
Da prática à conversação ou da conversação à prática?[1]
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios
Laboratório Criar (em formação) – CIEN-SP – Eduardo Vallejos

Coat on sewing body form – Samantha Hurley from Burst
O Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN) tem como um de seus objetivos que a psicanálise possa se deixar ensinar sobre aquilo que outras disciplinas revelam sobre o saber da criança e do adolescente e, com isso, circular a palavra em espaços onde até então não era possível. Como nos indica J.-A. Miller, a partir do impasse que nos faz falar, produz-se uma “associação livre coletivizada”[2] entre os participantes, tanto sobre experiências profissionais anteriores de cada um, quanto sobre uma experiência comum entre os participantes do laboratório.
Heloisa Telles parece nos indicar esta diferença: “[…] os laboratórios, que organizam o desejo de um debate interdisciplinar dos seus protagonistas e [que] também organizam o espaço que visa dar a palavra a crianças e adolescentes, têm a responsabilidade de recolher e transmitir ‘os efeitos subjetivos do dom da palavra no dispositivo da conversação’’’[3]. Fica claro que o trabalho do CIEN se faz em torno dos impasses que nos mostram as crianças, os adolescentes e aqueles que, na especificidade de seu campo de atuação, encontram dificuldades no trabalho com elas.
Por um lado, temos no laboratório a conversação que se produz a partir das vinhetas práticas que cada participante pode eleger de sua experiência prévia, ou seja, dos impasses que cada um encontra ao trilhar seu próprio caminho. De outro, temos uma conversação que se faz a partir do que se elabora e se oferece, pelo próprio laboratório, às instituições que trabalham com a infância e adolescência. O laboratório, como nos diz Heloisa, também oferece a organização de um espaço em que os integrantes do laboratório não só participam da conversação, desde a sua disciplina, como também, a posteriori, estabelecem a conversação da conversação, debruçando-se sobre os impasses de uma experiência que são de ambos, do grupo acolhido e do laboratório implicado em sua escuta.
Não só o campo da infância e adolescência com seus impasses nos une e sustenta o laboratório. Talvez seja a partir da prática do laboratório in loco, quando este se dispõe a construir um trabalho de escuta a partir da demanda de uma instituição, que podemos circunscrever um “desejo de fazer laboratório” comum a todos. Desejo de quem quiser se responsabilizar em “recolher e transmitir ‘os efeitos subjetivos do dom da palavra no dispositivo da conversação’’’[4].
Éric Laurent nos indica que a partir do dom da palavra, da conversação, se instala a transferência e é preciso “saber que uso se fará dela”[5]. E ele segue: “Quando estendemos o dispositivo analítico a grandes ou pequenos grupos de palavras, a lugares de palavra etc., o fim deve também estar definido. Quando os Kleinianos, Bion, etc., fizeram uso de pequenos grupos, seu enfoque foi o de manter um objetivo para o grupo, e fazer da transferência um instrumento para remeter cada um a seus pequenos assuntos, ao que [cada um] tem a fazer”[6].
Escutar as trajetórias profissionais de cada participante, com suas angústias e impasses no campo da infância e adolescência, é condição para se formar um espaço de escuta acolhedor, em que os equívocos são bem-vindos e, inclusive, motor do trabalho. No entanto, será que podemos dizer que a conversação, quando se debruça apenas sobre os impasses prévios de cada participante, nos basta para circunscrever a finalidade de um laboratório?
Me parece que Laurent nos dá pistas quando liga o objetivo e finalidade do laboratório à manutenção da transferência dos participantes com o grupo. Mais do que um interesse pelos impasses no campo da infância e adolescência, o que sustentaria a transferência de todos com um laboratório não seria sua extensão no campo social? Não seriam as práticas in loco, com começo, meio e fim, que organizam os participantes em relação a um coletivo e objetivo comum?

Casinha com menino, obra de Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, sem data.
Tento, brevemente, propor uma diferença entre as práticas dos integrantes do laboratório e a prática de um Laboratório. É certo que as práticas dos participantes do laboratório se atravessam e compõem a interdisciplinaridade tão cara à proposta do CIEN, mas a prática de um Laboratório talvez seja algo a ser inventado pelo coletivo ao construir ou acolher, na cidade, uma demanda de conversação.
A pergunta do título se responde, a meu ver. Não se trata da prática à conversação ou da conversação à prática, mas de uma codependência entre ambas as vertentes, uma vez que a prática que ofertamos in loco é o que sustentaria a finalidade de um Laboratório e este não se configura como tal sem a participação das distintas disciplinas que também se dedicam ao trabalho no campo da infância e adolescência.
Talvez esta prática da conversação in loco entre todos os participantes do laboratório seja sua marca de união na medida em que ela inclui, desde seu início, o corte. A prática in loco, ao determinar um enquadre e colocar em perspectiva um fim, revela a urgência própria do momento de concluir. É o corte que engendra uma pressa que faz existir em ato o tempo da libido, diferente do tempo epistêmico. Sem corte nas conversações e sem um fim como perspectiva, a conversação corre o risco de se manter em uma zona de produção e proliferação de sentido, sem incluir em seu centro o real como o que escapa à significação, mas que produz seus efeitos devastadores. Para se chegar à certeza de um ato que possa tratar o real, é preciso fazer par com a pressa.
Esta reflexão sobre o funcionamento do Laboratório CRIAR se deu no início da pandemia, produzindo, ao mesmo tempo, um convite ao trabalho. Como bem pontuou Flávia Cêra na última conversação de 2020 com os laboratórios de São Paulo, é importante que possamos nos deslocar da impotência diante do horror posto pela pandemia, que paralisa, para uma posição de mais consentimento em relação ao real, que nos permite agir e assumir responsabilidades diante do impossível que a tragédia comporta. Quem sabe possamos tecer pelas telas uma prática que consente e está à altura do tempo do real[7], “de onde não se sai”[8], assumindo riscos frente à velha e violenta segregação da qual crianças e adolescentes são alvos constantes, em quase todos os discursos a que são submetidos.
[1] Texto apresentado inicialmente na VII Conversação do CIEN-Brasil, “Zonas de fratura – diferenças, corpos e saberes“, realizada em 11/03/2021. A presente versão conta com acréscimos e revisão feitos pelo Laboratório especificamente para esta publicação.
[2] MILLER, J-A. La pareja y el amor: conversaciones clínicas con Jacques-Alain Miller en Barcelona/Jacques- Alain Miller. [et. al.] – 1ªed. – Buenos Aires: Paidós, 2003. p.16.
[3] TELLES, H. P. R. S. “A invenção do CIEN”. In: Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil/. organizado por Nohemí Brown, Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra. Belo Horizonte: EBP, 2018. p.15.
[4] TELLES, H. P. R. S. “A invenção do CIEN”. In: Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil/. organizado por Nohemí Brown, Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra. Belo Horizonte: EBP, 2018.
[5] LAURENT, É. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. In: Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil/. organizado por Nohemí Brown, Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra. Belo Horizonte: EBP, 2018, p. 46.
[6] LAURENT, É. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. In: Trauma, solidão e laço na infância e adolescência: experiências do CIEN no Brasil/. organizado por Nohemí Brown, Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra. Belo Horizonte: EBP, 2018, p. 46.
[7] OTONI-BRISSET, F. Analista: presente! Boletim Punctum, nº 0. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2022. Disponível em: www.encontrobrasileiroebp2022.com.br/argumento-analista-presente/ Acesso em: 30 de junho de 2022.
[8] OTONI-BRISSET, F. Analista: presente! Boletim Punctum, nº 0. Boletim do XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2022. Disponível em: www.encontrobrasileiroebp2022.com.br/argumento-analista-presente/ Acesso em: 30 de junho de 2022.
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Surpresas da inter-disciplinaridade
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios

