos de ensino. Esta é a hipótese que lhes proponho e agora vamos conversar e escutar as de vocês.
Transcrição: Daniela Nunes Araújo
Tradução do texto estabelecido pela autora: Mª Cristina Maia Fernandes
Revisão da Tradução: Paola Salinas
[1] Texto elaborado pela autora a partir da transcrição da sua fala no VI Encontro dos Núcleos da NRCereda no Brasil – “Os Impasses do sexual e os arranjos da sexuação”, na Mesa “NRCereda e CIEN: Sobre a Diferença Sexual”, em 11 de março de 2021, via Zoom.
[2] LACAN, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
[3] AROMÍ, A., “La alegría del Niño”, El Niño nº 10. Barcelona, febrero de 2002.
[4] LAURENT, E., Jouir d’internet. Conversation avec Eric Laurent, La Cause du dèsir nº 97, Navarin Editeur, novembre 2017. Disponível em português: Laurent. Eric. Gozar da internet. In: Revista Digital de Psicanálise e Cultura da EBP-MG, n. 12, agosto de 2020. http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet
[5] NT: evasão, fuga.
[6] LACAN, J., O Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
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Pais exasperados – crianças terríveis[1]
by cien_digital in Cien Digital #25, Hífen
Daniel Roy[2]

Construção Crepúsculo Urbano – Foto gratuita no Pixabay
Este é o título que Jacques-Alain Miller nos propõe para a nossa próxima Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança.
É um título à altura da época, que não é um jargão hermético. Ele ressoa com uma realidade bem cotidiana no que diz respeito às relações dos pais e das crianças deste nosso século. Ele também nos diz respeito na medida em que estamos envolvidos nisso. Esse título nos convoca a seguir o fio do questionamento de Lacan no final de seu ensino, em dezembro de 1976: “Ela está, sim ou não, fundamentada, essa relação da criança com os pais?”[3]
Como isso está fundamentado para Nina, de 4 anos, que vem para uma consulta “por que não dou ouvidos à mamãe e ao papai”, diz ela? Eles dizem de sua filha: “ela tem crises”. Ela grita e atira seus objetos, “um verdadeiro tornado”. Punir, falar com ela, nada adianta, “ela não dá ouvidos às ordens.” A mãe se culpa por “ter estragado sua filha” e nota as dificuldades de Nina em se separar dela em quaisquer circunstâncias.
E para Maxence, 3 anos e 7 meses, que não para com as birras, como fazer? “Na família, não conseguimos lidar com ele, ele quer nos organizar!” Ainda bebê, seus gritos eram insuportáveis para seus pais, que não conseguiam acalmá-lo. Nos primeiros encontros, Maxence permanecerá muito colado à mãe, fazendo um uso ilimitado do corpo dela. Maxence não tem um ursinho de pelúcia? “Mas, sou eu!”, sua mãe responderá.
Destes dois encontros e de tantos outros, deduz-se uma perspectiva precisa: as crises, os ataques de raiva, a criança que não escuta, com a qual os pais não conseguem lidar, se esgotando completamente ao fazê-lo, podemos considerar tudo isso como o princípio organizador da família. Além disso, esses significantes, e outros, tornaram-se realmente o que funda uma relação direta e sem mediação da criança com os pais, na medida em que esses significantes realizam um aglomerado de corpos em presença e concentram a atenção e a libido de todos.
Não é a família que está em crise, é a crise que se encontra no próprio fundamento da família: tal é o novo princípio da família pós-moderna. A “criança-terrível” aparece aí como um condensador de gozo para cada um. Todos à beira de um ataque de nervos. Este é o caldeirão em que somos convidados a mergulhar.
Famílias / Transmissões
A família do século XXI não é mais a família dita tradicional ou patriarcal, nem a família conjugal do século passado. Ela é uma nova resposta ao enigma da transmissão que está no cerne desta “formação humana”.
Em 1938, em seu texto “Os Complexos familiares na formação do indivíduo”, a “família moderna”[4] é para Lacan o produto “de uma profunda reorganização”[5] que não é de forma alguma uma simplificação em direção a uma unidade social elementar (pai, mãe, filhos), mas “uma contração da instituição familiar”[6], “sob a influência prevalente do casamento”[7] e ele adota o termo “família conjugal”[8], retirado de Durkheim.
Esta reorganização tem a consequência direta de fazer aparecer toda uma nova dimensão da transmissão, que Lacan destaca em 1969, em sua Nota sobre a criança: “A função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades, destaca a irredutibilidade de uma transmissão […] que é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”[9].
A transmissão não é mais aqui a transmissão automática de um nome e de uma autoridade. Ela só existe vinculada a um desejo, enquanto encarnado, seja pela via de uma falta, seja pela da nomeação na palavra. Há, aí, uma mudança de “eixo da função significante ligada ao termo família”[10].
Nesta configuração, se desenharmos dois círculos que se sobrepõem parcialmente e, se escrevermos em um dos círculos os dois significantes de “pai” e “mãe”, e no outro o de “criança”, podemos, então, escrever em sua intersecção, com o significante “desejo”, os dois nomes de falta e de nomeação. Percebemos, assim, a parte que se trama neste lugar, ao mesmo tempo traço de união (hífen) e espaço de separação, onde virá se alojar o sintoma da criança, como Lacan o indica na sequência de sua “Nota sobre a criança”.
Mas a família daqui em diante está imersa no banho de nossa civilização, onde os objetos provindos da tecnologia, os objetos mais-de-gozar, assumiram a autoridade e fundam a lei para todas as formas do ideal. O gozo está aí em primeiro lugar. Em um de seus últimos seminários, em 10 de junho de 1980, e intitulado por J.-A. Miller, “O mal-entendido”, Lacan extrai as consequências disso e evoca “dois falantes que não falam a mesma língua […] Dois que se conjuram para a reprodução, mas por um mal-entendido realizado”[11]
e que, ao dar a vida, transmitem esse mal-entendido. Trata-se de um mal-entendido que incide sobre o gozo e que se enraíza nas “algaravias (bafouillage) dos seus ascendentes”, do qual o corpo novo de falante faz parte. O anúncio do nascimento é essa algaravia em que se aloja o gozo, mal-entendido estrutural. Então, vamos colocar “dois falantes” em um dos círculos, deixar “criança” no outro, e colocar (inscrever) na interseção, o gozo cercado por seu mal-entendido e pelas algaravias. O real do gozo vem, assim, “se imprimir” por debaixo na trama do discurso e dar uma nova perspectiva ao sintoma, aquela de um real irredutível entre pais e crianças que os une e os separa, “a um ponto de “não se fala disso”[12], presente em cada família.
Famílias / Disfuncionamentos
Eis, então, a atual família resíduo: um conjunto formado pela reunião, no sentido matemático, de dois conjuntos, o dos “pais”, de dois falantes, de um lado e o das “crianças”, do outro. A interseção, sendo constituída pelo que eles têm em comum, ou seja, mal-entendido e algaravia sobre o gozo dos corpos, transmitidos por meio de desejos encarnados, no melhor dos casos. Essa estrutura é suficiente para dar conta da incrível diversidade sociológica das famílias atuais e da grande variedade de tipos de pais e tipos de crianças que elas reúnem, como constatamos em nossas práticas. Mas, o que passa despercebido é que “família” não é mais um significante dado de antemão como inscrito no simbólico, seja por filiação ou por aliança. Esta inscrição é a parte que retorna a cada um dos falasseres, na medida em que eles fazem – ou não – existir a função significante da família, ali onde se impõe sua função de gozo, essa disjunção que muitas vezes faz vir, ao primeiro plano, a função imaginária da família.

Pássaro Esgrima Bico – Foto gratuita no Pixabay
É nessa inconsistência da família pós-moderna, quanto ao simbólico, que penetram os discursos de ajuda aos pais e de remediação cognitiva e comportamental, a fim de rastrear disfunções. Eles vêm atualmente sustentar os ideais da família, explorando a discrepância inevitável entre a “criança-perfeita” e a “criança-terrível”, entre a criança-falo prometida pelo ideal e a criança-objeto, ser de gozo. Essa divisão marca uma mulher ou um homem quando eles se tornam “pai” ou “mãe”. Ela vem “exasperar” em cada um deles, a tensão entre a mais-valia que conta com o acesso a esses significantes mestres e o efeito de castração que, por sua vez, é registrado como perda, se não como falta.
Ao não ser tomada por um dizer singular, essa divisão, então sentida como insuportável, é projetada sobre a criança que assume os traços de um ser enganador e cuja presença custa tempo, energia, dinheiro etc. O coaching parental, o suporte aos pais, enquanto práticas de discurso, asseguram o “serviço de pós-venda” da agência-mestre da família: colocando palavras no sofrimento, dando sentido, ensinando a lidar com as emoções, segundo a vulgata atual. Esses sintagmas de agora em diante ocupam seu lugar no discurso corrente, assim como certos termos “pseudocientíficos” elaborados por especialistas. Substituindo-se aos significantes particularizados que se transmite na língua falada nesse tal grupo familiar, eles fazem consistir os laços de dependência.
Nesta zona de alienação significante, fica ocultado o que circula como desejo e o que se deposita como gozo em jogo, para cada um dos parceiros. Na verdade, é nessa intersecção, que o mínimo processo de separação se funda, dos desmames da infância até as aventuras tumultuadas da adolescência.
Depende disso a possibilidade de uma criança decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais como “causa de seu desejo” e como “dejeto de seus gozos”[13]. Essa decifração, uma criança a faz com os significantes que ela recolhe, que assumem o valor singular do gozo pulsional que os lastreia. Essa é a função privilegiada do jogo da criança, que enlaça, em torno do objeto indizível, as extremidades de corpo, fiapos de gozo e fragmentos de discurso. Este objeto é a válvula que abre, entreabre ou fecha o espaço para uma separação.
Quando este objeto não tem lugar subjetivamente como causa de desejo e resto de gozo, ele se encarna na criança terrível, que “não ouve nada”, “que só faz o que lhe dá na telha”, “tem uma crise”, “impede a todos de dormir”. Os conselhos de orientação dos pais, assim como os diagnósticos de tipo médico, se somam às queixas dos pais e às manifestações sintomáticas da criança e desencadeiam o poder de angústia do objeto a. Essa presença não reconhecida, que assombra o sintoma da criança-terrível, passa a questionar cada um dos pais sobre “a verdade do par parental”[14], exaspera o lugar que um filho pode ocupar “como objeto a na fantasia”[15] de cada um. Essa presença também aterroriza a “criança-terrível”, sob diversas formas fantasmáticas e de pesadelo.
Assim, o disfuncionamento não é o que se acredita, ele não se relaciona com um mau arranjo dos papéis parentais ou das relações pais-crianças, nem com o mau funcionamento de uma função psíquica ou cognitiva. O disfuncionamento consiste em não querer saber que a família já é um modo de tratamento do gozo dos corpos falantes presentes, que não responde a nenhum ideal, mas que é, antes, da ordem de uma “religião privada”, da qual ignoramos tudo quando encontramos pais e filhos e da qual temos tudo a aprender sobre as regras que ali se aplicam, os ritos que ali se celebram, os pequenos deuses que ali reinam. Mais fundamentalmente, temos que aprender a língua que ali é falada, sua gramática, seu vocabulário. Estamos, portanto, mais próximos da posição da criança, buscando decifrar os enigmas, dar conta do valor de gozo das palavras, dos atos e dos objetos que circulam e dar a cada um, a parte que lhe cabe. Descompactar “a família holófrase”[16], de alguma forma, sem uma grade de avaliação ou um modelo ideal.
Famílias / Equívocos – bévues
Ao contrário das evidências antropológicas, parece que a família não se enquadra, de forma alguma, em uma lógica do universal e que ela, daqui em diante, entrou em uma lógica do não-todo. Isso condiciona nosso acolhimento dos sintomas das crianças e das queixas e preocupações dos pais. Não podemos mais colocar no princípio de nossa intervenção que para todos os seres falantes, a família é uma função, com o que isso implica que exista um, que seja o pai, a mãe, ou os pais, ou mesmo o especialista ou o coach, que seria seu fundador ou o mantenedor e que, em função disso, ficaria de fora. Deve-se acrescentar que a própria criança é, muitas vezes, localizada, pelos pais, no lugar daquele que funda a família. Sabemos por experiência, que todas essas configurações produzem efeitos potencialmente devastadores para os membros dessa família.
Nós partimos, portanto, de outro ponto de vista, colocando que não existe ser falante que não seja de uma família, o que abre muitas perspectivas a todos aqueles que estão em posição delicada com sua família ou que se consideram “sem família”, mas também para todos os outros. Para cada criança, protegida ou abandonada, há possibilidades de “bricolagens”. Respondendo a uma lógica do não-todo, a instituição “família” oferece outros recursos: aqueles, para a criança, de ser não-toda dependente das identificações familiares, não-toda dependente do amor, filial e parental, ou seja, ser capaz de explorar seus lados menos amáveis. E isso também se aplica aos seus “parceiros no jogo da vida”, pai, mãe, padrasto, madrasta e outros “familiares”.
Talvez agora tenhamos voz e espírito mais livres para enfrentar a criança-terrível, o hiperativo, os dis[17], aquele que morde, aquele que não dorme e seus pais exasperados, em pânico ou desesperados. Podemos acompanhar aqui, o desenvolvimento feito por J.-A. Miller em seu curso “Peças soltas” de 19 de janeiro de 2005, sobre “a questão do exercício da psicanálise na época da leveza”[18]. Ele faz valer que face a este “domínio da leveza”, que visa reduzir o sujeito de sua particularidade a um universal, a psicanálise não precisa entrar “em uma competição de poder terapêutico”[19], na medida em que, com Lacan, ela é a única a levar em conta o lugar do objeto a, tanto como causa do desejo, como mais-gozar, mas igualmente como consistência lógica, como um real “produto do simbólico”[20]. Ele nos incentiva a assumir um ponto de vista “pragmático e de quem faz bricolagem”[21] que consiste em buscar com os sujeitos, os significantes, os S1 que “ajudam a tornar o gozo legível”[22] e que, portanto, “ajudam a tornar legível a história”[23].
Mas, todas as situações que encontramos não respondem a esta dialética que permite instalar “o aparelho de decifrar da psicanálise”[24]. Há aquelas para as quais devemos considerar que, no seio da exasperação de pais exasperados e do terror dos filhos terríveis, se aloja “um gozo ilegível”[25], que só pode permanecer uma “letra velada’, o que significa que temos que respeitá-lo neste lugar, que não temos que procurar reduzi-lo, anulá-lo, interpretá-lo.
Devemos, portanto, levar em conta, essa “economia do gozo” própria a uma família.