Esteban Vivaldi, Salvador-Bahia, sem título, 2022
Laboratório Digaí-Escola – CIEN-Rio – Anna Luiza Almeida, Franciele Gisi M. de Almeida, Gricel Hor-Meyll, Mirta Fernandes e Vânia Brito Gomes
Realizamos três conversações com coordenadores, psicólogos, assistentes sociais e educadores de um Projeto Educacional que trabalha com internos do DEGASE – RJ. Pelo laboratório Digaí Escola participaram as psicanalistas Mirta Fernandes e Gricel Hor-Meyll.
A partir destas experiências, que nos pareciam descontínuas, com longos intervalos entre elas, e da dificuldade em extrair no laboratório o ponto de impasse que se colocava como limite aos profissionais do projeto, retomamos uma questão que nos interessava há algum tempo: como recolher depoimentos dos diferentes participantes de uma conversação? Quais os efeitos e consequências de uma experiência, do ponto de vista de um profissional de uma outra disciplina?
Instigados por essas perguntas, provocamos, após as conversações, um encontro com as coordenadoras do projeto, o que produziu uma reflexão sobre a prática no laboratório, a presença do psicanalista e os efeitos da experiência inter-disciplinar. Esse querer saber sobre os efeitos e consequências dessa experiência permitiu que não só pudéssemos retornar ao que havíamos recolhido e fazer uma releitura, mas que pudéssemos também formular a importância de algo que sustenta a função Laboratório no CIEN: a inter-disciplinaridade.
Na primeira das três conversações realizadas, os professores partem de uma queixa, a frustração com os resultados do trabalho, pois a maioria dos meninos que tem passagem pela criminalidade reincide e retorna ao DEGASE. Surgem várias queixas sobre os agentes socioeducativos que trabalham com os meninos, mas os educadores concluem que os agentes também sentem o “peso do sistema”. Tanto os meninos quanto os agentes ficam “desumanizados” por estarem encarcerados. Alguém lembra que eles, os educadores, estão lá para tentar desestruturar o sistema “por dentro do sistema”, mas o resultado é tão pequeno, diante de tanto investimento, que a sensação é de impotência. Até que alguém constata, com surpresa, que eles passaram a maior parte do tempo falando dos agentes. Neste momento, decidimos encerrar aquela conversação. Marcar a perplexidade e a surpresa é o corte que relança algo para o próximo encontro.
No segundo encontro, há tensão entre alguns educadores e a coordenação do projeto. Perguntam-se por que tantos educadores vêm deixando o projeto. Há um incômodo com essa saída, que, segundo uma das coordenadoras, ocorre sem que nada seja dito previamente, impedindo que se tente resolver as questões. Os educadores começam falando das dificuldades no trabalho dentro do DEGASE, mas passam a identificar dificuldades no projeto e surgem queixas sobre os privilégios de alguns educadores. A coordenação do projeto propõe uma nova reunião, sem a presença do CIEN, para que possam discutir estas dificuldades. A implicação da coordenação seria um efeito da conversação? Mais uma vez, irrompe algo surpreendente, que fura a consistência da coordenação, instaura um incômodo e a convoca a trabalhar as questões que emergiram.
O terceiro encontro foi on-line, já durante a pandemia, para tratar da angústia dos educadores com a situação dos internos, diante da impossibilidade de atuar, presencial ou virtualmente. Dizem que sem a presença deles, os jovens teriam ficado “sem nada”. Para sustentar algum vínculo, planejaram enviar cartas aos internos, mas, embora muitos educadores tivessem se comprometido, poucos escreveram. Um dos presentes diz que não considera a ação efetiva, e que deveriam se mobilizar pelo desencarceramento: “Só temos um tiro e não podemos errar”. Colocamos esse ponto em questão, será que só tinham mesmo um tiro? E por que não podiam errar? Ao final do encontro, decidiram seguir com a ideia das cartas e que todos seriam bem-vindos para ajudar. O rapaz que a princípio foi contra, diz que vai participar.

Foto de Daniel Frank no Pexels (pexels-daniel-frank-305197)
Esse ponto surgido ao final da terceira conversação parece condensar uma questão que circulou nos três encontros. Uma relação com o ideal de “salvar os meninos”, “mudar o sistema”, que, ao não se efetivar, os deixava frustrados, impossibilitados de reconhecer e valorizar a importância do empenho de cada um. Ao interrogar a certeza “só temos um tiro e não podemos errar”, abre-se a possibilidade de uma aposta nos efeitos possíveis do trabalho. A exigência idealizada de serem os “salvadores” dos jovens e o imperativo que se coloca com “não poder errar”, afrouxa-se. A intervenção nesse ponto permitiu que essa fala tão consistente pudesse ser furada, colocando um intervalo entre tudo e nada, abertura para que o desejo de enviar as cartas pudesse ser relançado. Tomando a palavra, os integrantes fornecem significantes que facilitam a localização dos ideais do grupo e do impossível em jogo, o que possibilitou a aposta em ações próprias como a escrita das cartas, para manter os vínculos e sustentar o desejo de um projeto possível.
No segundo tempo do trabalho no Laboratório, agora com as coordenadoras, localizamos pontos diferentes dos inicialmente identificados por nós. Uma delas observa que na segunda reunião havia ficado muito mal com a saída de educadores, que lhe parecia repentina, mas naquele momento percebia que talvez não houvesse mesmo uma escuta. Nesse encontro, revela-se aos integrantes do laboratório uma posição de mestria não identificada anteriormente, o que possivelmente fazia obstáculo e não nos permitia extrair os pontos de deslocamento das conversações. Percebem que algumas pessoas, em geral caladas nas reuniões internas, falaram nas conversações. Acham que, ao promover as conversações, a coordenação sinalizava interesse e cuidado com os educadores, dando lugar também às próprias dificuldades, o que produziu uma maior aproximação com a equipe.
O testemunho das coordenadoras revela a importância da inter-disciplinaridade não só nas conversações, mas também no a posteriori das elaborações no laboratório. O material recolhido pôde receber leituras e sentidos não só a partir de uma prática orientada pela psicanálise, mas também de outras práticas. Isso pôde produzir uma experiência singular, diferente para cada um. O querer saber mais sobre as consequências da conversação enlaçou ao laboratório às coordenadoras do projeto, permitindo que se decantassem outros efeitos da experiência.
O efeito surpresa, onde emerge o inesperado, diferencia a prática e a função da inter-disciplinaridade no CIEN, pela troca de experiências no encontro com outros profissionais que se ocupam do mesmo objeto de trabalho com referenciais diferentes. Guardar um lugar de desconhecimento, de abertura para o imprevisto também no Laboratório, parece fundamental para fazer avançar essa prática inter-disciplinar.
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As conversações: os atropelos, a pandemia e as novas possibilidades
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios
Laboratório Encontro de Saberes – CIEN-SC[1]
O impasse e o atropelo

Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, O menino e a arapuca, sem data
O Laboratório Encontro de Saberes, do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN), de Santa Catarina, vem realizando conversações quinzenalmente em uma Escola da Rede Municipal de Florianópolis desde julho de 2019. A demanda adveio porque alguns adolescentes estavam se cortando dentro da Escola.
Ao final do ano, nas reuniões presenciais do Laboratório realizadas após cada conversação, e denominada por nós de “decantação”, um modo de destrinchar os conteúdos imbricados nas conversações destacou-se para os integrantes do Laboratório: o significante “atropelo”. Em uma turma do sexto ano, os alunos começam a relatar os “atropelos” fora da Escola: de bicicleta, andando pelas ruas, do ônibus etc. Os relatos eram constantes, até que um integrante do Laboratório intervém dizendo: O que acontece fora da Escola? O que atropela? Na reunião de decantação, a partir da reflexão sobre a conversação realizada e os pontos que nos chamaram a atenção, chegamos à seguinte formulação: O atropelo da infância! Foi com base nisso que pensamos em uma atividade aberta com esse título e, quando estávamos elaborando, fomos atropelados pela pandemia do novo Coronavírus.
As conversações presenciais foram suspensas, assim como as aulas na rede municipal de Santa Catarina. Diante da nova e inesperada situação, ficamos algumas semanas sem nos encontrarmos, quando a orientadora educacional da mesma Escola entrou em contato demandando um encontro virtual para conversar sobre a situação dos professores e dos profissionais da educação diante da pandemia.
Como dar continuidade à pesquisa do Laboratório? Foi essa a pergunta que ficou ao conversar com a orientadora educacional e ao ouvir as queixas dos professores: “Medo da perda do emprego!”, “É férias ou quarentena?”, “Ensino remoto ou à distância?” e “Como mandar as tarefas aos estudantes sem levar em consideração a desigualdade? Afinal de contas, muitas crianças só se alimentavam realmente dentro da Escola.”
Em uma das conversações realizadas com os professores, eles manifestaram o desejo de que, “no retorno”, nós do CIEN pudéssemos “ir aos pequenos também” (crianças com idade escolar abaixo do quinto ano do Ensino Fundamental). Tal demanda surgiu de uma professora participante da primeira reunião de professores, que ocorreu de modo presencial, no ano de 2020.
A escola, ainda antes da pandemia, começou a implementar os “Territórios Brincantes”. Metodologia importada da Educação Infantil que visa possibilitar a apropriação de conceitos de forma lúdica, por meio de interações em espaços planejados e estruturados de uma fração do mundo adulto. Realizado também para as crianças e adolescentes do Ensino Fundamental a partir do trabalho na prática de conteúdos curriculares, de modo interdisciplinar, facilitando a introjeção dos conhecimentos.
Nas conversações on-line algumas questões se colocaram: “Como será o retorno? A criança estará com saudades e vai querer nos abraçar, como lidar com isso? A gente não pode dar um abraço? E a máscara? É uma questão do olhar: perceber a si e aos outros.” Localizou-se aí uma demanda pela conversação do Laboratório para tratar desse novo impasse surgido: a normatividade em um lugar onde se pressupõe que seria impossível. Após alguns minutos a orientadora diz: “o professor também deve ser um ouvinte, estar em um outro lugar.”
Nas últimas semanas a orientadora educacional envia uma mensagem manifestando o desejo de incluir o CIEN no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da Escola onde realizamos conversações. O PPP é um documento orientador e registra as práticas da Escola e deve ser atualizado anualmente mantendo-se vivo e fidedigno. A orientadora é uma das articuladoras do Programa Saúde na Escola (PSE)[2] – o qual tem como pressuposto a formação integral dos estudantes – articulado à saúde mental. Encontra nas conversações do CIEN uma correspondência significativa com as ações do referido Programa. Nesse sentido, ela considera importante citar o CIEN como ator, “nós estamos lá”. O PSE não é só “dela”, por isso gostaria de colocar ênfase na continuidade do trabalho das conversações com a Escola, mesmo diante da pandemia. Um integrante do Laboratório aponta aí uma questão de escrita ao dizer que não é necessário estarmos no PPP para estarmos na Escola. Há, portanto, um desejo de continuidade e de um certo protagonismo da conversação entre o CIEN e a Escola. “Fazer algo no outro e ele fazer algo em mim, ter reverberação, se isso não é conversação, não sei o que é”, afirma a orientadora educacional.
Seguimos com a pesquisa na Escola tendo em vista a realização dessa atividade sobre o atropelo da infância.
Uma nova demanda na pandemia
Durante a pandemia surgiu a demanda de uma outra Escola, agora da Rede Particular da cidade de Lages, em Santa Catarina.
Mediante uma conversação on-line entre a coordenação do CIEN, a coordenação pedagógica e a direção dessa Escola, escutamos relatos de muita pressão em relação às aulas remotas, angústias e sobrecarga de trabalho. “Eles tiveram que se adaptar de um dia para o outro com as tecnologias, em jornadas duplas ou até triplas, se pensarmos nos trabalhos domésticos e na educação em casa dos próprios filhos”, afirma uma das coordenadoras pedagógicas. Outra coordenadora relata o medo de alguns profissionais de serem demitidos e de como recebem áudios de pais reclamando. Os professores e coordenadores são alvos de “descargas” das angústias dos pais. Relatam sobre a adaptação dos alunos e continuam queixando-se dos pais. A diretora da escola afirma “Precisamos ouvir esses pais, aliviar as tensões.” Ao invés de uma conversação com os professores, que aparece no primeiro momento, surge a demanda da direção, com uma certa urgência, de uma conversação on-line entre a coordenação pedagógica, o CIEN e os pais. Assim, apareceram-nos algumas questões: como as crianças estão vivenciando esse momento? O que os pais podem formalizar?
Como a Escola poderia fazer um laço com essas famílias? A coordenadora levanta um impasse: “Quais são as saídas para esse tempo?” Aparece uma certa tensão entre a Escola e os pais. A coordenadora pedagógica da educação infantil (crianças de 1 a 6 anos) relata que o aproveitamento das atividades encaminhadas é inferior a 50%. Um impasse? Como proceder com as famílias?
A coordenadora toma a palavra, enquanto mãe de dois filhos gêmeos: “parece que estou no divã, falei coisas que não tinha falado com ninguém”. Uma mãe afirma que o filho não quer voltar para Escola, pois ele nunca teve o pai em casa como estava acontecendo. “Eu não quero que o Coronavírus vá embora”, diz essa criança.
Uma mãe revela sua angústia com o filho único: “não estou preocupada com o conteúdo, isso ele repõe depois, mas a falta de convivência não tem como repor. Ele não tem irmãos, primos… E não deixo ele na tv, tablets.”

Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, sem título, sem data
Algo inesperado acontece nessa mesma conversação, reservada aos pais, quando uma aluna do 7o ano, inscrita com o nome da mãe, abre a câmera e pede a palavra: “Meus pais não puderam estar aqui, mas eu só queria agradecer aos professores de arte e filosofia que têm sido muito importantes nesse momento para minha saúde mental.” Diante de tal depoimento, surge uma questão: Como um dispositivo de conversação pode circular em um modelo on-line, sem ver quem fala? Afinal de contas, a imagem não aparece, só a voz. Esta se apresenta como uma presença, estamos no on-line, na janela. Em tempos de tempestades, diversas adversidades, cada um na sua janela, na sua singularidade tentando se equilibrar em seu barco.
O barco é a metáfora utilizada por uma das mães ao dizer sobre o que pensa deste momento: “Eu vejo o Coronavírus como uma tempestade, e cada família está em um barco. Ou seja: a tempestade está para todos, porém cada família tem um barco diferente, alguns é um iate, com muitas possibilidades, e em outros o barco está furado.”
Observa-se que as experiências vivenciadas pelas crianças, familiares e professores, durante a pandemia foram diversas: em uma, a ideia de manter um vínculo com a “realidade” via Escola, como se as aulas por vídeo, o contato visual com os professores, fossem o vínculo com a realidade interrompida pelo novo Coronavírus; em outras experiências surgiu o relato de muitas crianças desejarem continuar em casa, pois antes os pais, por conta do trabalho fora de casa, permaneciam muito tempo longe delas. Ou seja: como lidar com as alteridades perpassadas pela pandemia?
Nossa última conversação foi com os professores da educação infantil – “os mais prejudicados” – segundo a direção da Escola. A coordenadora toma a palavra e lança a questão: “Como estamos e qual o papel da Escola neste momento?” As professoras então relatam um sentimento de culpa, pois interpretam a saída das crianças da Escola como responsabilidade delas. E se interrogam: “O que não fizemos?”, “É um balde de água fria”, diz uma outra professora. Nesse momento, uma profissional do administrativo da instituição toma a palavra e diz que é ela quem recebe as ligações dos pais comunicando a saída do filho da Escola. Cada dia são duas, três ligações. Encontramos um sofrimento muito grande nesses profissionais da educação infantil, os quais têm de lidar com a saída das crianças, o aumento da jornada de trabalho e a própria instabilidade no trabalho.
“Como vão ficar as crianças?” É a pergunta que antecede o impasse: “Como nós professores vamos ficar?” Tomando a conversação como um dispositivo em que o movimento inter-disciplinar pode possibilitar a abertura de um espaço para a invenção, por meio de soluções singulares, seja das crianças, dos adolescentes, dos pais ou dos profissionais que circulam nas instituições, continuamos com os efeitos desse dispositivo on-line e seus embates com o Real, a pandemia do Coronavírus.
[1] Integrantes do Laboratório: Adriana Farias Pereira, Ana Maria Alves de Souza, Fernanda Martinhago, Gustavo Ramos da Silva (responsável pelo Laboratório), Patrícia Laura Torriglia, Soledad Torres e Valesca Lopes (coordenação CIEN-SC). Colaborou com a escrita do trabalho: Marcia Frassão (coordenação CIEN-SC).
[2] Este Programa compõe uma política nacional, que iniciou em 2007, com a finalidade de contribuir para a formação integral dos estudantes da rede pública de educação básica, por meio de ações de prevenção de doenças, promoção de saúde e atenção à saúde. Dentre as ações do PSE, destacam-se as mais relacionadas ao campo da saúde mental, como: a avaliação clínica e psicossocial, prevenção e redução do consumo do álcool e uso de drogas e a educação permanente em saúde (BRASIL, 2007). Referência: BRASIL. Presidência da República. Decreto Nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Institui o Programa Saúde na Escola – PSE, 2007.
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Educadores na pandemia: “solitários e impotentes”.
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios
Laboratório Ciranda de Conversa- CIEN-PR – Bárbara S. F. Campos[1] e Renata P. Soares[2]

Simbolo-de-rede-sem-fio-wifi-abstrato. In: br.freepik.com/vetores-gratis/
A pandemia que tomou conta do mundo no ano de 2020 exigiu de todos um difícil isolamento social. A educação foi profundamente afetada. Alunos, educadores, funcionários e famílias sofreram os impactos do ensino remoto em seu dia a dia e ninguém saiu ileso do fechamento das portas das escolas. A angústia invadiu a todos, acompanhada pelo desconhecimento e pela urgência na busca de soluções, que em sua maioria se mostravam desajeitadas e antiquadas diante dos desafios da época.
O Laboratório Ciranda de Conversa[3] se ocupa da inter-disciplinaridade entre a psicanálise e a educação. Busca sustentar o hífen entre o inter e o disciplinar, como nos aponta Lacadée: marca de um pequeno espaço que não quer dizer nada, “um vazio que pode indicar o lugar de uma ausência vibrante, viva, como um coração que bate, pulsante”[4]. O hífen é marca da união e também do vazio que aponta para o real em jogo, capaz de furar o saber prévio e acolher o imprevisível. É o que pode permitir que uma rajada de ar circule e produza um enigma que, talvez, dê lugar ao novo: “um ganho de saber que abre para propostas inéditas, trazendo um a-mais de vida ali onde reinava a pulsão de morte”.[5]
Uma das principais características do Laboratório é o deslocamento, o “ir” até aonde os impasses o convoca. Sendo assim, foi preciso uma reinvenção, assim como para as escolas, no período do isolamento. Quando uma das participantes do Laboratório trouxe a angústia de algumas educadoras com as aulas on-line, um impasse surgiu: como fazer? O mês era junho de 2020 e não havia familiaridade com as plataformas de reuniões remotas e ou qualquer prática prévia de conversação nesse modo. A decisão de propor uma conversação entre os participantes do Laboratório e as professoras foi uma aposta, uma aposta na circulação da palavra. Se a educação estava no modo on-line, talvez o Laboratório pudesse se aproximar das escolas por esta via.
A primeira Conversação foi entre alguns professores de escolas públicas e privadas da cidade de Curitiba e os participantes do Laboratório Ciranda de Conversa. De início foi possível perceber que não era um encontro com a “Escola” e todo seu contexto: cenário, agitação, trocas, barulho, alunos e professores em interação. Foi um encontro com professores fora de lugar e seu sufocamento diante de um espaço ainda não construído social e psiquicamente. Logo no início, uma professora expôs sua angústia trazendo as seguintes palavras ao grupo: “Não pensaram em nós, não pensaram neles (alunos). Há um descrédito no professor. Como a escola no Brasil está mais preocupada com o conteúdo, quando estamos num momento excepcional? Estamos servindo a um protocolo, que não é para nós e não sabemos para quem é”. Foi a partir desse ponto que a Conversação girou nesse primeiro momento. As professoras se diziam desamarradas dos laços que cultivaram na escola, com os alunos e entre seus pares. Estavam impotentes diante do isolamento e da forma como a educação vinha sendo conduzida. Nas escolas públicas, os professores não eram os responsáveis por ministrar aulas remotas para suas turmas, mas, um professor escolhido pela Secretaria de Educação gravava as aulas do período e essa aula ficava disponível, via aplicativo ou televisão, para todos os alunos matriculados no período no ano letivo. Cabia ao professor responsável por cada turma acompanhar as notas e frequências, assim como tirar dúvidas quando necessário. Elas diziam: “não estamos sabendo de nada.” Ou seja, além do não saber frente ao real da pandemia, elas desconheciam o processo de aprendizagem dos seus alunos. Não eram elas que preparavam as aulas, tampouco acompanhavam seus alunos porque eles raramente apareciam no horário que elas estavam disponíveis para dúvidas. Elas nem mesmo sabiam onde e como seus alunos estavam. “Tenho 400 alunos e estou acompanhando por aplicativo WhatsApp, mas só vejo 3 ou 4. É uma farsa!”, diz uma professora, que em seguida se lembra de um pesadelo: “a pedagoga entra na sala de aula e diz: você é uma fraude! eu respondo: mas eu não sei o que fazer! Ela me diz: faz qualquer coisa só para entregar.” Os significantes fraude e farsa aparecem constantemente para nomear o lugar dessas professoras naquele momento. São professoras fora de lugar, que não ensinam, sem laços.