Navio Colher Mar – Foto gratuita no Pixabay
Para tanto, o uso do termo equívoco (bévue), de um equívoco (une-bévue)[26], introduzido por Lacan em seu Seminário XXIV, é inestimável para nós aqui, na medida em que amplia o conceito de inconsciente freudiano, enfatizando aí o traço de uma passagem: algo aconteceu, um relâmpago chegou. Um equívoco, não há nada mais próximo, no ser falante, para fazer signo do acontecimento contingente. Não são novas significações que se trata de isolar, mas, a partir de um equívoco (une bévue), “na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala”[27]. Lacan indica “que não há nada mais difícil de apreender do que esse traço do equívoco, pelo qual traduzo o Unbewusst, que significa inconsciente em alemão. Mas, traduzido como um equívoco, significa outra coisa – um obstáculo, um tropeço, um deslizamento de palavra a palavra”[28].
O um-equívoco é um traço que Lacan equipara ao traço unário, como a única coisa que faz Um em um mundo onde “todos não têm nenhum traço comum”[29]. O único traço comum é ser marcado com o traço do um-equívoco. As “besteiras” das crianças, os seus vários tropeços, encontram aí, uma luz renovada!
Então isso nos interessa muito, porque nos coloca de cara com a taxionomia dos distúrbios da infância: distúrbio da linguagem, da atenção, disforia de gênero, distúrbio das condutas, do comportamento, distúrbios dos esfíncteres. Eis todas as principais funções do corpo falante, já ordenadas pelo discurso biopsicossocial da OMS[30], que todas elas entram no traço do um-equívoco. O “distúrbio” é um traço do um-equívoco, mas acolhido, sem o recurso de um véu sobre a letra, por alguém que se confere o atributo do saber, e por este fato impede que Um encerrado no traço do um-equívoco vá em busca de seu Outro. Esta é, de fato, a única maneira de saber que ele não estava escrito ali, e que, portanto, ele não faz destino.
Para nós, isso abre duas maneiras de fazer as coisas: acolher, como traço do um-equívoco, as diversas desordens, distúrbios, a partir do momento em que eles são colhidos em um discurso e, assim, permitir que esses significantes se emitam para outros significantes. É a invenção do inconsciente no sentido freudiano, sempre atual. Mas, a outra manobra que podemos designar com uma palavra que Lacan tomou emprestado do pequeno Hans, “isso consiste em servir-se de uma palavra para um uso diferente daquele para o qual é feita, nós a amarrotamos um pouco e é neste amarrotamento que reside o seu efeito operativo”[31]. Assim, ou amarrotamos para deter a hemorragia ou visamos o relâmpago, esse é o efeito ao qual, às vezes, a poesia ou o dito espirituoso alcançam.
Sugiro que retenhamos deste percurso, que o traço de união (hífen) entre pais exasperados e filhos terríveis não se enquadra nem na dimensão da transmissão, nem num veredito de disfunção, mas que ele não é nada mais que esse traço do um-equívoco que sulca a família. Esse Um-equívoco que, sozinho, pode fundar essa relação da criança com os pais e dos pais com as crianças que, com Lacan, interrogamos no início.
O equívoco contra a norma, sim, é possível.
Tradução: Cristina Vidigal.
Revisão: Cristina Drummond e Mª Cristina Maia Fernandes.
[1] Texto publicado no Zapresse em direção às JIE7, pronunciado no dia 13 de março de 2021, por ocasião do encerramento 6ª Jornada do Institut de l’Enfant. Editado por Frédérique Bouvet e Isabelle Magne. Original disponível em: https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Também disponível em Rayuela. Publicación virtual de la Nueva Red Cereda América, n 9, novembro de 2022.
[2] Secretário Geral do Institut Psychanalytique de l’Enfant.
[3] LACAN J., Le Séminaire, Livre 24, L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre, leçon du 14 décembre 1976, ¿Ornicar?, no 12/13, décembre 1977, p. 14.
[4] LACAN J., Os complexos familiares na formação do indivíduo. Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 32.
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] Ibid.
[9] LACAN J., Nota sobre a criança. In Outros Escritos, op. cit., p. 369.
[10] LACAN J., O Seminário, Livro 5, As formações do inconsciente, texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 59.
[11] LACAN J., O mal-entendido. In Opção Lacaniana nº 72, março de 2016, p. 11.
[12] MILLER J.-A., Assuntos de família no inconsciente. In: Asephallus, Revista eletrônica do Núcleo Sephora, v. 2 nº 4, maio a outubro, 2007.
[13] MILLER J.-A., Préface. In L’inconscient de l’enfant. Du symptôme au désir de savoir, Bonnaud H., Paris, Navarin / Le Champ freudien, 2013, p. 11.
[14] LACAN J., Nota sobre a criança, op. cit, p. 369.
[15] Ibid.
[16] Cf. LAURENT È., Institution du fantasme, fantasmes de l’institution, Les feuillets du Courtil, nº 4, efin 1992, p. 9.
[17] N.T.: Dys em francês faz referência aos distúrbios e disfunções da linguagem e da aprendizagem como são nomeados os sintomas no DSM: dislalia, dislexia, disfagias, dispraxias. Mais recentemente nessa sequência foi incluída a disforia de gênero para nomear as singularidades de respostas no campo do sexual.
[18] MILLER J.-A., Piezas Sueltas, Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 102.
[19] Ibid.
[20] Ibid., p. 109.
[21] Ibid., p. 115.
[22] Ibid.
[23] Ibid.
[24] Ibid., p. 114.
[25] Ibid., p. 113.
[26] LACAN J., Le Séminaire, Livre 24, L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre, leçons du 10 et du 17 mai 1977, Ornicar ?, nº 17/18, Printemps 1979, p. 16-23.
[27] LACAN J., O Seminário, Livro 23, O Sinthoma, texto estabelecido por J.-A. Miller, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 129.
[28] LACAN J., Le Séminaire, Livre 24, L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre, op. cit.p. 18.
[29] Ibid.
[30] A OMS define e divulga “uma família de classificações” para definir as duas dimensões de estados disfuncionais e comportamentos disfuncionais: por um lado o CID, Classificação Internacional de Doenças, por outro a CIF, Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, disponível no site da OMS (https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42418/9242545422_fre.pdf)
[31] LACAN J., Le Séminaire, Livre 24, «L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre», op. cit., p. 21.
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Dignidade, um significante em rede[1]
by cien_digital in Cien Digital #24, Hífen
Paola Salinas (EBP-AMP)
Uma rede pessoal, a princípio.
Inicialmente, este significante se precipitou a partir de uma torção em relação à indignidade, construído em uma primeira reunião por skype com Ève Miller-Rose, Daniel Roy e Anne Ganivet–Poumellec[2], contingencialmente, em um momento decisivo no qual eu iniciava uma nova análise. Uma angústia me acompanhava quando me vi só, diante do computador, com algumas anotações sem falar o francês, ao mesmo tempo que só, em outro país, cuja língua eu falava e que apesar disso, não conhecia. Este só compunha outra rede pessoal, que não deixava de se impor à construção do meu laço com a psicanálise, a partir de outra perspectiva da solidão e da palavra.
A dignidade, especificamente ‘a dignidade da palavra’ também estava em uma rede pessoal, já afetada pelo trabalho no Cien Brasil com uma grande equipe de colegas dos diferentes estados brasileiros e com os laços com o Cien Argentina desde o ano anterior.
Indignação era um dos significantes que compunham o título do IX ENAPOL, e era um ponto de partida para pensar a II Conversação do CIEN América. A dignidade do sujeito como bússola era algo que me permitia pensar o singular dentro do coletivo. Nesta primeira reunião, pude escutar aportes, ressonâncias e explicitar a cadeia de trabalho à qual o significante dignidade pertencia. O tema então se decantou: “A Criança Violenta e a Dignidade do Sujeito”.
Uma rede com o laço, com o outro
Esta frase soa estranha, mas surgiu espontaneamente dessa forma, talvez por querer destacar que a rede foi motivada pela importância do laço. Ou seja, para além ou para aquém do outro, o laço constitui-se em uma ferramenta fundamental em nossa prática, bem como na possibilidade de reintroduzir a solidão em um coletivo.[3] Possibilidade esta que pude extrair do CIEN, com os diferentes colegas com os quais compartilhei o trabalho, um laço considerando a solidão de cada um.
O significante dignidade se apresentou, primeiramente, ao buscar formalizar os efeitos de uma determinada conversação, nas palavras de Alejandro Daumas[4]. Estávamos na I Conversação do Cien América e este ponto retornou nas perspectivas finais, nas pontuações de Juan Carlos Indart, que soube extraí-lo, afirmando que “quando cada um pode se arriscar a colocar em palavras um pouco da sua singularidade, podemos dizer que uma conversação ocorreu e desse modo, a ‘dignidade singular’ seria o alcance máximo que se poderia aspirar em uma conversação”[5]. Já no Argumento da II Conversação do Cien América[6] , enunciávamos que quando se aposta que cada um possa se responsabilizar por um dizer que lhe escapa, por um ato que lhe surpreende, e assim reconquistar como sujeito a dignidade de seu sintoma, abre-se outra possibilidade de laço com o Outro.
Uma rede que inclui a diferença, e por que não, a diferença sexual[7]
Se sustentamos que a dignidade no CIEN se apresenta de modo “contingente, articulada ao desejo e à margem da rotina protocolar, podemos verificar uma aposta que se sustenta a cada vez no laço com os outros e que requer uma tomada de posição frente ao saber e ao ideal”[8]. É justamente um vazio de saber que é convocado e é interessante, senão essencial, que assim seja.
Ser possível inserir no laço social algo da singularidade porta uma dignidade, sendo que a primeira guarda uma relação íntima com a diferença absoluta. A dignidade de uma diferença é a de poder dela se apropriar e tomá-la, seja na experiência analítica, ou em pequenas experiências do dizer, como nos laboratórios, na direção contrária à da segregação.
Assim, trata-se mais de retomar o ponto de exclusão de cada parlêtre presente em sua constituição[9], tomar o corpo incluindo esse ponto opaco que o compõe e que marca uma diferença essencial, que não pode ser absorvida em nenhuma identidade, normativa ou não. A ética lacaniana parte da noção que o sexual porta um impossível de legislar, de domesticar, de harmonizar, e de nomear precipitadamente.
Transmissão
Creio poder afirmar que a dignidade de uma diferença é que ela seja sinthomática, ponto mais singular de um sujeito, frente ao qual, na experiência analítica, se espera uma identificação. Uma diferença sinthomática, uma identificação ao sinthoma, que é diferente de identificar-se a uma identidade compartilhada ou a um grupo.[10]
Seguimos no Cien América na construção a tantas mãos, letras e ouvidos, em um laço renovado e vivificado. Ademais de contarmos com os aportes do Cien francófono. Esta El niño 15[11] dá mostras de um diálogo constante, aberto e furado em relação ao que nos cabe investigar neste momento no CIEN, que nomearia de modo geral, pontos da diferença sexual.
Assim, ao acompanhar a rede do significante dignidade, desde a I conversação de 2017, a reunião por Skype, a II Conversação em São Paulo e este momento de lançamento da El niño, posso constatar que ocorreu uma transmissão. Uma experiência de dignidade em ato, a qual depois pode vir a se fazer texto. É a partir dessa experiência que as citações, referências e comentários podem transmitir melhor, incluindo o corpo no tecer dessas redes de trabalho. A experiência do CIEN contribui desse modo para a psicanálise atual, ao tecer, não sem o corpo, um lugar para acolher a diferença e retomar outro modo de laço com o Outro. A psicanálise como anfitriã desse espaço, abre os poros para que o singular possa respirar.
[1] Texto apresentado no Lançamento da Revista El Niño n 15, em 26 de setembro de 2020, via Zoom.
Disponível em: Presentación de la Revista El niño – Última parte – https://www.youtube.com/watch?v=SXC0BUwxET4&list=PLtR_NyEau3CbD6Czt4UxAEZ2kIFSa7uNF&index=2&t=55s Traduzido do espanhol pela autora.
[2] Compõem o Bureau da Fundação do Campo Freudiano. A reunião ocorreu em março de 2019.
[3] Miller. J. A. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. In: Opção Lacaniana on line nova série. Ano 7, n 21, novembro de 2016.
[4] Impossível não mencionar seu livro intitulado La dignidad del niño analizante. Lançado em 2018 pela Grama Ediciones.
[5] Udenio, B e Indart, J C Os laços sociais e suas transformações. Conversação Internacional do CIEN 2017 – Mesa de Encerramento. In: Cien Digital, n 22. novembro de 2018. Disponível em: www.ciendigital.com.br
[6] Argumento II Conversação Cien América, São Paulo, setembro de 2019. Disponível em: https://cienbrasil.wordpress.com
[7] Tema de estudo das Redes da Infância do Campo Freudiano 2019-2021.
[8] Salinas, P. Cêra, F. CIEN: una apertura posible a la dignidad. Puntos vivos de la II Conversación Americana del CIEN. In: Revista El Niño n 15. El niño: modulaciones sobre lo neutro. Comp. Beatriz Udenio. Publicación del Instituto del Campo Freudiano y del Centro Interdisciplinario de Estudios sobre el Niño (CIEN) – Nueva serie. Olivos, Grama Ediciones, 2020.
[9] Lacan, J. El ombligo del sueño es un agujero. Respuesta a Marcel Ritter. In: Freudiana, n 87. La discordia de los sexos. Septiembre-Diciembre de 2019. Revista de Psicoanálisis de la comunidad de Cataluña de la ELP.
[10] Laurent, É. Observaciones sobre tres encuentros entre el feminismo y la no relación sexual. In: El psicoanálisis. Revista de la Escuela Lacaniana de Psicoanálisis. n° 35, p. 7.
[11] Revista El Niño n 15. Id. Ibid.
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Quatro perspectivas sobre a diferença sexual
by cien_digital in Cien Digital #23, Hífen