Messy-pencils. Photo by Matthew Henry from Burst
É possível captar a impotência e o sufocamento das professoras ao se ouvir a frase: “desconhecemos totalmente o que acontece com o outro. Para fazer algo com o outro é preciso saber um pouco dele. Estamos no escuro.” São sujeitos paralisados frente a um Outro todo poderoso, mortífero. Porém, a psicanálise, como êxtimo na conversação, “recolhe seus efeitos exatamente por destruir a crença na solução universal, nos imperativos da tradição, no pensamento único, diluindo as identificações em massa e sustentando a vitalidade de um furo operante. É tarefa dos analistas fazer falar os impasses da civilização e, no ponto em que vigora a fórmula “para todos”, realizar a subversão necessária para dar lugar à solução de cada um.”[6] Aos poucos, de forma muito sutil, pequenas rajadas de ar passaram a circular nas conversações. As professoras trouxeram uma pequena reflexão sobre o que é ser educador, e sobre a educação. Cada uma pôde trazer algo de si, de seu sujeito educador. De alguma forma, começaram a se deslocar da pergunta sobre que o Outro quer de mim, esse Outro mortífero, que mal podiam nomear, para uma reflexão sobre si mesmas como sujeitos educadores. Começaram a pensar nas trocas entre seus pares, realizadas em seus grupos de WhatsApp. Uma contou que perguntava sobre seus alunos para as famílias quando as encontrava no mercado. Outra contava que dançava em frente ao computador para motivar seus alunos, sem medo de pagar mico. A professora de arte pôde nos contar sobre como a arte e o Laboratório a transformava enquanto sujeito.
Como nos aponta Juan Carlos Indart, o CIEN, “ao entrar com essa extimidade, efetivando um não-todo, esse amor e esse gozo furam o discurso do mestre, o discurso universitário, os semblantes de Outro do Outro, sejam estes de um imperativo “a secas” ou de um imperativo de saber; e de um modo não muito calculado mas, com consequências precisas, em diferentes corpos podem advir acontecimentos novos, que furam cada um, dando-lhes vida nova, um gosto de fazer algo que não seja obedecer a ninguém, e que os colegas do CIEN declinam muito bem de diferentes formas: uma posição de sujeito, a dignidade dessa singularidade, um ideal pelo qual dê gosto viver, ou manejar o mesmo sintoma que levava a matar e a morrer como recurso para tecer uma vida com alguns vínculos sociais”[7]. Por fim, a conversação se encerrou com uma das professoras podendo dizer: “é momento de fazer do jeito que dá, de servir desse momento para refletir onde estão os furos na educação. Fazer o que é possível.”
[1] Psicanalista praticante. Participante do Laboratório Ciranda de Conversa CIEN-PR, animadora da Conversação online com os professores.
[2] Psicanalista praticante. Responsável pelo Laboratório Ciranda de Conversa CIEN-PR.
[3] O Laboratório Ciranda de Conversa-CIEN Paraná realiza conversações com os profissionais que atuam em instituições escolares, assim como com as crianças e adolescentes, possibilitando que coloquem em palavras as situações de impasses e mal-estar. Seus participantes são Bárbara Snizek Ferraz de Campos (animadora da conversação online com os professores), Eugênia C. Souza, Idavir Trebien, Karina Veiga, Niura Kiame, Paula Butture, Stephanie Gorte, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Tânia Verona, Willie Anne Provin (animadora da conversação online com os professores).
[4] MILLER, J. “O que é o CIEN.” In. BRISSET, F., SANTIAGO, A. L., MILLER, J. (Orgs.) Crianças falam! E têm o que dizer. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p. 24.
[5] RÊGO BARROS, M.R.C.. “A prática interdisciplinar do CIEN.” In BROWN, N., MACÊDO, L. LYRA, R. (Orgs.) Trauma, Solidão e Laço na infância e na adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.
[6] OTONI-BRISSET, F. “Crianças falam! e têm o que dizer.” In: BRISSET, F. SANTIAGO, A. L., MILLER, J. (Orgs.) Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p. 12.
[7] INDART, J. C. “Del síntoma as CIEN y del CIEN al síntoma.” In: El niño [CIEN]. Publicación del Instituto del Campo Freudiano. Revista Periódica – número -15. Abril de 2020. Olivos: Grama Ediciones, p. 12. Tradução Livre.
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Do impossível do furo à contingência de um parkour
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios
Laboratório Brota – CIEN-MG – Cristiane F. C. Grillo e Nádia L. Lima

Silvio Jessé, Mucugê-Bahia
Uma demanda da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte referente à evasão escolar provocou a criação de um Laboratório do CIEN: Brota – juventude, educação e cultura. Iniciamos o trabalho com os adolescentes e os professores de uma escola localizada na periferia da cidade. O trabalho orientado pela psicanálise lacaniana não objetiva restaurar o vínculo do adolescente com a escola, atendendo a uma demanda da política educacional, mas aposta na abertura de um lugar de conversação sobre os impasses e os enlaçamentos possíveis entre os adolescentes, o saber e a cultura.
As conversações com os professores permitem que os docentes possam falar dos seus próprios impasses, da sua relação com um certo ideal educativo, mas também com o desejo de uma transmissão. Em uma das conversações, depois de um ano de trabalho, a diretora da escola nos diz que aprendeu muito no Brota, sobretudo que o adolescente é o que a gente vê nele. Ela traduz, à sua maneira, a colocação de Lacadée[1] sobre o risco mais grave que um jovem corre, o de ser aprisionado em uma nomeação predicativa que vem do Outro.
Os adolescentes são convidados a participar das conversações e de ateliês no Centro de Referência da Juventude (CRJ). Os ateliês, de artes visuais, circo, dança, escrita, design, gastronomia e teatro, se pautam pelo desejo e pelo saber dos adolescentes. As conversações alojam a palavra dos adolescentes, produzindo enigmas e deslocamentos. A equipe, constituída por alunos e professores de diferentes cursos da Universidade, como medicina, psicologia, educação, artes visuais, dança e letras, alguns deles participantes do laboratório do CIEN, se debruça sobre as falas e invenções nos ateliês e nas conversações, como forma de elaborar e de construir continuamente esse trabalho inter-disciplinar.
Alguns adolescentes participam dos ateliês e das conversações de um modo peculiar. João interrogou uma psicanalista sobre o motivo dela trabalhar com esses meninos difíceis. Ela respondeu que não os acha difíceis e ele acrescenta vivamente: por isso eu gosto de vir aqui. João trabalha nos sinais de trânsito, fazendo malabares. Ele participava pontualmente dos ateliês e das conversações, dizendo: já fiz, já conversei. Aprendemos com ele que seu tempo era o do sinal, fugaz. Os professores relatavam que esse menino que ficava nos corredores da escola, passou a entrar na sala de aula, ainda que não permanecesse durante todo o tempo proposto.
Felipe, inteligente e provocador, hesitava em falar sobre a família, especialmente sobre o pai, que estava preso. Na conversação, ele tecia uma história familiar fragmentada: relatava que alguns dos irmãos eram na verdade primos, filhos de um tio assassinado por um policial. Ele dizia que mesmo assim queria ser policial e também psicólogo, porque tem muito jeito para ajudar os outros. Contudo, Felipe tinha muitas dificuldades para fazer amigos e justificava: eu perco o amigo, mas não perco a piada. No teatro, ele escolheu representar o coordenador mais querido da escola.

Foto de M Venter:
https://www.pexels.com/pt-br/foto/pessoa-sentada-na-montanha-1659438/
Leo abordou uma psicanalista depois da conversação para pedir emprego: preciso de dinheiro para comprar casa, carro e moto. Ela perguntou sobre sua vida e ele respondeu que a vida dele daria um livro. Ela questionou se ele gostaria de fazer esse livro e ele propôs começar do início da sua vida. Ele disse que nasceu em Belo Horizonte e que o pai não teve coragem para carregá-lo no colo. Leo interrompeu seu relato nesse ponto dizendo que a maçã que ele havia comido pesava como uma pedra no seu estômago (os adolescentes haviam comido maçãs que faziam parte de uma exposição de arte). Na semana seguinte, na conversação, ele falou da sua infância, da cena de um assassinato em frente à escola e de como a mãe o carregou para transpor uma poça de sangue. Posteriormente, ao longo das conversações, ele esboçou um projeto para seu futuro: queria ter uma vida boa, para compartilhar com uma mulher e um filho. Não queria ser muito rico, nem criminoso, nem pobre. Apontou uma moto que desejava. Disse que queria uma vida boa, com amor, mas não sem os objetos.
Observamos que os adolescentes participam, cada um com seu estilo, das conversações e ateliês, e que também erram pelo espaço, eventualmente nos procurando durante seus percursos, em um tempo delimitado por eles. Observamos seus deslocamentos espaciais e discursivos, o que emerge das conversações e o que retorna a elas.
Observamos também os atos, que escapam aos acordos estabelecidos. Em uma ocasião alguns adolescentes esvaziaram extintores de incêndios no CRJ. Interrogados sobre o ato, Pedro relatou que gostava de ver o pó se espalhar no chão, e Marcos alegou que o ato foi uma resposta à fala jocosa de outro adolescente: acenda meu fogo. Marcos falou então de seu impasse, alternando um discurso homofóbico com uma vida sexual marcada por experimentações homoafetivas.
Em uma tarde, Marcos deu socos na parede, fazendo três furos. Ele nos disse que não sabia que a parede era frágil (de gesso), mas não havia nada a dizer sobre o segundo e o terceiro furos. O adolescente se ofereceu para consertar a parede, o que não aconteceu. Ele faltou algumas vezes e retornou.
Este episódio convocou a equipe a falar sobre a forma como cada um foi tocado pelo furo, e sobre a proposta de um conserto. Colocamos tal impasse no centro da conversação da equipe inter-disciplinar. Concluímos que o deixaríamos sozinho diante do ato e da proposta de reparação, pois nos precipitamos em apagar o furo, ao invés de sustentarmos a vitalidade de um furo operante.[2]
Esse ato do adolescente apontava para um impossível de dizer. Concluímos que, ao invés de buscarmos tamponar o furo com um sentido, a aposta no real desvelado no ato poderia abrir o campo dos possíveis.
Assim, propusemos uma conversação sobre os destinos dos furos, pensando em intervenções artísticas, que não tamponam ou procuram explicar os atos. Marcos participou com entusiamo da intervenção de bricolagem e depois nos apresentou um projeto de ateliê de parkour, detalhando a etimologia da palavra e a história do movimento. Explica que oriundo dos subúrbios de Paris, o parkour consiste em percorrer um caminho cheio de obstáculos e ultrapassá-los. Ressalta que esse ateliê será importante para que os jovens possam superar obstáculos.
O adolescente pode então criar um percurso novo, nos mostrando como sabia fazer com os obstáculos (muros, etc.) e como podia transmitir esse saber-fazer. Nas conversações da equipe, do laboratório, pudemos também aprender certo saber fazer com uma exuberância pulsional que escapa ao sentido, deixa marcas e subverte cada proposta. O dispositivo da conversação interdisciplinar é uma forma de tratamento do real para que as respostas dos adolescentes possam tomar o valor de uma invenção.[3]
Vemos que para alguns não é a lei, ou as normas, os acordos simbólicos que operam. É necessária uma borda, mais do que um limite.[4] Algo que se interponha entre o adolescente e um ato destrutivo, mas também entre o adolescente e a nomeação que vem do Outro.[5] Aprendemos com os jovens a apostar neles, sempre, acolhendo as suas respostas como invenções diante do real. Do indizível, do impossível do furo, pode advir a contingência de um parkour, de um percurso singular e sintomático. A conversação pode acolhê-los como seres falantes, que às vezes não sabem que o são, podendo alojar a palavra e dar-lhe curso, para que seu ser de palavra brote! [6]
[1] LACADÉE, P. O despertar e o exílio: Ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de janeiro, Contra Capa, 2011.
[2] BRISSET, F. Apresentação. In: Brisset, F.O; Santiago, A.L e Miller, J. (orgs.). Crianças falam! e têm o que dizer. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte, Scriptum, 2013.
[3] BROWN, N. O trauma e o real na clínica: o que inventam as crianças? In: Trauma nos corpos, violência nas cidades. Revista Curinga, n 39. Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas, junho de 2015, p. 69-72.
[4] STEVENS, A. Devant l’enfant violent: un cadre ou un bord? Disponível em: http://institut-enfant.fr/2018/12/03/devant-lenfant-violent-un-cadre-ou-un-bord/. Acesso em 07 de junho de 2019.
[5] MILLER. J. -A. Crianças Violentas. Opção Lacaniana, 77. São Paulo, abril de 2017.
[6] FAJNWAKS, F. Fazer borda. In: Grillo, C.F.C.; Lima, N.L. Brota: Juventude, Educação e Cultura. Tubarão, Copiart, 2020.
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O sexual e a zona de fratura: perspectivas para uma prática com crianças e seus pais
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios
Laboratório Mães e seus filhos – CIEN-MG – Cristina Marcos, Juliana Motta, Larric Johnny Malacarne, Mariana Vasconcelos dos Santos, Mateus Mourão e Paula Pazzini Salles

Light and squares abstract art. Photo by Matthew Henry from Burst
Provoca surpresa o quanto a advertência feita por Lacan em 1953 permanece atual, convocando analistas de todo o mundo a se colocarem a trabalho num esforço coletivo de operar transformações potentes na clínica para acompanhar as mudanças na subjetividade ao longo do tempo. Vale retornar ao texto lacaniano para sondar a força de suas palavras: “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”[1].
Imbuído neste movimento, Daniel Roy, em seu texto “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”[2], nos transmite, antes de tudo, um convite. Um convite que foi feito a ele próprio por Jacques-Alain Miller e que tomamos também como um encorajamento para a nossa prática dos laboratórios do CIEN. O trabalho a ser feito, diz Daniel Roy, e aqui acrescentamos no CIEN, é o de produzir um saber de peso frente às desordens rápidas. Ele diz de desordens especialmente sensíveis no campo da infância e que testemunham a deriva ocorrida nos continentes de nossas convicções – os semblantes que nos mantêm – e de nossos hábitos – os gozos que nos convêm –, deriva que produz linhas de falha e zonas de fratura. A diferença sexual é o nome dado a uma dessas zonas.
Como podemos entender a diferença sexual enquanto fratura? Trata-se de uma fratura nos semblantes, fratura no real produzida pelo encadeamento discursivo dos semblantes, ou ainda pela deriva contemporânea desses últimos? Posto que a inexistência da relação sexual é uma condição com a qual o ser falante deve se haver desde que é habitado pela linguagem, o que disso muda com as desordens rápidas do contemporâneo?
Este trabalho é fruto de elaborações do Laboratório Mães e seus filhos construído a partir da aceitação ao convite feito por Daniel Roy, no sentido de podermos nos ocupar de tais questões. Para isso, voltamos nossa atenção especialmente ao campo onde a diferença sexual, por ele nomeada enquanto zona de fratura, testemunha a “deriva ocorrida nos continentes de nossas convicções”[3]. Dessa forma, retomando a metáfora do autor e extrapolando seu uso, a força dos questionamentos colocados pode ser medida pelos efeitos que apresentou no próprio fazer de nosso laboratório – ou pelo abalo sofrido nos continentes de nossas convicções. Inseridos no contexto das crises psiquiátricas que chegam nas instituições públicas de saúde mental para crianças e adolescentes, o contato com a provocação feita por Daniel Roy deu início a uma série de conversações no interior do laboratório sobre as zonas de fratura inerentes à própria maternidade, paternidade ou parentalidade. Dentre outros motivos, tais discussões participaram da decisão pela troca do nome anterior do laboratório de “Mães em crise” para “Mães e seus filhos”. A crise, ou a zona de fratura, é inerente e está colocada. Resta perguntar o que se pode fazer com isso. Desde então o método psicanalítico da conversação tem nos permitido construir um saber sobre a prática junto à clínica das mães e seus filhos, com desdobramentos dentro e fora de nosso laboratório.
Teoria
Uma das perspectivas trazidas por Daniel Roy em seu texto remete especialmente ao Seminário 18, quando, na segunda lição, Lacan[4] faz uma sutil diferenciação entre “identidade de gênero” e “identificação sexual”. Na identidade de gênero, o que está em jogo é, dizendo cruamente, uma distribuição populacional dos semblantes. Trata-se de performar “homem” ou “mulher”, fato que organiza a tentativa de distinguir os gêneros antes mesmo da fase fálica. Essa distribuição promove uma diferenciação, que Daniel Roy compara à designação de títulos de nobreza: nobres marqueses, distintos homens, eminentes mulheres.
Se Lacan diz que é uma diferença “com efeito, muito natural”, não é por acreditar, por exemplo, num determinismo da anatomia, mas sim porque o campo dos semblantes é o campo da natureza. Trata-se de um âmbito onde tudo é possível, pois uma vez que o parecer se equivale ao ser, identificar-se a um gênero é tão elementar, tão natural como dar um título de nobreza. Essa simplicidade encontra seu limite quando a proliferação de semblantes esbarra em algo de intransponível. Aí sim, estamos no campo do sexual. E o que nos leva até lá não é senão o discurso, a articulação discursiva dos semblantes.
Para desenvolver um pouco mais esse ponto, pode-se recorrer ao ensino de Miller na primeira lição de seu curso de 1991 sobre A Natureza dos Semblantes[5]. Miller delimita a separação radical entre o Real, de um lado, e os semblantes, do outro, e em seguida comenta que a natureza está do lado dos semblantes, como diz Lacan ao comentar das aparências que proliferam na natureza: o arco-íris, o trovão, mesmo o pênis, as exibições copulatórias dos animais etc. Para deixar essa correspondência mais clara, Miller recorda a natureza no sentido pré-moderno: aquela em que abundam sereias, monstros aquáticos, aquela sobre a qual Hamlet pôde comentar que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a filosofia”. É um mundo onde virtualmente tudo é possível.
O que muda então, no século XVII, é precisamente a introdução do discurso da ciência, ao qual devemos a subjetividade moderna e as condições de nascimento da psicanálise. A ciência intervém trazendo um novo modo de fazer com os semblantes, que é sua articulação em um discurso de tal modo que demonstre algo da dimensão do impossível, tocando assim o Real. A partir desse giro, observamos um empobrecimento radical da natureza.