Autor: Steve Johnson – Imagem: crystal-glass-on-a-colorful-background – https://www.pexels.com/
Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant
Daniel Roy
A cada dois anos, o Comitê de iniciativa do Instituto da Criança submete a Jacques-Alain Miller propostas de tema para a próxima Jornada. Em 2021, apenas uma proposta – “A diferença sexual” – foi unânime. J.-A. Miller aprovou e confiou a Marie-Hélène Brousse e a mim, a apresentação. Se o texto de orientação que esperávamos, como de costume, vai nos fazer falta, de minha parte vejo nisso um convite feito a cada um de nós, bem como aos grupos e redes do Campo freudiano, para produzir um saber de peso frente às desordens rápidas da clínica. Essas últimas, especialmente sensíveis no campo da infância, testemunham a deriva ocorrida nos continentes de nossas convicções – os semblantes que nos mantêm – e de nossos hábitos – os gozos que nos convêm –, deriva que produz linhas de falha e zonas de fratura. A diferença sexual é o nome de uma dessas zonas privilegiadas.
O psicanalista, nem guardião do templo nem libertador moral
Entrando no mundo que a precede, cada criança é a primeira a ser confrontada com essa falha; ela vai carregar doravante a marca de origem, inscrita na língua sob os nomes diferentes de “menino” e de “menina”, “homem” e “mulher”. Mas essa zona sexo e gênero tornou-se incerta e objeto de aposta entre correntes antinômicas. Esta aposta está especialmente representada hoje, na mídia e na clínica, pela angústia e pelo discurso das crianças ditas “transgênero”. Elas não se reconhecem no sexo que lhes é atribuído e afirmam muito cedo a convicção de terem nascido em um “corpo ruim” ou em um “falso corpo”. Teremos que aprender com o fato de que essas crianças formulam como primeira demanda uma mudança do nome próprio para um outro, que elas mesmas escolheram. Nos interrogamos sobre essa solicitação endereçada à família, ao corpo social, depois ao jurídico, de lhes fornecer uma identidade sexual que seja estável e nova, introduzindo assim um regime derrogatório à lei comum, que refere a partilha do sexo, bem como o nome e a filiação, ao efeito de um dizer, de uma declaração, da parte de quem se assume responsável pela chegada de um novo ser falante ao mundo.
Esse fato, clinicamente demonstrado, de que um sujeito possa não querer passar por essa via comum nos convida a reconsiderá-la e a interrogar as identificações sexuais. De um lado, elas parecem deduzir-se “naturalmente” da diferença entre os sexos e, de outro, parecem vir em seu apoio, acomodá-la e inscrevê-la no mármore da ordem simbólica. Os psicanalistas são frequentemente interpelados por esta questão, seja como guardiões do templo edípico, seja como propagadores do liberalismo moral mais desenfreado.
Nossa via, no Instituto da Criança e no Campo Freudiano, consiste em confrontar nossa prática, nossa clínica, às pistas abertas por Freud e por Lacan. Estas pistas ainda são atuais? Elas apresentam respostas ainda válidas diante dos impedimentos, dos embaraços e das inquietações encontradas pelas crianças, por seus pais e seus educadores? Propomos quatro perspectivas sobre a “diferença sexual”, extraídas das obras de Freud e de Lacan, nos referindo à leitura de Jacques-Alain Miller, particularmente ao seu texto “Os seis paradigmas do gozo”[1].
Novo e singular: o sexual faz a diferença!
A primeira perspectiva é aquela indicada por Freud no prefácio aos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de 1910. Ele exprime ser “seu firme desejo que este livro envelheça rapidamente, pela aceitação geral daquilo que trouxe de novo e pela substituição de suas imperfeições por teses mais corretas”[2]. Porém, nos dois prefácios seguintes, em 1914 e 1920, ele constata que esse desejo não foi atendido e que a recepção de sua teoria sexual estava distribuída entre acusações de pansexualismo e resistência assumida a essa parte de sua descoberta. O fator sexual, tal como ele o introduz no discurso universal, é de fato uma novidade que não pode ser “universalmente admitida”. Novo e singular, tal é o caráter do sexual como ele se apresenta no tratamento analítico. A posição que o sujeito, desde a infância, assume em relação a esse elemento de novidade e a esse elemento de singularidade, introduz para ele o germe de sua diferença absoluta. Isso é fundamental no tratamento, mas igualmente no plano da civilização, pois significa que há uma diferença que não tem sua origem em uma segregação, contrariamente a todas as outras diferenças produzidas pelo social.
Isto introduz uma dificuldade particular: nenhum código permite ao sujeito decifrar o que lhe acontece e, portanto, ele não sabe por que aquilo lhe acontece, nem o que quer dizer. Contudo, está a seu cargo. E é diante dessa falha que vão se construir as teorias sexuais infantis e se edificar as diversas identificações da infância. Assim, com Freud, o sexual faz a diferença e essa posição radical confere estilo à ação do psicanalista: preservar essa singularidade, bordejar essa novidade quando ela se torna violenta demais.
O falo: um órgão bem particular
A segunda perspectiva abre-se em 1923, com o texto intitulado “A organização genital infantil”[3] e continua em 1925 com “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”[4]. O novo ator introduzido é um órgão muito particular, o falo, que nos termos de Freud exerce uma “primazia” sobre a vida sexual infantil para os dois sexos. Ele é particular porque sua eficácia só se sustenta em ser possivelmente perdido. É o que Freud chama de “castração”, e a fase fálica é o momento em que cada uma e cada um é convocado a tomar posição em relação ao valor de uso desse órgão para eles. Um século de psicologia enfraqueceu esse argumento decisivo. É uma área de turbulências na qual entram meninos e menina:
– Os meninos entram com angústia e sob a ameaça, por serem portadores do que deve ser perdido para fundar a diferença. Que valor atribuir, então, ao que eles creem ter? As satisfações pulsionais presentes não vêm desmentir as promessas futuras?
– Para as meninas, como o valor que elas atribuem ao seu “não ter” vai determinar a posição delas? Aceitação tingida de inferioridade e tendendo à renúncia? Ou então abrindo para um uso da falta que vai da espera até a preferência absoluta dada a esta falta? Ou ainda uma posição de revolta que a conduz, como ao menino, a um mundo de ameaça?
Não é por acaso que essa perspectiva culmina com os textos de Freud que tratam da feminilidade[5] e de numerosos textos de suas alunas mulheres[6], pois ela mostra um ponto de fuga: não ter o que é preciso para aferir a diferença coloca a menina na posição de estar sob o impacto da diferença, sem dispor dos meios para limitá-la em seu próprio corpo. Lacan designará esse momento “a querela do falo”[7]. Não é de surpreender, um só falo para os dois sexos, é guerra garantida! Ela estaria ainda tendo continuidade, de acordo com os jornais e os gender studies…, mas nós devemos acreditar neles?
Diante da prova do desejo do Outro
A terceira perspectiva foi elaborada por Lacan entre 1956 e 1959 nos seus Seminários A relação de objeto, As formações do inconsciente e O desejo e sua interpretação[8], e em seu texto de 1958 “A significação do falo”, no qual propõe uma solução superior à querela do falo. Ele faz deste último um terceiro termo, que vai ser o eixo em torno do qual pode se operar uma repartição dialética entre homem e mulher. Mas que falo é esse do qual se pode dizer, respondendo a Freud, que os fatos clínicos “demonstram uma relação do sujeito ao falo que se estabelece sem considerar a diferença anatômica entre os sexos”[9]? Este terceiro termo é o falo como significante, significante do desejo do Outro. Segundo Lacan, a posição estrutural inicial da criança é a de querer ser o falo para satisfazer o desejo da mãe, e não que ela queira tê-lo ou que consinta ou não em tê-lo ou não tê-lo. É isso que ele chama de “a prova do desejo do Outro”, a respeito da qual dirá que “a clínica nos mostra que ela é decisiva, não porque o sujeito aprende se ele tem ou não o falo real, mas porque ele aprende que a mãe não o tem”[10]. Essa “prova” se apresenta, portanto, como a via de construção de um objeto inexistente, da presença de uma ausência. O encontro com o “falo da mãe” designa um momento essencial do tratamento da criança, em que se repete na transferência esse enigma do O que ele quer de mim? que será o motor do tratamento. Ele também designa o momento em que “o sujeito descobre que o Outro não sabe”[11].
Mas se esse falo assume possivelmente toda a responsabilidade do que há de sexual na diferença, e se, para responder “a esse falo, o que a criança tem não vale mais do que o que ela não tem”[12], então o que ela tem para oferecer? E como fica a pulsão sexual, seus objetos e os acontecimentos do corpo que deixam traços de seu impacto, todas essas coisas que escapam ao Outro e que estão no fundamento da solidão e da diferença?
Como se inscrever no discurso sexual?
A quarta perspectiva toma forma no ensino de Lacan dos anos 1970-1972 – Seminários 18 e 19 [13]– no curso dos quais ele reformula as coordenadas da inscrição de cada ser falante no que ele chama nesta oportunidade de “o discurso sexual”. Todas as perspectivas precedentes estão presentes e, no entanto, nada é igual. O que mudou?

Autor: Brien Scott
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Distribuição e distinção
Lacan parte de uma constatação: “de modo algum precisamos esperar pela fase fálica para distinguir uma menina de um menino; já muito antes eles não são iguais, em absoluto. E aí nos deslumbramos”[14]. Há certamente uma diferença, mas esta não é “sexual”, pois se houvesse diferença sexual, ela estabeleceria com efeito uma relação entre os dois sexos, uma relação de diferença. Essa dita “diferença” responde ao fato real de que “na idade adulta é próprio do destino de seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres”[15]. É uma distribuição, não anatômica, mas de puro semblante: “o que define o homem é sua relação à mulher, e vice-versa”[16]. Enquanto nomeados “homem” ou “mulher”, eles não têm outra existência, que significante. Estes são os semblantes por excelência. E é assim que eles se abordam, como os sites de encontro exploram tão bem.
Fundando-se sobre essa “distribuição” entre homem e mulher, é que meninos e meninas se distinguem e, mais precisamente, que “são distinguidos” no discurso, desde que chegam ao mundo. É isso que faz com que “essa diferença que se impõe como inata é, com efeito, muito natural”[17], dirá Lacan. O que é gravado como diferença é, em sua essência, uma distinção, como um título de nobreza ou uma citação insuportável: existem as “eminentes mulheres” e os “eminentes homens”. De onde vem, então, que essa distinção de puro semblante adquira para o sujeito valor real de gozo sexual?
Solidariedade dos semblantes
J.-A. Miller destacou em seu texto “Em direção à adolescência” a expressão de Lacan “a imiscuição do adulto na criança” para destacar “Há uma espécie de antecipação da posição adulta na criança”[18]. Nós a aplicamos aqui a esta distinção menino/menina, que se opera a partir da repartição no andar superior homem/mulher.
Um primeiro aspecto dessa imiscuição é que as identificações sexuais são sempre dependentes de semblantes: tudo o que vai tentar dar consistência a uma identidade sexual, viril ou feminina, se verá inevitavelmente desdobrada na dimensão da mostração ou da mascarada. Eis a dimensão chamada, hoje em dia, de “gênero”.
A outra dimensão, mais fundamental, repousa sobre o fato de que, do lado do adulto, o gozo dito sexual se encontra “solidário de um semblante”. Assim, numa “situação real”, isto é, cada vez que o sujeito é convocado como homem ou mulher, esses semblantes têm uma eficácia real, que se produz como obstáculo entre os dois.
Há uma forte tese de Lacan: no encontro dos corpos sexuados, “o real do gozo sexual enquanto destacado como tal, é o falo”[19]. O falo é aqui o “obstáculo” feito à relação entre os sexos e, portanto, “à bipolaridade sexual”[20]. Ele não é o nome do gozo sexual na relação de um sexo a outro – essa é a promessa da pornografia, que substituiu a fantasia –, mas de preferência o index do gozo sexual enquanto ele se interpõe entre um sexo e o outro. O falo aqui perde seu estatuto de significante da presença do sexual, mas ganha sua função de significado do gozo: é o efeito surpresa do tratamento analítico, segundo Lacan.
A imiscuição do adulto na criança é o fato de a criança ser conduzida para receber uma distinção e a se distinguir menina ou menino em função deste semblante constituído na idade adulta segundo uma outra lógica e outra economia de gozo, distinta daquela que prevalece na infância. Como ela vai levar isso em consideração, se ainda não lhe é pedido para acertar o “preço que terá adquirido, na continuação, a pequena diferença”?[21] Fica estabelecida aqui uma solidariedade de semblante entre as gerações, solidariedade que indica e encobre ao mesmo tempo o real do gozo em jogo e que confere consistência à estrutura familiar, sob suas modalidades tão diversas. A família aparece, assim, tanto como o lugar onde se transmite a falha do sexual, como o lugar em que ela se mascara, sem a mediação do Édipo, mas não sem a castração, aqui castração do gozo.
Nosso acolhimento e nosso trabalho junto às famílias atuais poderão esclarecer sobre o que se elabora neste lugar. Indica-se a constância da dimensão de “religião privada”, que pode fornecer uma consistência a cada uma: ao mesmo tempo, mostração do gozo e ritos que o sacrificam com o propósito de lhe perpetuar a existência. Mas é também a possibilidade ofertada aos homens e às mulheres do século para não se apagar ou se esconder atrás das figuras da paternidade, da maternidade ou da parentalidade. Unicamente isso pode abrir caminho à novas maneiras de ser pai e de ser mãe, standard prévio, o que não acontece sem angustiar aqueles e aquelas que aí se engajam.
A crise do falo
Meninos e meninas são distinguidos a partir de uma escolha de gozo, que determina as posições homem e mulher, e que faz passar por uma repartição significante: é o que Lacan chama de “o erro comum”[22]. Este erro introduz a todo momento na subjetividade uma situação de “crise”, isto é, de escolha. Lacan, nesse ponto, retoma as coordenadas freudianas de fase fálica para extrair a lógica. “A verdade com a qual não há um desses jovens seres falantes que não tenha de se confrontar é que existe quem não tenha falo. É uma dupla intrusão na falta, porque existe quem o tenha, e ainda por cima, essa verdade faltava até então”[23]. O que há de novo deve ser situado na dimensão de acontecimento no campo da verdade: “É que a uma nova verdade não podemos contentar-nos em dar lugar, porque é de assumir nosso lugar nela que se trata. Ela exige que nos mexamos”[24]. Nessa perspectiva, a dita crise não é cronológica, mas lógica, no sentido de que é sempre atual. Não nos habituamos, não há idade para ela. Esta dupla intrusão da falta é ativada a cada vez que o sujeito tem que tomar lugar em uma “situação real” em que seu desejo e seu gozo estão implicados, em que ele é confrontado com o enigma do desejo do Outro ou com a insistência de sua demanda, com o seu amor ou seu ódio, ou com a presença de seu gozo, que esta situação real o concerne, direta ou indiretamente, por identificação a um terceiro.
A crise da fase fálica pode então ser considerada como uma crise do próprio falo, que no momento em que ele passa a semblante, torna-se instrumento da função castração para o ser falante cada vez que sobressai o ganho de sua identificação sexual, adulto ou criança.
Identificações e sintomas
Uma identificação sexual, quer seja a de “menina” ou a de “menino”, “homem” ou “mulher”, não é sempre uma identificação de crise? Três razões para isso:
– ela é instável, pois projeta o corpo falante no universo dos semblantes, o que não se opera sem perda, uma perda sem garantia, que se nomeia “castração”;
– ela é sempre atual, no sentido de se operar a partir de uma escolha hic et nunc;
– ela é sempre sintomática, na medida em que os semblantes convocados fracassam em inscrever o gozo em jogo, gozo sexual sempre em excesso na economia de gozo do corpo próprio; ela destaca a discordância entre os semblantes e o gozo.
Não seria nesse momento de crise que a psicanálise ou o praticante são solicitados por um desses distúrbios da criança que proliferam hoje sob denominações que são a roupagem dos experts? Nós não teríamos que fazer ressoar o valor da inibição, do sintoma ou da angústia para a criança? Estes diversos distúrbios não seriam com efeito respostas e defesas face a este momento de crise, em que se vê abalada a identificação fálica que sustentava até então esta criança? Devemos considerar que esta identificação fálica – sempre disponível no tempo da infância e atualmente privilegiada no seio da família e no discurso corrente – permite realmente a uma criança se manter à distância das questões da identificação sexual? Não deveríamos considerar de preferência a crise do falo como o momento fundamental em que se sintomatiza a vida da criança, em que ela começa a aprender o regime sinthomático de sua inscrição no discurso sexual? “A identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas em levar em conta que existem mulheres, para o menino, e que existem homens, para a menina”[25]. Manifestamente há muitas maneiras de levar isso em conta e o fato de que não são de nenhuma forma normatizados.
Eis o novo deal, no qual estão engajados meninos e meninas, doravante mais diretamente confrontados com os embaraços da castração, tais que encarnam para os homens e para as mulheres que vivem no entorno e os acolhem. Esta falha adquire nome na língua que é falada à criança e na qual ela é falada – o nome de “diferença sexual” –, correndo o risco de todos os mal-entendidos e erros. Nós não os denunciamos como sendo ficções, bem ao contrário, e acolhemos como tal as ficções da criança que nos fala, ficções que carregam a marca da diferença absoluta que elas contêm, sempre sexual.
No texto “A criança e o saber”, J.-A. Miller nos apresenta o vetor que guia nossa ação: “Pertence ao Instituto da Criança restituir o lugar do saber da criança, disso que as crianças sabem”[26]. Para os dois próximos anos iremos, portanto, nos informar sobre o que as crianças, meninas ou meninos, sabem da diferença sexual, do que querem ou não saber a respeito, e do que podem ou não podem saber.
Texto estabelecido por Hervé Damase e Frédérique Bouvet, relido pelo autor.
Tradução e revisão: Cristina Vidigal, Ana Lydia Santiago e Ana Helena Souza.
[1] Miller, J. A. (2000). Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, 26/27, 87-105. São Paulo: Eolia.
[2] Freud, S.(2016 [1901-1905]). Obras completas, volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos. Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, p. 14.
[3] Freud, S.(2011 [1923-1925]). A organização genital infantil. In: Obras completas, volume 16: O eu o id, “Autobiografia” e outros textos. Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, p. 168.
[4] Freud, S.(2011 [1923-1925]). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In: Obras completas, volume 16: O eu o id, “Autobiografia” e outros textos. Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, p. 283.
[5] Freud, S. (2010 [1930-1936]). A feminilidade & Sobre a sexualidade feminina. In: Obras completas, volume 18: O mal estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, p. 283 e p. 371.
[6] Cf. Hamon M.-C. (1992). Pourquoi les femmes aiment-elles les hommes?, Paris: Seuil & Feminité Mascarade, études psychanalytiques reunies par M.-C. Hamon, Paris, Seuil, 1994. Tradução Livre.
[7] Lacan, J.(1998). A significação do falo. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 693. (Sobre isso, ler os dois artigos de referência de Pierre Naveau: “La querelle du phallus”, La cause freudienne no 24, janvier 1993, p. 12-16, e “La comédie du phallus”, La cause du désir no 95, avril 2017, p. 25-32).
[8] Lacan, J. (1995[1956-57]) O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; Lacan, J. (1999[1957-58]) O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor e Lacan, J. (2013[1958-1959]) O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[9] Lacan, J.(1998). A significação do falo, op. cit., p. 693.
[10] Lacan, J.(1998). A significação do falo, op. cit., p. 701.
[11] Miller, J.A. (2016). “Interpretar a criança”. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (72). São Paulo: Eolia, p.18.
[12] Lacan, J.(1998). A significação do falo, op. cit., p. 701.
[13] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor & Lacan, J. (2012[1971-72]) O Seminário, livro 19:…ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[14] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 30.
[15] Ibid., p. 30.
[16] Ibid., p.30.
[17] Lacan, J. (2012[1971-72]) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 15.
[18] Miller, J.A. (2016). “Em direção a adolescência”. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (72), março de 2006. São Paulo: Eolia, p.23.
[19] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , p. 33.
[20] Ibid., p. 62.
[21] Lacan, J. (2012[1971-72]) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 16.
[22] Lacan, J. (2012[1971-72]) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 17.
[23] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 33.
[24] Lacan, J.(1998). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 525.
[25] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 33.
[26] Miller, J.A (2011). “A criança e o saber”. Disponível em http://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital11.pdf p. 8
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O buraco negro da diferença sexual
by cien_digital in Cien Digital #23, Hífen