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Voltando ao texto de Roy, vemos que “a cada vez que o sujeito é convocado como homem ou mulher, esses semblantes têm eficácia real”[6]. Na medida do discurso, nem todos os semblantes se equivalem; nem todos têm essa eficácia que Miller articula como a passagem do nível do parecer/ser para o nível da existência. São alguns semblantes que logram “pescar” alguma coisa do Real, alguma coisa do gozo sexual exilado no impossível; eles escavam um buraco que aloja um pedaço desse gozo na forma de um mais-de-gozar.
Esses semblantes que têm uma “solidariedade” ao gozo sexual são precisamente o Falo e o Nome-do-Pai, aqueles a que Daniel Roy se refere quando diz “os semblantes que nos convêm”[7]. Eles são transmitidos pela tradição e nomeiam um modo de gozo, o gozo fálico, precisamente através de uma fratura, de uma incidência do significante no Real. Em outras palavras, a função fálica incide no Real, produzindo ali um corte, que é a inexistência da relação sexual. O sujeito sexuado é uma resposta do Real a esse corte, a escrita de um modo de gozo, masculino ou feminino, que fará suplência a essa zona de fratura. Logo, para a psicanálise o que está em cena não é um determinismo biológico, mas uma posição do sujeito frente a esses semelhantes, frente à linguagem. No caso do gozo do mais-de-gozar, ele tem um nome que geralmente é transmitido pela tradição paterna.
O que muda nisso tudo, quando pensamos no contemporâneo? Diversos autores do campo freudiano têm comentado sobre uma característica específica deste contexto que ganha várias nuances: queda do falocentrismo, descrença no grande Outro, forclusão generalizada, feminização do mundo, declínio da função paterna, depleção simbólica, etc. Nas derivas dessa época, aqueles semblantes escolhidos pela tradição se encontram menos assegurados, sua eficácia é menos garantida. E essas desordens, relembrando Daniel Roy, são especialmente sensíveis no campo da infância. Temos observado em conversações clínicas do Laboratório Mães e seus filhos, entretanto, que também são marcadamente sensíveis no campo da maternidade e da paternidade. Os semblantes que nomeiam o gozo precisam ser transmitidos; a identificação sexual depende de uma “imiscuição do adulto na criança”[8] que se dá sob a égide do Nome-do-Pai. Essa identificação depende certamente de “uma decisão insondável do ser”, mas também depende de algo da estrutura familiar. Não se trata exatamente do romance familiar, que é um semblante e pode assumir as formas mais diversas possíveis, mas sim do fato de que ser pai ou ser mãe é mais do que um parecer, não são semblantes quaisquer na medida em que transmitem um modo de gozo. Daí a angústia própria das funções paterna e materna, que não se cumprem sem uma certa visita do Real.
As observações que mencionamos acima têm lugar em instituições públicas de referência em saúde mental para crianças e adolescentes do Município de Belo Horizonte, nas quais alguns dos membros do laboratório Mães e seus filhos compunham o corpo clínico. Tais espaços concedem o privilégio do questionamento e produção de saber que parte de uma clínica vasta e complexa. Pais e avós, sejam eles biológicos ou adotivos, cuidadores do abrigo, ou até mesmo profissionais do sistema socioeducativo, estão e precisam estar sempre presentes. Pensando na dupla sujeito-analista, trata-se de uma clínica que não se faz sem a presença de um outro elemento, este que frequentemente, na ordem das intervenções, não é o terceiro. Os impasses e desafios oriundos desse trabalho foram levados mensalmente para conversações clínicas entre todos os membros do laboratório Mães e seus filhos, originando as questões que se desdobram ao longo deste texto.
Teoria e Prática
Na prática com crianças e adolescentes e seus pais/responsáveis, com frequência encontramos diante de nós algo da ordem de uma fratura exposta, verdadeiras urgências subjetivas. De fato, os Laboratórios do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN) nascem de um impasse, de uma questão que possa ligar seus participantes pela falta, criando um desejo de trabalho. Tem como orientação a “oferta da palavra”, um lugar em que a palavra possa circular e que, cada um com sua experiência, possa trazer para o trabalho uma miudeza, uma preciosidade que possa orientar seus participantes a cada vez, criando saídas para as questões e impasses que surgem no trabalho com esses sujeitos[9].
O laboratório “Mães e seus filhos” nasce com a pergunta: “De onde operar o encontro das mães com seus filhos, crianças e adolescentes, durante a visita hospitalar?” Essa pergunta se constituiu, em princípio, a partir dos casos clínicos construídos em uma instituição hospitalar manicomial. Naquele contexto, as mães estavam internadas em momento de crise psiquiátrica e o encontro com seus filhos se dava pelas visitas, ou pelo discurso das mães sobre seus filhos. A atividade atual ainda se sustenta pelo encontro, agora em rede de serviços de urgência substitutivos, voltados para crianças e adolescentes, e as conversações com os responsáveis pelos usuários do serviço que ocorrem dentro do espaço. Os elementos oriundos destas conversações são a mola propulsora daquelas que empreendemos em um segundo momento, entre os laboratoriantes, a fim de extrair algum saber que nos possa orientar a prática.
Em um destes encontros entre os profissionais de diferentes categorias que compõem o laboratório, temos como impulsionador o relato de um dos trabalhadores do serviço substitutivo de saúde mental. O conteúdo trata de uma família de cinco integrantes: o pai pastor, a mãe e três filhas. A perda do poder financeiro do genitor provoca um deslocamento de responsabilidade à mãe, que passa a exercer a função de trabalhadora sexual para sustentar a casa. Diante do insuportável do corpo, inicia uso devastador de substâncias para tratá-lo. Deixa as duas filhas mais novas na cidade do interior e parte para a capital com a filha mais velha, adolescente. Ambas circulam pelas cenas de uso, indiferenciadas, a adolescente em situação de exploração sexual constante para obtenção do objeto droga para consumo de ambas. Em seu discurso, a menina relata que a única forma de cessar o uso é se tornando uma mãe.
Este relato de um corpo adolescente indiferenciado causou à nossa discussão o resgate do termo utilizado por Marie-Hélène Brousse[10], que recorre à figura dos buracos negros – como descritos pelos astrofísicos no quadro da teoria da relatividade – para caracterizar os efeitos da diferença sexual sobre o discurso e a fala. Para a autora, assim como tudo o que entra no interior do buraco negro – toda a informação, toda a matéria –, é assimilada ao buraco negro, de modo que todos os objetos que caem nele se tornam inacessíveis, desde o momento em que se entra no campo da diferença sexual, tudo o que define a singularidade dos modos de gozar e das posições subjetivas torna-se inacessível.
Mesmo assim, é frente a buracos negros e zonas de fratura que nós, laboratoriantes, somos afinal convidados a colocar nosso desejo. Com Daniel Roy, recordamos que “nenhum código permite ao sujeito decifrar o que lhe acontece e, portanto, ele não sabe por que aquilo lhe acontece, nem o que quer dizer”[11]. Contudo, está a seu cargo fazer disso alguma coisa, e a escuta do psicanalista pode contribuir para fazer derivar novas possibilidades. Destacamos que é diante dessa falha que vão se construir as teorias sexuais infantis e se edificar as diversas identificações da infância, de maneira que cabe ao analista preservar essa singularidade e bordejar a novidade da invenção da criança quando ela se torna violenta demais.
No contexto das urgências psiquiátricas, contudo, frequentemente o praticante é convocado a dar uma resposta àquilo que se apresenta na instituição. Além disso, por vezes essa resposta precisa ser rápida, pois a demanda pode ser exorbitante. Em uma clínica tão complexa, falta espaço para pensar, verdadeiro impasse que foi tema de uma conversação ampliada entre diversos laboratórios do CIEN Minas em Agosto de 2020. Chegou-se ao significante “pausa” enquanto uma necessidade, no trabalho, ordenadora de uma possibilidade de incidência do discurso analítico nesta clínica: assim como o momento de ver, o momento de compreender tem seu lugar. Desse modo, as discussões em sala de plantão, antes de definir a “conduta” para o caso e as conversações entre psicanalistas, aparecem como possibilidades de operar essa função.
Em uma segunda conversação, outro laboratoriante traz o relato de uma menina que aos 12 anos chega para acolhimento e, quando indagada sobre os motivos de estar ali, prontamente anuncia: “Minha mãe fala que eu tenho crises, tiques e TOCs”. Impressionado, o profissional reformula sua indagação e questiona “Sua mãe fala? E o que você me diz?” A isso, sem vacilar, a criança repete: “Minha mãe fala que piorei depois que eu conheci meu pai. Minha mãe fala que eu puxei isso que tenho do meu pai, ele tinha crises de nervoso…” O profissional, insiste: “Sua mãe fala… Sua mãe fala… Eu quero ouvir de você! O que você me conta?”. A menina dá risada, mas fica em silêncio e o discurso se interrompe. O profissional tenta uma vez mais fazer um corte e dizer para a menina que ela não é nem a mãe e nem o pai, mas sim ela própria, ao que ela responde, sem rodeios: “É, mas tem a genética”.
Ela parece se referir a uma transmissão de um modo peculiar de gozo, um modo de ser e sofrer naquela família e, portanto, também a transmissão de um modo de filiação. A menina nos convida a pensar em uma outra genética, uma genética discursiva. Mais uma vez o convite feito por Roy[12] nos coloca a trabalho. O autor nos fala de uma solidariedade de semblante entre as gerações, solidariedade que indica e encobre ao mesmo tempo o real do gozo em jogo e que confere consistência à estrutura familiar, sob suas modalidades tão diversas. Neste sentido, a família aparece tanto como o lugar onde se transmite a falha do sexual, como o lugar em que ela se mascara.
Em uma terceira situação, os pais de um menino de seis anos procuram o plantão de um serviço demandando um relatório psiquiátrico que diga que o filho não tem condições de ir à escola. Fazem isto porque o menino não quer ir pra escola de jeito nenhum. Quando são informados de que na avaliação da equipe o menino tinha plenas condições de frequentar a escola, ameaçam processar o serviço de saúde mental. Em nenhum momento passou pela cabeça dos pais daquele menino que eles poderiam – e talvez fosse importante – dizer a um menino de seis anos que ele precisa ir à escola. Seria este um exemplo das desordens ocorridas no campo da infância que testemunham a deriva ocorrida nos continentes de nossas convicções – os semblantes que nos mantêm – e de nossos hábitos – os gozos que nos convêm? Sobre isto, vale resgatar mais algumas provocações feitas por Daniel Roy:
Não seria nesse momento de crise que a psicanálise ou o praticante são solicitados por um desses distúrbios da criança que proliferam hoje sob denominações que são a roupagem dos experts? Nós não teríamos que fazer ressoar o valor da inibição, do sintoma ou da angústia para a criança? Estes diversos distúrbios não seriam com efeito respostas e defesas face a este momento de crise, em que se vê abalada a identificação fálica que sustentava até então esta criança? Devemos considerar que esta identificação fálica – sempre disponível no tempo da infância e atualmente privilegiada no seio da família e no discurso corrente – permite realmente a uma criança se manter à distância das questões da identificação sexual? Não deveríamos considerar de preferência a crise do falo como o momento fundamental em que se sintomatiza a vida da criança, em que ela começa a aprender o regime sinthomático de sua inscrição no discurso sexual?[13].
Ao permitir que as provocações do autor possam ressoar em nós e dar início a um trabalho que tenha no horizonte produzir um saber de peso, o laboratório Mães e seus filhos sustenta a convicção de que o campo da diferença sexual, essa fissura discursiva, zona de fratura por excelência, é anterior ao sofrimento das crianças e atravessa também seus pais e mães.
O que pode um laboratório do CIEN frente às desordens com crianças e seus pais no contemporâneo? A qual saber poderá ele recorrer quando se deparar com essas zonas de fratura em seu fazer? No texto “A criança e o saber”, Miller[14] nos apresenta o vetor que guia nossa ação: restituir o lugar do saber da criança, disso que as crianças – e por que não seus pais? – sabem. Para Daniel Roy[15]], àqueles que se propõem a atuar a partir da psicanálise cabe se informar sobre o que as crianças, meninas ou meninos, sabem da diferença sexual, do que querem ou não saber a respeito da mesma, e do que podem ou não podem saber. Para nós, do laboratório Mães e seus filhos, seguramente o que podemos – e esperamos saber fazer- é não recuar diante daquilo que é caótico e disruptivo.

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Considerações Finais
Em momento de concluir, uma hipótese se insinua. A diferença sexual sempre foi uma zona de fratura, já que a relação sexual é excluída para o ser falante. O que o desafio particular das desordens contemporâneas põe em jogo é uma certa falência dos semblantes que até então tinham eficácia em recobrir e organizar um gozo e uma identificação em torno dessa zona. A deriva das identificações e as irrupções do gozo parecem testemunhar algo que é da ordem de uma fratura exposta. Esse significante nos faz pensar, uma vez que nosso laboratório tem se ocupado da irrupção dessas fraturas nas urgências subjetivas na clínica de crianças e adolescentes e seus pais. De fato, Lacan[16] põe em primeiro plano os “casos de urgência” no seu Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, e nos parece que a urgência com a qual estamos confrontados é aquela da invenção. Os sujeitos que buscam a clínica, e assim encontram as vias para as conversações que ocorrem nos serviços e que estimulam também as que ocorrem no laboratório, hoje em dia estão às voltas com a invenção de algo que dê conta de manusear os impactos destrutivos dessa fratura, talvez sem o recurso da tradição paterna, mas podendo a cada vez se servir dos efeitos das conversações.
Dessa forma, ao longo do trabalho do laboratório pôde-se coletar a partir das conversações alguns elementos para uma prática com Mães e seus filhos, os quais foram sendo discutidos até aqui. Em um momento inicial as conversações ocupavam-se de relatos trazidos por profissionais na escuta de crianças e adolescentes que chegavam aos serviços de urgências em saúde mental. Como fruto desses primeiros encontros, fomos identificando que também os pais e responsáveis apresentavam a demanda por um espaço de palavra para tratar justamente essa zona de fratura, cujos efeitos se observava nas crianças. Assim, desde o início de 2022 nosso laboratório tem sustentado um espaço de conversação para mães e pais das crianças e adolescentes atendidas nas instituições públicas de saúde mental de Belo Horizonte, sendo este um efeito de nossas próprias conversações.
[1] LACAN, J. (1998[1953]) “Função e Campo da Fala e da linguagem em Psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 321.
[2] ROY, D. (2019) “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 6. Disponível em: https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[3] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[4] LACAN, J. (1971) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 30.
[5] MILLER, J. A (1991) De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós Editora, 2002. p. 14.
[6] ROY, D. (2019) “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 10. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[7] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov., 2019, p. 6. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[8] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 10. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[9] MOTTA, J.; MARCOS, C. (2018). Mães em Crise. In: CIEN Digital, nº 22, nov., 2018, p.37. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/Cien-Digital-22.pdf
[10] BROUSSE, M.-H. (2019) “O buraco negro da diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019,p. 18. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[11] ROY, D. (2019) “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 7. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[12] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In:CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p.10. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[13] ROY, D. (2019). “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 11-12. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[14] MILLER, J.-A (2011). “A criança e o saber”. In: CIEN Digital, nº 11, jan., 2012, p. 8. Disponível em: https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital11.pdf
[15] ROY, D. (2019) “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”. Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant. In: CIEN Digital, nº 23, nov, 2019, p. 12. Disponível em https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[16] LACAN, J. (1976). “Prefácio à edição inglesa do seminário 11”. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, p. 567.
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Entre o vínculo e a educação: um impasse[1]
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios
Laboratório Ciranda de Conversa – CIEN-PR – Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Fernanda Baptista e Renata Silva de Paula Soares