Autor: Brett Sayles
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Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant
Marie-Hélène Brousse
Daniel Roy realizou com afinco o ordenamento dos avanços sucessivos, desde Freud até Lacan, sobre este tema “A diferença sexual”. Construiu o quadro tal como ele se desdobra hoje na Orientação lacaniana implementada por Jacques-Alain Miller com a ajuda de uma bússola, o gozo, conceito delicado. Ele o fez introduzindo em sua abordagem as mudanças importantes que tiveram lugar no discurso do mestre e seu avesso, o discurso analítico. Ele nos mostrou como Lacan, tão sensível às mudanças na modernidade, chega a antecipar movimentos no discurso do mestre antes mesmo deles aparecerem, demonstrando com isso a força preditiva da psicanálise quando a clínica se alia à lógica e à topologia. Diante disso, encontrei-me livre para introduzir algumas pistas de pesquisa suplementares para os próximos dois anos.
A diferença: potência do binário
Sexual ou não, pequena ou grande, a diferença é um dos fundamentos da ordem linguística. Ela opera, pois antes de tudo é uma operação de separar e ligar, ao mesmo tempo. Constitui pares que permitem, seja de maneira metonímica, seja metafórica, um ordenamento dos significantes, das palavras, dos conceitos, das imagens, dos sons. Basta ler J.-A. Miller[1] e se dar conta da potência da diferença e, logo, dos binários, para colocar ordem no simbólico. É assim que o laço social opera e todos os negócios humanos podem se reduzir a ele.
O discurso estende, de fato, a operacionalidade da diferença inicialmente à ordem social, à família, mas de forma mais geral a todas as estruturas institucionais: os vivos/os mortos, os ricos/os pobres, os oprimidos/os opressores, os bons/os maus, e, last but not least, os homens/as mulheres.
Mas a diferença é também um modo de satisfação que produz gozo, tanto se afirmando – pois cada falasser goza de sua diferença –, quanto se apagando. É então o gozo da mesmice, aquele do “nós” contra os outros, fraternidade que Lacan mostrou estar no fundamento do racismo[2]. A mesmice está também no fundamento do machismo. Da ordem diferencial, resvala-se para a ordem segregativa. Não há segregação que não se prenda a uma diferença atribuída aos modos de gozo. A diferença, que funda a ordem simbólica e alimenta as satisfações imaginárias, tem efeitos de real.
A diferença sexual, classicamente binária, passa por uma desordem inédita. Um certo número de movimentos de opinião tenta arrancá-la do binário S1 – S2 para pluralizá-la – LGBT – ou apagá-la: recusa do gênero ou exigência do neutro. Uma das tendências da época consiste em privilegiar o ou inclusivo – ou a, ou b, ou os dois – em detrimento do ou excludente – ou a, ou b, mas não os dois. Contudo, “gênero obriga”[3], correlativamente a esses movimentos emancipatórios, se desdobra também, em reação, um movimento conservador que se afirma contra na vida política mundial: Bolsonaro, Trump, a ascensão de religiões e de seitas. Viu-se, na França, esse movimento se manifestar contra o chamado “matrimônio para todos”[4], retornando às representações da diferença sexual tradicionais do patriarcado.
Todo o ensino de Lacan aborda a questão da diferença sexual nos seres falantes, não a partir da natureza, mas da linguagem e do sujeito. Essa mudança radical de ponto de vista diferencia o falo do pênis, logo, o significante do órgão, e culmina no Seminário 20, mais, ainda. Passagem do sujeito ao corpo falante, a diferença cessa de ser organizada pela ordem binária e cede lugar a uma oposição não binária entre o Todo, incluindo todos os seres falantes de qualquer gênero que sejam, e o não-todo, que precisamente não permite mais à diferença binária consistir.
Mas não tão rápido! Partamos da clínica com crianças, que ainda nasce com frequência na estrutura familiar tradicional. D. Roy termina seu texto com esta indicação dada por J.-A. Miller em sua intervenção pronunciada por ocasião da primeira Jornada do Instituto da Criança: “Cabe ao Instituto da Criança restituir o lugar do saber da criança, disso que as crianças sabem”[5]. Oriento-me por essa recomendação, que confere aqui ao genitivo seu sentido revolucionário, seu sentido próprio, e, por consequência, confere ao Instituto da Criança seu poder. Não o que nós – psicanalistas, adultos – sabemos das crianças, mas o que aprendemos da boca das crianças. Eis a revolução psicanalítica operada por Freud com as histéricas. Lacan aplicou essa fórmula da extração do saber pela clínica analítica ao pé da letra, ao longo de toda sua trajetória.
Mutação das estruturas de parentesco ou a segunda morte de Laio
Um analisante relata em sessão o que acabara de lhe acontecer. Em uma manhã de domingo, estando na cama com sua esposa, na intimidade de seu quarto, conversando de maneira descontraída, chega o filho caçula e, colocando-se ao pé da cama, lhe lança: “Você, você vai ter uma surpresa”, e retorna para seu próprio quarto. Volta depois com sua espada de plástico e, sem dizer uma palavra, assenta o golpe mais forte que pode sobre o edredom perto dos genitais de seu pai. Versão moderna do Édipo, fundamento da estrutura psíquica freudiana e da psicanálise. Surpresa de Laio, todavia em análise!
Acrescentemos um outro elemento: no início dos anos 1980, trabalhando com aquelas que ainda não eram chamadas de professoras de escolas, que haviam trazido desenhos de seus alunos da escola materna como documentos de trabalho, elas se questionam observando que “homem” e “mulher” não eram palavras utilizadas pelas crianças da escola materna para designar a diferença dos sexos – hoje diríamos de gêneros –, porque a língua, se prestarmos a devida atenção que ela requer na prática da psicanálise, é o saber não sabido. A diferença que aparecia era entre “pai” e “mãe”: havia os papais e as mamães e não os homens e as mulheres.
Estas duas vinhetas clínicas me levam a considerar que o discurso do mestre mudou. Por um lado, o gênero suplantou o sexo, por outro, como Lacan destaca em várias ocasiões, o pai e o patriarcado sofreram declínio evidente nas sociedades uniforme e globalmente organizadas no presente pela economia capitalista, avassalando o nome ao objeto. No nível jurídico, por exemplo, o direito substituiu “pai” e “mãe” por “pais” e a noção de “parentalidade” modificou a repartição da autoridade na família. Sem esquecer os “direitos da criança”.
A “parentalidade” assim como o matrimônio dito “para todos”, manifesta uma mutação das estruturas de parentesco e, por conseguinte, dos laços familiares. Passamos a um universal que pode se enunciar pela fórmula “para todo pai”, qualquer que seja seu sexo e seu gênero. Que saber novo surge na criança que está confrontada com essas mutações?

Autor: Matthew Henry
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No tempo da ordem de ferro do social, onde se aninha a diferença sexual?
Em 1973, em Televisão, Lacan afirmava que “a ordem familiar só faz traduzir que o Pai não é o genitor e que a Mãe permanece contaminando a mulher para o filhote do homem”[6]. Ainda é o caso? As crianças de 2021 recobrirão ainda o homem com o Pai e a mulher com a Mãe? Como Lacan antecipa no Seminário 21, “Les non dupes errent”, usando “o nó borromeano como um algoritmo”, “a ordem de ferro no social” substituiu a ordem patriarcal familiar[7]. Adeus pai e mãe, saudações parentalidade: a castração foi deslocada. A função fálica está paradoxalmente submetida, do lado das identificações, seja ao órgão – identificação imaginária –, seja ao gênero – novas versões da nomeação, que se tornaram autonomeação. A única coisa que permanece estável é a própria diferença como função engendrada pela linguagem e, portanto, o real da escolha que é a definição mínima da castração.
Resta à criança, que se tornar o fundamento e não mais o efeito da família, escolher seu lugar em uma diferença que se pluralizou. Qual escolher? Como a criança faz essa escolha? Sou um homem? Uma mulher? Um ou uma bi? Um ou uma trans ou um cis? Uma ou um hétero, homo? etc.
Duas observações. A primeira sobre esse ponto de linguagem, pois, finalmente, apenas esta não está submetida à escolha: hoje, a formulação aceita não é mais transexual, mas transgênero. Isso marca que “trans” toca o ser de discurso e não a falta-a-ser, que é a consequência da dominação da linguagem sobre o corpo na medida em que ele fala. Segunda observação: é válida a tese de Lacan segundo a qual as minorias têm a seu cargo as mutações dos modos de gozar dos seres falantes. O termo heterossexualidade surge na língua depois de homossexualidade e o cisgênero depois do transgênero. A criança como um “perverso polimorfo” é, portanto, totalmente designada como inventora.
Os engodos do falo e as satisfações singulares
A partir de então, não cabe utilizar o termo “função fálica”. A diferença sexual, desde Freud, de maneira mais ou menos feliz, foi abordada a partir do termo falo, quando não era simplesmente reduzida à anatomia do macho, isto é, ao pênis. Neste caso, ela repousa sobre uma foraclusão da anatomia da fêmea. Ernest Jones e outros se debateram a partir dessas premissas[8]. Pierre Naveau dedicou um estudo considerável a esse período da teoria analítica[9].
Em seu curso de 2008-2009, intitulado “Coisas de fineza em psicanálise”, J.-A. Miller afina os pontos com rigor[10]. Ele concretiza a expressão de Lacan nos Escritos[11]: “o heteróclito do complexo de castração”, termo que prefere, neste período de seu ensino, ao clássico termo de complexo de Édipo. O falo é um “metassignificante” que reenvia desordenadamente ao “fluido vital”, a um “significante imaginário”, a um “significante simbólico”, um significado, uma significação, um sacrifício, um símbolo, um signo, um órgão, e outras coisas mais. Como assinala J.-A. Miller, “o mundo libidinal que Lacan criou, ele o fez girar em torno de um significante: o falo. Isso foi expressivo para todo mundo. E como! Tão expressivo que esse significante é imaginário”[12]. O falo diz muito para todo mundo e agita os psicanalistas. Do ponto de vista do trabalho clínico, é no melhor dos casos a exploração do princípio do mal-entendido, fundador da palavra, e no pior dos casos um véu de ignorância. É por isso que J.-A. Miller reduz o heteróclito deste metassignificante a um valor: o valor “menos” que faz limite ao gozo e, portanto, torna possível o desejo. Depreende-se claramente a razão pela qual Lacan optou por “complexo de castração” de preferência a “complexo de Édipo”.
Os chamados complexos e o falo em sua definição heteróclita foram e são razão de deslizes e prejulgamentos que intervêm em certas posições antiquadas e mesmo reacionárias da psicanálise freudiana, depois pós-freudiana e até lacaniana. Lacan sempre se absteve de tais deslizes no discurso do mestre, ao contrário de alguns de seus alunos, como Françoise Dolto. Deste modo, ele sempre diferenciou o sujeito do indivíduo e do eu. Ele desumanizou o pai reduzindo-o ao nome – o Nome do Pai – e assimilando-o à função metafórica, e a mãe, reduzindo-a ao desejo. Nunca deixou de lembrar que essa operação, que tocava as bases do simbólico em psicanálise, era uma das razões de sua excomunhão do mundo analítico da época, e a razão pela qual ele nunca retomou o Seminário intitulado “Os Nomes do Pai”, que foi interrompido pela SAMCDA e seu “ar patrimonialista”[13].
Se, como faz J.-A. Miller, reduzimos o falo ao signo menos, a esse valor comum que permite aos corpos falantes entrar no comércio e no intercâmbio, como abordar a diferença sexual, a não ser pela singularidade dos modos de gozar? Em uma época em que o estatuto da criança na família mudou, em que, de produto, ela se tornou fundamento, como a criança aborda a falta, esse “menos”, inevitável, consequência da linguagem sobre o corpo e o laço de discurso? A escolha de seu modo de gozo singular, como a criança fala disso?
Mutante ou híbrido? As teorias sexuais infantis
Duas outras vinhetas clínicas mostram a potência do saber que as crianças inventam.
Uma menina que, desde seus dois anos de idade, havia impressionado seus familiares próximos pelo fato de que, para afirmar sua feminilidade, exigia vestir vários vestidos uns sobre os outros, na lógica de fazer de si mesma o fetiche, e que ganhara de presente de seis anos um pequeno caderno com um cadeado – Diário de uma Princesa –, rentabilidade capitalista do conto de fadas. Um ano ou dois mais tarde, o objeto, abandonado, cai nas mãos de um adulto curioso. Alguns desenhos, mas, escrita em páginas e páginas, a seguinte frase: “O príncipe encantado é um idiota”. Droga! Eu não sabia, mas deveria. É óbvio. Ele serve apenas para acordar a Bela Adormecida. Isso lembra o filme Kill Bill de Tarantino, no qual o nome da heroína é enredado na trilha sonora: estando adormecida em um coma profundo, devido a uma bala alojada na cabeça por um tiro dado pelo homem que ela ama, seus “favores” são negociados pelos cuidadores. Um dia, a bela adormecida acorda subitamente e está na pele dessa versão capitalista do Príncipe encantado, um idiota como apreendi tardiamente. Esses contos, mitos portanto, a quais estruturas reenviam?
No Seminário 18, Lacan começa seu desenvolvimento das fórmulas da sexuação, e, no capítulo VII, que J.-A. Miller intitulou “A parceira desvanecida”, afirma, ao falar de suas trocas, ou melhor, da sua recusa em intercambiar com Simone de Beauvoir o título que ela escolhera – O Segundo sexo –, dizendo que “não há segundo sexo”[14]. Ele define a sexualidade como uma função: “A função que é chamada de sexualidade se define, até onde sabemos alguma coisa sobre ela – e realmente sabemos um pouco, nem que seja por experiência –, pelo fato de os sexos serem dois […]. Não existe segundo sexo, a partir do momento em que entra em funcionamento a linguagem. Ou, para dizer as coisas de outra maneira, no que concerne ao que é chamado de heterossexualidade, o heteros, palavra que serve para dizer “outro” em grego, está na posição de esvaziar-se como ser para a relação sexual. É precisamente esse vazio que ele oferece à fala que eu chamo de lugar do Outro, ou seja, aquele em que se inscrevem os efeitos da referida fala”.[15] Pois então, dois ou não dois? A lei da diferença, que é a lei da articulação S1-S2, ainda é válida?
Esta mesma menina, conversando com seu irmão um dia, lhe atira um saber: “Você sabe, não há apenas meninas e meninos.” O irmão fica surpreso. “Há também as ‘meninasmeninos’ e os ‘meninosmeninas’. Eu sou uma ‘meninamenino.” O irmão responde secamente que para ele estava fora de questão situar-se na classe dos ‘meninosmeninas’. O diálogo se detém aí. Não há relação entre os sexos, mesmo multiplicando as classes e tentando ampliar as categorias. Por quê? Tenho uma ideia. Não é, me parece, em uma reiteração da fórmula A mulher não existe que se deve pesquisar, porque é claro que O homem não existe. Ninguém escapa do fato de que, desde que se começa a falar de diferença sexual, somos conduzidos pelo discurso a falar em termos de universal: “os” homens, “as” mulheres e “os” outros. Em suma, não saímos do universal, que se caracteriza pela verdade mentirosa e pelo sentido, infelizmente o mais comum possível, isto é, dominante. Na e pela linguagem, a sexualidade passa pelos desfiladeiros da palavra e todo locutor se encontra no quadro da sexuação que figura no Seminário mais, ainda do lado das duas fórmulas da sexuação, lado homem: existe um x tal que não phi de x e para todo x, phi de x[16].
Para caracterizar os efeitos da diferença sexual sobre o discurso e a fala, pode-se utilizar o modelo do buraco negro tal como os astrofísicos o definem no quadro da teoria da relatividade. Tudo o que entra no interior do buraco negro – toda a informação, toda a matéria –, é assimilada ao buraco negro, o qual é caracterizado apenas por três elementos: sua massa, sua quantidade de rotação e sua carga elétrica. Todos os objetos que caem nele se tornam inacessíveis. Desde o momento em que se entra no campo da diferença sexual, tudo o que define a singularidade dos modos de gozar e das posições subjetivas torna-se inacessível. O binário homem/mulher neutraliza todas as outras diferenças e torna inacessíveis os corpos falantes na contingência e na não universalidade de sua organização. O lado dito feminino, destacado por Lacan, é uma tentativa de tornar acessível o que não é lado homem, regido pelo regime de uma exceção e de maneira alguma universal. Lado feminino, a diferença sexual torna-se totalmente “assimétrica”[17]. O feminino só é pensável se se exclui toda ideia de complementariedade, de inclusão ou mesmo de contradição.
É certo que a diferença sexual só pode se formular no campo da identificação e da fantasia. Ser classificado por gênero só é possível do lado da lógica do todo e da exceção fálica. “O homem, o macho, o viril […] é uma criação de discurso.”[18]. Acrescentemos, A mulher também é uma criação de discurso, em função de Phi, entendido como medida do valor. A propósito, pode-se generalizar a fórmula A mulher não existe ao Homem. O sexo é o efeito de um dizer. Quais palavras, hoje, as crianças escolhem para dizer de seu pertencimento? Elas têm teorias sexuais novas?
A diferença é (a)sexuada: as diferenças ligadas à contingência
A diferença sexual do lado do gozo está ligada aos objetos mais-de-gozar ou objeto a. O que a diversifica em função da dominância de tal ou qual objeto; dominância cuja origem está ligada às marcas contingentes na história do sujeito, mas que, justamente por ser dominância e fixação, gera uma repetição e, portanto, uma necessidade.
Esses objetos têm um elemento em comum que, desde Freud, a psicanálise cerniu. Eles estão ligados aos orifícios do corpo, à passagem apreendida inicialmente como passagem do interior ao exterior do corpo. Os objetos permitem ao imaginário tornar-se uma superfície com borda.
A consequência disso é que, ligada aos orifícios do corpo próprio, a sexualidade é essencialmente autoerótica, mesmo se esses objetos são colocados no Outro. Pode-se ler a ascensão atual no laço social do discurso que submete a condições cada vez mais estritas o gozo de um corpo por outro corpo, quando, ao mesmo tempo, a interdição ancestral sobre a masturbação desapareceu. A fantasia, motor do autoerotismo, sim, o ato, não. A difusão da pornografia, o império da imagem nas redes sociais, modificam – e se sim, como –, a abordagem feita pelas crianças da sexualidade? Um puritanismo cada vez maior, aliado a uma crueza de imagens cada vez maior e a uma liberação de palavras, levaria a uma modificação da relação do sujeito com sua (a)-sexualidade? As crianças são, hoje, perversas polimorfas ou antes puritanas?
E o amor?
No Seminário XXVI, “A topologia e o tempo”18, Lacan, em 1978, fala da possibilidade de um terceiro sexo, a partir de sua escolha pelo “borromeano generalizado”: “Não há relação sexual, é isso que eu enunciei porque há um Imaginário, um Simbólico e um Real, é isso que eu não ousei dizer. […] O que faz suplência à relação sexual? Que as pessoas fazem amor, há para isso uma explicação: a possibilidade de um terceiro sexo.” Enigmático, Lacan criando dificuldade para si mesmo, retorna a esse tema para afirmar que “esse terceiro sexo não subsiste na presença dos outros dois”, que estes sobressaem do forçamento, da dominação. Ele só depende, portanto, do amor.
O amor zomba da diferença sexual? Ele é, como para o ódio, o lugar do possível onde a diferença sexual cessa de se escrever, onde ela se anula em diferença absoluta? Cessaria ela, no campo do amor, de ser dual, classificatória e, portanto, segregativa? Que podem nos ensinar as crianças sobre o amor como acesso ao terceiro sexo?
Texto estabelecido por Hervé Damase e Frédérique Bouvet, relido pela autora.
Tradução: Nohemí Brown.
Revisão: Ana Lydia Santiago e Ana Helena Souza.
[1] Cf. Miller J.-A., «L’orientation lacanienne», ensino pronunciado no âmbito do Departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, inédito.
[2] Cf. O Seminário, livro 19:…ou pior, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 2012, p. 227.
[3] N.T: A expressão faz referência ao proverbio francês “nobreza obriga” [noblesse oblige], que teve origem na 51ª das Máximas e Preceitos do Duc de Lévis (1808), significando que, depois do nobre, por extensão, todo personagem deve se conduzir conforme a sua categoria.
[4] Ver: Du mariage et des psychanalystes, Paris, Navarin/ Le Champ freudien/La règle du jeu, 2011.
[5] Miller J.-A., A criança e o saber, Cien Digital 11, janeiro de 2012, p. 8.
[6] Lacan J., Televisão, Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 2003, p. 531.
[7] Lacan J., Le Séminaire, livre XXI: «Les non dupes errent», leçon du 19 mars 1974, inédito.
[8] Jones E., La phase précoce du développement de la sexualité féminine, La phase phallique, Psychanalyse, n 7, 1964.
[9] Naveau P., La querelle du phallus: 1920-1935, tese realizada sob a direção de Jacques-Alain Miller em 1988 no Departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, inédito.
[10] Miller J.-A., Perspectivas dos Escritos e Outros escritos. Entre desejo e gozo. Decima Terceira Lição, 1 de abril de 2009. Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2011.
[11] Lacan J., Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1998, p. 835-6.
[12] Miller J.-A., Perspectivas dos Escritos e Outros escritos. Entre desejo e gozo, op. cit.
[13] SAMCDA: sociedade de assistência mútua contra o discurso analítico, cf. Lacan J. “Televisão”, op. cit., p. 518.
[14] Lacan J., O Seminário, livro 19: …ou pior, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 2012, p. 93.
[15] Ibid., p. 93.
[16] Lacan J. O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1985, p. 70 e seguintes. O universo fálico é sustentado em um elemento que está condenado a não ser submetido à função de castração.
[17] Lacan J., Le Séminaire, livre XII: «Problèmes cruciaux pour la psychanalyse», lição de 16 junho de 1965, inédito.
[18] Lacan J., O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1992, p. 57.
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GOZAÇÕES
by cien_digital in Cien Digital #23, Hífen

Autor: Mr Tt
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Claire Brissom
“O que é o assédio escolar na adolescência?” Tal é o título escolhido para uma conversação pública com os professores do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, iniciada em 2018 por um laboratório do CIEN, o Centro Interdisciplinar sobre a Criança. Nós visamos a noção de “assédio escolar”[1], que se tornou há alguns anos o principal instrumento para interpretar a violência da interação entre jovens. Surgido em torno dos anos 2010, este significante ganhou uma adesão incrível até a consagração, em 13 de fevereiro de 2019, de um “direito à escolaridade sem assédio escolar”, votado pela Assembleia Nacional. Este significante é revelador de um contexto político, dedicado a criar vastas categorias para nomear e objetivar o mal-estar social, sem perceber os efeitos auto-realizadores dos dispositivos de prevenção.
A conversação interdisciplinar em torno de situações práticas, discutidas caso a caso, revelou a inconsistência do binário assediador/assediado. Uma situação apresentada por um professor tutor do oitavo ano do Ensino Fundamental nos ensinou muito.
Recém-chegado em uma escola rural, o professor é interpelado por dois irmãos gêmeos que se queixam de serem tratados de “cocô de vaca” e de “bunda suja” por três rapazes da turma. Divertem-se de forma maldosa, verbalmente ou por SMS, com a ligação dos irmãos aos trabalhos da fazenda da família. Num primeiro momento, o professor tenta minimizar a situação, mas inventaram um rap do agricultor cujo refrão é conhecido na turma. As falas dos gêmeos nas aulas desencadeiam imitações sonoras e zombarias dos alunos; no recreio, são recebidos com mugidos. Isso persiste, apesar das reprovações e se intensifica quando os irmãos manifestam desespero.
A diretora convoca os autores das gozações. Virada teatral: quando o mais atrevido dos três é recebido sozinho, desaba e confessa ser ele próprio um alvo, pela sua obesidade e porque ele é, também, filho de agricultor – mas não de criador de gado, ele se apressa para especificar, que é filho de horticultor. Seu pai não trabalha “no rabo das vacas”, eles têm uma televisão, um vídeo game e ele não tem que trabalhar na terra do pai.

Autor: Pawel Czerwinski
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O professor se lembra de ter “caído da cadeira”, face à resposta desse rapaz. “O que fazemos agora?” – ele se interroga. Como tratar esse assediador assediado. Como abordar esta pequena diferença que ele formula para ser diferenciado dos mais “cocôs de vacas” do que ele? Aliás, o pai do rapaz se aborrece ao saber dos fatos. “Nada disso entre nós, somos gente da terra! Os inimigos não são eles!” – Isto se passa logo após os atentados terroristas de 2015, na França. O ideal paternal de um “nós” solidário do “gente da terra” comparava, manifestadamente e muito de perto, o filho ao estrume. No discurso do rapaz era preciso ressaltar a televisão e o vídeo game para aí se opor e instaurar, entre o criador de gado e o horticultor, uma outra segregação.
A decisão tomada pela instituição foi de não punir. Isso foi antes da lei sobre o assédio. Nós juntamos de um lado este rapaz, o mais implicado nas gozações, com o mais atingido dos dois gêmeos e, de outro, o segundo gêmeo, com os dois outros jovens. A dupla e o trio tiveram que produzir uma apresentação sobre o assédio, a partir de textos da lei vigente. Cada um se encarregou da proposta com seriedade. Os trabalhos, de qualidade, foram aclamados pela direção e o ano terminou sem nenhuma outra situação de assédio, sem outro incidente.
O efeito “cair da cadeira” seria hoje anulado pelo imperativo do protocolo e das punições. Um estágio de sensibilização ao assédio seria prescrito aos três “autores”, com a responsabilização dos pais pelas despesas e as “vítimas” seriam definitivamente identificadas como tais. Aqui, a situação foi tratada pela via de uma interpretação: não pela identificação de uns e de outros com papéis definidos a priori, não pela punição e a vitimização, mas, ao contrário, por um dispositivo que diferenciou “os gêmeos” um do outro, como também os “agressores”, uns dos outros.
Esta maneira de responder talvez tenha constituído, para cada um, uma solução pela contra-violência simbólica, sem reproduzir a lógica da exclusão que nós procurávamos prevenir.
Tradução: Analícea Calmon
Revisão: Ana Martha Maia
[1] No Brasil usa-se a expressão americana bullying.
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Argumento para a Jornada Internacional do CIEN novembro de 2013 • “Me inclui fora dessa”
by cien_digital in Cien Digital #14, Hífen
Tradução: Maria Rita Guimarães
A bússola que cada um inventa.
“Me inclui fora dessa”1 – disse um garoto durante uma conversação na qual ele é perguntado se quer participar de tal proposta. Suas palavras sintetizam de um modo quase paradigmático o ponto central de muitas das experiências do CIEN. Por um lado, nosso esforço em constatar as respostas de cada criança ou adolescente ao forçamento a uma pseudointegração, disfarçada de pertinência, chamada “etiqueta”. Por outro, a vontade de verificar o grau de sofrimento que, ocasionalmente, seu modo de responder a isso pode lhe causar: inibição, sintoma, angústia, desagregação, alvoroço, imobilidade…
Damos um passo além e nos perguntamos como abrir possibilidades, nos diversos lugares que habitualmente recebem as crianças e os jovens – escola, clube, família, outros, – a que os adultos se mostrem atentos, sensíveis ao discernimento dessas modalidades de recusa, convidando, esperando que se aproximem, cada um a seu modo, para construir sua própria maneira de fazer, aquela com a qual irá nortear sua vida.

Efraim Almeida
Se isso fosse uma tarefa simples não estaríamos em torno do assunto há muito tempo, buscando formas e alianças. Costumamos situar o problema nas condições de vida da época, mas corremos o risco de nos esquecermos de que chegamos a esse estado de coisas graças às “boas intenções” de bem-estar e progresso dos seres falantes que somos. A história da humanidade revela que a vontade de submeter o homem pelo homem vem de longe e toma, hoje em dia, a forma do etiquetado que marca, e quando há uma marca, essa se pode monitorar, classificar-se, multiplicando-se na sua tentativa de que nada escape a seu domínio. Num cenário como esse “o exagero está subvalorizado” – como observa um personagem do filme “The A-Team” (Esquadrão Classe A). As instituições que recebem crianças e adolescentes se organizam, em sua maioria, a partir do que se conhece como critérios e normas que apontam para a normalização e classificação do desempenho de todos – crianças e adultos responsáveis. Parecem bradar: vejamos se este exagero pulsional de alguns pode ser compartimentado! Etiquetá-los traz a ingênua ilusão de que assim os dominam. Nada mais longe da realidade: o mundo é o que é, mas tanto Freud como Lacan nos deixaram posições que subvertem essa vontade dominadora. Mas, para isso, é preciso saber observar, ouvir essa subversão à flor da pele. Razão pela qual não é tarefa fácil pois não estamos feitos para querer distinguir o que é particular ao outro. Pelo contrário, é moedacorrente pensá-lo como um sistema de classes, uma tipologia, o que nos impede de ver o mais real do outro.
Esta Jornada do CIEN propõe-se ao exercício de nos esburacar, nossas vendas, nossos protetores de ouvidos, para dar lugar às formas variadas, à “varidade”2, com as quais nos esbarramos cada vez mais.
Como a que elegemos para encabeçar essa jornada, “Me inclui fora dessa”: um oximoro que tem a virtude de mostrar a estrutura elementar de um uso possível das etiquetas: sirvo-me delas à condição de poder permanecer fora de seu império, de sua influência, de sua sujeição.
Esperamos por vocês na quarta feira, dia 20 de novembro de 2013.
Local: Hotel Panamericano – Hora: de 14 a 19 horas – Buenos Aires
Eixos de estudo e investigação propostos aos integrantes de Laboratórios do CIEN
Como orientação, localizamos os casos em que o afã normativizante e normalizante é evidente:
- no âmbito científico, no qual proliferam mecanismos de avaliação e classificação incessantes.
- no mercado, que oferece fabricação de medicamentos, protocolos e instituições especializadas “ao gosto do freguês”.
- com as políticas de gestão (em vários campos disciplinares, tal como o pedagógico), que multiplicam mecanismos de produção e aplicação de normas e regulações de forma ascendente.
E, os modos de averiguação das respostas das crianças, adolescentes e profissionais envolvidos, como tentativa de incluir-se fora do afã da ciência, da tirania do mercado, de uma política de pura norma. Como exemplo, crianças que dizem que não (como aquele que enuncia “Je ne veux pas”, no filme A infância sob controle), ou aquelas crianças chamadas de perturbadoras (que desorganizam a ordem e estado das coisas).
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Contribuições: “Me inclui fora dessa”
by cien_digital in Cien Digital #14, Hífen
Cristiana Pittella de Mattos
Primeiras elaborações
a-Notado: “Me inclui fora dessa”
O que me encanta na expressão – “Me inclui fora dessa”- anotada e proposta pelo CIEN1, é que ela, vinda da boca dos adolescentes, revela um desejo fundamental do ser falante.

Yuri Firmeza
A primeira dimensão desse desejo revela-se no apelo ao Outro: “me inclui”.
Procura-se, com esse apelo, um lugar no Outro; diferente do que encontramos comumente em algumas práticas ou sintomas dos adolescentes, em que o sujeito visa uma recusa ou mesmo uma ruptura com o Outro.
Embora haja um apelo ao Outro, esse apelo não é o de ser fixado, aprisionado por significações do Outro, pois a segunda dimensão desejante na expressão anotada, é aquela de uma separação: “fora dessa”.
Não se trata de ficar fora do campo do Outro: “Exclua-me dessa”, mas de estar nele – fazer parte –, com algo fora dele: com algo singular.
Como estar nele e fora dele?
Essa fórmula – “me inclui fora dessa” –, revela, portanto, um desejo de inserção colocando em jogo as duas dimensões da constituição do sujeito, a alienação e a separação.
Miller, em seu texto Sobre o desejo de inserção, delimita dois tipos de inserção do sujeito:
- a primeira como identificação, quer dizer, o sujeito se representa pelo S1. É o que Lacan chamou de Alienação, uma identificação rígida, fixa, que seria como morrer, no sentido hegeliano de que a “palavra mata a coisa”.
- Por outro lado, há um segundo tipo, que Lacan denominou Separação, em que há uma nova vida quando vem um S2 – o saber, que faz renascer o sujeito. Nesta operação se desprende do corpo um resto de gozo, cuja produção é o objeto (a). (MILLER, 2008)
A produção desse resto na operação de separação instaura uma topologia em que podemos conceber uma exclusão interna: ao se constituir como sujeito, esse está diante de uma escolha forçada: perde-se a possibilidade de se ter todo o sentido e todo o ser.
Podemos pensar que “me inclui fora dessa” nos direciona justamente para este ponto de exclusão interna.
Em Matemas II, Miller demonstra essa exclusão interna com o paradoxo de Russel como matriz da relação do sujeito com a cadeia significante (MILLER, 1988, p. 45).
Para tanto, Miller utiliza a história do barbeiro que barbeia todos aqueles que não barbeiam a si mesmos. Como se barbeia o barbeiro? (MILLER, 1988, p. 35)
- Se ele é o barbeiro que se barbeia a si mesmo, ele não é o barbeiro que barbeia todos aqueles que não se barbeiam: se ele é, não é.
- Se ele não é o barbeiro que barbeia a si mesmo, ele é o barbeiro que barbeia todos aqueles que não se barbeiam a si mesmo: se ele não é, ele é.
Essa expressão paradoxal que analisamos também foi, curiosamente, bastante utilizada há tempos – no entanto, com a correta colocação pronominal: “Inclua-me fora disso” –, pelo comediante estadunidense Groucho Marx (1890/1977) o mais criativo dos irmãos Marx.
- “eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”;
- “Vamos descobrir um tesouro naquela casa? – Mas não há nenhuma casa… – Então vamos construí-la!”;
- “Eu não posso dizer que não discordo com você”…
Verificamos como há uma “ambiguidade irresolúvel que está no fundo de toda piada”, nos diz Freud, e como “o humor não é resignado, mas rebelde” (FREUD, 1927) colocando em jogo um descentramento do eu, mas, também dos ideais reguladores da vida social.
Evocamos Groucho Marx e sua capacidade criativa pois nos perguntamos se nessa expressão “me inclui fora dessa” –, se presentifica uma dimensão espirituosa, dimensão do humor e com ele, o trabalho de desidealização do objeto e da sublimação, possibilitando uma certa socialização do gozo e integração ao laço social. (MILLER, 2009)
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Dentro e Fora
by cien_digital in Cien Digital #14, Hífen
Fernando Prado1
Resumo
O texto a seguir é o resultado de um diálogo entre um matemático e uma psicanalista. Sem nenhuma pretensão de rigor cientifico, o autor estabelece um paralelo entre conceitos da teoria das probabilidades e independência entre indivíduos.
Um dos conceitos mais importantes da teoria das probabilidades é o da independência de eventos. Dizemos que dois eventos A e B são independentes se, dado a informação sobre a ocorrência de um evento, não for possível obter mais informação sobre a ocorrência do outro. Por exemplo, considere o lançamento de duas moedas. Vamos denotar o resultado desse experimento por (x, y), sendo x o resultado da primeira moeda, e y, o da segunda. Para facilitar a notação, suponha que (x, y) = (1, 0) denote o resultado em que a primeira moeda é cara e a segunda, coroa, e assim por diante. Assim, o espaço de todos os resultados possíveis é S = {(1, 0); (1, 1); (0, 1); (0, 0)}.
Dado que o resultado da primeira moeda é cara, qual seria a probabilidade de observarmos cara na segunda moeda também? Não é preciso ser um especialista para aceitar que o resultado da primeira moeda não altera nossas avaliações sobre a probabilidade da segunda moeda resultar em cara. Nesse sentido, dizemos que tais eventos são independentes.

Liu Bolin
Curiosamente, o conceito de independência, embora bem diferente e, em certo sentido, até mesmo antagônico ao conceito de disjunção, parece se confundir com o último. Dizemos que dois eventos A e B são disjuntos se a intercessão entre A e B for vazia, isto é, se não existir nenhum resultado em comum a A e B. Tais eventos também são chamados de mutuamente exclusivos, no sentido de que a ocorrência de um implica a exclusão do outro e vice-versa. No caso do lançamento das duas moedas mencionado acima, os seguintes eventos são disjuntos: A = evento em que a primeira e a segunda moeda são caras (A = {(1, 1)}), e B = evento em que a primeira e a segunda moeda são coroas (B = {(0,0)}). De fato, a ocorrência de A exclui a ocorrência de B, e vice-versa. Agora, estes eventos não são (em nada) independentes, pois a probabilidade da ocorrência de um, dado a ocorrência do outro, é zero – muito embora a probabilidade incondicional tanto de A, como de B seja 1/4.
Um paralelo ao processo de identificação social me parece natural. Esse paralelo sugere que a independência entre grupos sociais não implica disjunção ou auto-exclusão das características que os definem. A independência, ao contrário, pressupõe certa medida de intercessão entre as partes, em que a proporção entre a intercessão e qualquer uma das partes envolvidas é a mesma entre qualquer uma das partes e o todo. No caso do lançamento das duas moedas vemos que o evento em que a primeira moeda é cara, é independente do evento em que a segunda moeda é cara, note a igualdade entre as proporções:

Análise Combinatória
Acima, Card A denota o número de elementos do conjunto A; por exemplo, Card {(1, 1); (1, 0)} = 2, pois o conjunto {(1, 1); (1, 0)} é formado de dois elementos: o par (1, 1) e o par (1, 0).
Uma forma de expressar independência numa relação implica, portanto, expressar certa medida de intercessaõ (não vazia) entre as partes envolvidas. Sob esse ponto de vista, um desejo de independência por parte de um adolescente pode ser acompanhado pelo pedido latente de inclusão de apenas uma parte (e não menos que essa parte) de suas características num determinado conjunto de valores, de tal forma que este se sinta independente dos mesmos. Muitas vezes, no entanto, a identificação é com o complemento, isto é, tudo menos o conjunto de valores proposto, correspondendo a um estado de total dependência entre as partes, como A e AC (onde AC = tudo que não pertence a A). Analisado por esse ponto de vista, o termo empregado por adolescentes “me inclui fora dessa” expressa justamente isso, o melhor “tudo menos isso”.
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Nota sobre o empuxo à hiperdisciplina
by cien_digital in Cien Digital #14, Hífen
Hérnan Gustavo Vilar – Buenos Aires
“Se pudesse simular o mais de gozar, isso manteria muita gente entretida.”
Jacques Lacan
O Mestre “sem cabeça” da Hipermodernidade
Gostaria de compartilhar com vocês uma citação de Michel Foucault que especialmente chama minha atenção: encontra-se na História da sexualidade, A vontade de saber, volume I: “… em matéria de ciências sociais, o rei ainda não foi guilhotinado.”
Com mais de trinta anos dessa afirmação, na chamada hipermodernidade, ocorreu-me perguntar a mim mesmo que terá sido da cabeça do soberano.
Efetivamente parece-nos que o rei foi decapitado, mas, surpreendentemente, vemos surgir do corte, como se fosse da Hidra de Lerna1, três cabeças: O Mercado, A Ciência e A Técnica. A coroa foi parar, como uma carapuça, na testa de uma soberana bastante volúvel e desorientada: A Opinião Pública.
Com semelhante Corte, é oportuno pensar nas características que o ordenamento, por via do direito positivo, passa a ter, em nossos dias, dos discursos imperantes. Uma legalidade baseada em evidência, acumulação de provas que via a digitalização, já não reconhece os limites de espaço e tempo.
A transparência, esta paixão da sociedade contratual, administrada pelos meios massivos de comunicação, torna-se invisível por seu excesso.
Assim a técnica, como política de forclusão da política, apresenta-se a nós, da mão das ciências e do mercado ao saber, como uma mercadoria a mais (Obsolescência programada2 incluída), no fluxo incessante dos gadgets oferecidos na era do “capitalismo sem fricções”.
O declínio das figuras de autoridade baseadas na experiência e sua substituição por modelos simulados de gestão reproduzível são solidárias das formas mais duras de segregação.
O ordenamento pelo direito dos discursos que se ocupam da Saúde Mental apresenta, nessa época, um traço particular que me interessa destacar: trata-se das “boas práticas standards”, baseadas na evidência calculável, mensurável, previsível, reproduzível.
A produção de provas positivas conduz à proliferação de perícias e peritos: aquilo que se chamou “a inflação das especialidades”, a promoção ilimitada de “saberes especializados”.
Nós que recebemos crianças e adolescentes em nosso consultório (ou em outros âmbitos de trabalho), somos requisitados com frequência a informar à escola, às instancias oficiais, aos tribunais e, ainda, às empresas de medicina pré-pagas e obras sociais, sobre o andamento de nossos tratamentos, com que frequência atendemos aos jovens, etc.

Rosângela Rennó
A subordinação aos protocolos de avaliação, tal como o mapa do Império de que falava Borges, não deixa de ter efeitos no Real.
Cada vez que nos juntamos para conversar com os professores ou com os responsáveis das equipes de orientação escolar, assinam-se atas, contribui-se a engrossar um dossiê que, às vezes, tem a força de um prontuário policial. Ex–maridos que disputam a guarda dos filhos solicitam perícias sobre as crianças ou as mães. Pais que, “exercendo seus direitos de usuários” dirigem-se a nós exigindo solução para problemas em relação aos filhos sobre os quais não reconhecem pouca ou nenhuma responsabilidade. Dirigem-se ao “douto especialista” como se esse fosse um técnico em eletrodomésticos, cobrando um “conserto garantido”.
Informações são acumuladas, histórias clínicas, diagnóstico multiaxiais, que contribuem para etiquetar esses sujeitos, e, pouco a pouco, empurrá-los a uma adaptação procustiana ou à sua segregação.
Gostaria de compartilhar com vocês uma citação de Michel Foucault que especialmente chama minha atenção: encontra-se na História da sexualidade, A vontade de saber, volume I: “… em matéria de ciências sociais, o rei ainda não foi guilhotinado.”
2 – Do assistencialismo ao clientelismo.
“Onde há uma necessidade, nasce um direito.”
Eva Perón
Durante boa parte do século XX, as reivindicações sociais dos setores historicamente mais desfavorecidos, ainda no seio do chamado mundo capitalista, estiveram orientadas pelo ideal do progresso e bem estar: poderíamos situar nesse contexto uma série de políticas cujo imperativo pode ser formulado do seguinte modo – “Se é necessário, deve ser possível.” Surgiram daí o que podemos chamar de dispositivos assistencialistas, cuja crítica excede os propósitos do presente trabalho. Limitar-me-ei a realçar que na busca de soluções “para todos”, muitas vezes o público avançava sobre o privado (campanhas obrigatórias de vacinação, programas compulsivos de controle de natalidade, barreiras sanitárias, penalização do consumo de substâncias, etc.).

Hans-Peter Feldmann
Com o fim da Guerra Fria e o predomínio das ideias neoliberais, o paulatino retrocesso do “estado de bem-estar social”, ocorreu a queda dos marcos reguladores, favorecendo, dessa maneira, o desaparecimento das fronteiras entre o público e o privado, à custa do “privatizado.”
Desse modo, muitas das gestões que os agentes do Estado foram abandonando ficaram nas mãos de diferentes fundações, ONGs, ou programas de “Responsabilidade Social” das empresas, que assim, aliviam sua carga fiscal.
Como muitos desses programas sociais são financiados por organismos multilaterais de crédito e, outras vezes, mediante angariação de fundos, devem garantir o sucesso e a reprodutibilidade de suas ações submetendo-as ao controle de comitês de avaliação, painéis de consenso de peritos e sustentar, por sua vez, políticas de fidelização através de associações de usuários que, muitas vezes, atuam como lobistas perante os poderes públicos.
Frequentemente encontramos na gestão pública diversas áreas que se terceirizaram: as consequências são idênticas.
Essa mudança nos modelos de gestão inverte o paradigma anterior: no mundo globalizado já não se trata de “se é necessário, é possível”. Hoje, o que é possível, deve ser necessário… já que os programas e soluções para todos se regem segundo as leis do mercado e os direitos se transformaram em direitos do consumidor.
Como a satisfação deve ser garantida, se um programa não funciona, ropõe-se outro e outro, como acontece com os planos de telefonia: o destinatário das ofertas que se superpõem, não é mais tomado como aquele de um programa de assistência, mas como cliente de um sistema.
Como bem postula a Teoria Geral dos Sistemas, todo sistema se autorregula: o problema é que essa autorregulação deixa de fora o contingente, arrasa o particular e, em seu movimento centrífugo, expulsa aquele que não se adapta. Isso vale tanto para os assistidos como para os profissionais envolvidos.
Em uma experiência recente, no sul de Buenos Aires, Beatriz Udenio e eu fomos consultados pelos responsáveis da articulação dos programas nacionais, estaduais e municipais destinados à reinserção social de menores com processos judiciais.

Ana Holck
Em um dos casos em discussão no trabalho – de uma jovem de dezesseis anos- haviam dezoito equipes intervindo. Certamente que, mais além de algum aspecto de anedota, a jovem em questão não deixava de ser um dado estatístico, uma apresentação em Power Point. O caso número 1, uma superposição de etiquetas policiais, judiciais, policiais, sociológicas, morais, etc.
Se bem havíamos sido convocados e apresentados como “experts”, a aposta foi “nos incluir fora” dessa etiqueta, o que nos permitiu abrir uma Conversação.
Ainda que se tratasse de um grupo muito grande e muito diverso de participantes, algo do que chamamos a prática entre vários pôde acontecer, pôde situar que existe o incurável, o ineducável, o ingovernável: produziu certo alívio nas tensões imaginárias e um relançamento do trabalho.
Esburacar-nos, dessa vez usando o oximoro “Me inclui fora dessa”, precipitado de uma rica experiência do CIEN brasileiro, permite-me ilustrar o modo fecundo que, em cada um de nossos encontros, nos deixa “um pouco transformados”.

Gutai
A época empurra-nos a um saber trans, hiperdisciplinar, um saber expert e assegurável, que se pode provar como “a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade”: os psicanalistas, estamos advertidos de que pela verdade se luta (se dan de a palos), que sempre é não-toda e que o saber é aquilo que cada um pode inventar com seu sintoma.
Diante desta banda de Möebius que une em um sem fim possibilidade e necessidade, o desafio é, a cada vez, dar lugar ao impossível e saber aceder-se à contingência.