Máquina De Escrever Vintage – Foto gratuita no Pixabay
O Laboratório Ciranda de Conversa CIEN Paraná[2] realizou, no ano de 2022, Conversações em uma instituição que atende 100 crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco social na Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná. A instituição atua em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social na realização do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. No primeiro encontro, estavam presentes 5 ‘professores’, o educador social – que ocupava o cargo de pedagogo – e o psicólogo da instituição. Enquanto todos se apresentavam para nós, as animadoras, foi possível perceber que, para os que se denominavam ‘professores’ e o quanto era importante para eles que as crianças “seguissem regras”. “É muito difícil criar vínculo, eles não seguem regras e o planejamento não dá certo”, disse a ‘professora’ de artes, explicitando o ambiente escolar da instituição e a vontade de disciplinar as crianças e adolescentes. “A sociedade é formada por regras”, emendou outra ‘professora’. O educador social, pontuou que as crianças atendidas pela instituição não têm segurança, “vivem à margem da regra”, “aqui é um espaço de acolhimento, vínculos e convivência”, o que nos indicou sua posição divergente do grupo.
Na segunda Conversação estavam presentes quatro ‘professores’, que iniciaram falando sobre a ‘muvuca’ que havia acontecido na semana anterior: descreveram cenas de violência entre as crianças e, em seguida, voltaram aos comentários de que os mesmos não aceitam a autoridade. Sobre um dos meninos, disseram: “como ele sabe que ninguém vai bater nele, ele extrapola.” Continuaram dizendo que estavam nos seus limites. A ‘professora’ de português comentou que foi vítima de violência na infância e mesmo assim “não desconta nos outros”. Os ‘professores’ falavam de crianças que eram “psicopatas, loucos”, que precisavam de medicações psiquiátricas, que fugiam da realidade e que ninguém os aguentava. “A gente é o último recurso que eles vão ter na vida deles”. Quando pontuamos que a instituição era um local de acolhimento, um dos ‘professores’ disse: “é uma sofrência”, outro completou: “eles têm que aprender”.
Em seguida, as falas continuaram girando em torno do sentimento de impotência que os afetava. Eles disseram que gostariam de ensinar e que as crianças não davam valor ao aprender. “A educação não é transformadora para essas crianças.” O educador social pontuou que as crianças não eram descoladas da realidade, mas que a realidade delas era outra. Surgiu um enorme impasse sobre a frequência das crianças nas ‘oficinas’. Percebíamos, a cada Conversação, que os ‘professores’ acreditavam que as crianças deveriam frequentar as oficinas seguindo o planejamento da educação formal. Já o educador social, era aberto à ideia de que as crianças pudessem escolher as oficinas e tivessem horários livres durante o período que estivessem na instituição. Para os ‘professores’, o fato de algumas crianças e adolescentes não gostarem e não quererem estar em suas ‘aulas’, era uma questão muito séria. O educador social argumentava que estava tudo certo se as crianças e adolescentes não quisessem fazer nada, às vezes, porque ali era um lugar seguro. A esta fala surgiu o que parecia ser uma abertura quando o psicólogo disse: o que transforma é o vínculo e, ali não era uma escola, completando que não havia uma resposta pronta sobre como fazer.
Porém, na Conversação seguinte, os ‘professores’ voltaram a se queixar sobre situações de violência entre as crianças e para com eles. Mostravam-se muito indignados com os xingamentos que recebiam e com as agressões sofridas. Em seguida começaram a apontar problemas na comunicação entre os educadores, reclamando que não havia uma diretriz clara que norteasse o trabalho na instituição: “a chefia não estava valorizando a disciplina”. Decidimos lançar questões aos educadores, sobre seu papel junto às crianças e adolescentes e sobre o espaço. Sendo assim, perguntamos se a instituição era um lugar de ensinar ou não, de ensinar o quê. Enfim a Conversação avançou sobre o ideal em jogo no lugar. O psicólogo nos contou que a idealizadora do local era uma defensora da educação e que acreditava no seu papel transformador. Dito isso, revelou que a instituição muitas vezes ia “contra o Estado”, pois, ligada à Assistência Social do Município, precisava ‘disfarçar’ as ações educativas que realizava. Contou que a intenção era ser um reforço escolar. “São ‘professores’ e são salas de aula. Existe plano de aula.”
Na quarta Conversação, fomos informadas que o educador social não fazia mais parte da equipe: “Ele tirou a autoridade da gente com as crianças. As crianças podiam escolher as oficinas.” Para o Laboratório ficou claro que o significante educação ao entrar em choque com o significante acolhimento gerou uma crise na instituição, mas que o saber detido pela instituição não pôde ser questionado. Em Conversação entre o CIEN Brasil[3], foi localizado por Nohemí Brown os ditos com valor orientador para a instituição. A partir do S1 seguir regras, os S2 se articulavam como verdade, adquirindo valor de mestria. Se ‘os alunos’ seguissem as regras, o planejamento daria certo. Ou ainda, se eles seguissem as regras, os vínculos seriam criados e a educação seria possível. O dito do educador social: “eles vivem à margem da regra”, não pôde introduzir um furo, que possibilitaria uma reverberação para separar S1 e S2.
As conversações na instituição inquietaram as participantes do Laboratório, uma vez que deixaram a questão se algo da contingência havia escapado às animadoras ou se a instituição estava fechada ao acolhimento, tanto de um novo saber fazer, quanto do Laboratório. Entretanto, é preciso relançar a aposta no discurso psicanalítico, que não tem uma verdade universal e, talvez, possa ser capaz de abrir brecha, uma passagem de ar, no discurso do mestre ao qual somos confrontados quando nos aventuramos a estar entre outras disciplinas, a frequentar outros lugares a tentar ser outro entre vários. As pontuações das animadoras e a oferta da palavra, assim como a posição divergente do educador social, apesar de apontarem para a produção de um equívoco frente ao S1 em jogo da instituição, não perturbaram a defesa na instituição, tampouco abriram uma brecha para Conversações sobre o próprio mal-estar do qual se queixavam. Não foi possível aos educadores sociais, que trabalhavam em uma instituição social, se perguntarem sobre serem ‘professores’, para talvez se implicarem em algo da crise que enfrentavam e se questionarem sobre o lugar de mestria que a ‘educação’, aos moldes da instituição, ocupava, obturando possíveis furos no ‘saber fazer’ frente ao real exposto pela prática junto às crianças e adolescentes.
[1] Trabalho apresentado por Bárbara Snizek Ferraz de Campos no VII Encontro dos Núcleos da NRC e VIII Conversação do CIEN – Brasil: A família em questão! A criança – seus pais. A criança – além dos pais. Realizado em 27/11/2022.
[2] Seus participantes são: Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Eugênia C. de Souza Pelogia, Fernanda Baptista, Idavir Trebien, Karina Veiga, Niura Kiame, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Willie Anne Provin.
[3] Conversação CIEN-Brasil, Pais exasperados – Crianças terríveis, que ocorreu em 01/10/2022 via zoom e foi animada por Nohemí Brown (EBP/AMP) Coordenadora da Nova Rede CEREDA – Brasil.
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A localização do que não se vê[1]
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios
Laboratório Encontro de Saberes – CIEN-SC – Gustavo Ramos da Silva e Patrícia Laura Torriglia

Foto de Ekaterina Astakhova: https://www.pexels.com/pt-br/foto/escadas-pretas-e- marrons-ao-lado-da-janela-3150918/
No retorno à modalidade presencial das conversações, em abril de 2022, uma novidade surge no Laboratório Encontro de Saberes cuja interface é a educação: a demanda era de conversação na turma de segundo ano com crianças de 7 a 8 anos. A Escola localiza uma “sexualidade exacerbada” por parte desses alunos. “Ficam se beijando e se tocando durante as aulas e no intervalo”. Aceitamos a demanda, porém com um certo receio, pois nunca havíamos feito conversações com crianças dessa idade, apesar de já estarmos nessa mesma escola há quatro anos. A Escola está localizada em um bairro pobre de Florianópolis e recebe muitos alunos da favela e da chamada ‘favela da favela’, uma região com altos índices de violência e precariedade. “Lá nem a polícia entra, só com autorização dos traficantes”.
Quando entramos na turma, todos estavam sentados, então pedimos para fazerem uma roda no fundo da sala, onde havia um espaço grande e aberto para brincadeiras. Lá todos nos sentamos no chão e a primeira coisa que escutamos foi a pergunta “quem são vocês?” Somos psicanalistas do CIEN. Explicamos a sigla e o interdisciplinar. “O que é interdisciplinar?”, a aluna mal conseguiu pronunciar a palavra inteira. Estávamos acostumados nas conversações com adolescentes a fazer dessa forma o primeiro contato e a apresentação do dispositivo. Percebemos que com as crianças teria de ser diferente. Algo novo se instaurou no Laboratório e o próprio não-saber se colocou nos animadores da conversação. O que fazer? Nesse momento uma outra aluna responde que “é tipo psicólogo, trabalha a cabeça, olha só o machucado que eu tenho”. Com isso, algo aconteceu aí, uma ligação entre a cabeça, o ‘racional’, e o corpo, com o que muitas vezes escapa de uma relação puramente racional. Os alunos sabiam de algo e isso nos causou surpresa ao não termos mais a apresentação usual da conversação. Essa surpresa possibilitou que algo ressoasse em nós para não cairmos na vertente do educar esse elemento de exasperação ligado à sexualidade. Como não cair na posição palestrante? O caminho pode ser percorrer a surpresa com o que surge e dar vazão a isso durante a conversação.
Uma agitação se instaura, pois cada aluno quis não só falar de seus machucados, galos, arranhões, acidentes, quedas e cortes, mas também mostrar aos integrantes do laboratório, ‘os psicólogos’, as marcas no corpo. Um agito corporal se manifesta, ecoando talvez essa “sexualidade exacerbada” e a necessidade de mostrar ao Outro o corpo. Se com os adolescentes a circulação da palavra se dá de uma outra maneira, muitas vezes permeada de silêncio e com uma atividade maior dos animadores para extrair algo do que se diz, com as crianças nos deparamos com o oposto: todos com as mãos levantadas, sedentos por falar, aguardando ansiosamente sua vez. Como escolher quem fala e em qual momento? Seguir a ordem da roda? Um impasse surgiu dentro do Laboratório. Em um outro momento, decidimos seguir a ordem de colocação da roda, assim não é preciso ficar cansado com a mão levantada e todos sabem que terão a oportunidade de ter sua fala escutada.
Cada um tinha uma história de acidente com marcas no corpo durante a pandemia, mas parece que a localização era ainda uma questão. Foi preciso um giro em torno desse significante. Uma das integrantes do Laboratório nasceu na Argentina e apresenta um sotaque diferente dos alunos. Começam a perguntar do idioma e do país. “Onde fica a Argentina no mapa?” Na segunda conversação, levamos um mapa da América do Sul e um Globo Terrestre, e essa integrante aponta no mapa o local de seu nascimento e conta um pouco a história do idioma espanhol. Todos atentos ao mapa.

Livro Volume Ridge – Foto gratuita no Pixabay
A Escola está em uma região conhecida pela heterogeneidade de pessoas, seja de localidades e de sotaques. É o destino de veraneio dos argentinos e uruguaios. Com isso, apresentam muitos alunos de outras regiões do país, os quais pedem para que localizemos no mapa os respectivos estados de nascimento.
Quando chegamos para a próxima conversação, a coordenadora nos chama para falar se podíamos conversar sobre o bullying com essa turma, pois um aluno veio conversar com ela que estaria sofrendo bullying naquela sala. No dia, esse aluno não estava presente, mas decidimos introduzir o tema mesmo assim, uma aposta na localização do tema.
“O que é bullying? Vocês sabem o que é isso?” A resposta de alguns: “bullying é quando alguém fala alguma coisa e machuca a outra.” “Alguém já viu ou sofreu isso?” A resposta afirmativa vem agora com casos de violência fora da Escola. Um aluno toma a palavra e diz que teve de sair da última escola por conta do bullying, não aguentava mais, por isso veio para esta escola e aqui não sofre mais. Percebemos um menino negro sempre com a cabeça baixa, não respondia e parecia estar triste com algo. Um outro menino diz que o racismo também pode ser bullying. Concordamos com a afirmação e perguntamos se ele já sofreu ou presenciou racismo. Nesse momento, esse menino negro levanta a mão e conta das vezes em que sofreu, e até hoje sofre, racismo na vida. Um relato contundente e que tocou alguns colegas. A conversação termina com a intervenção de um integrante do Laboratório dizendo que nem todo machucado é visível no corpo, como nos tombos, quedas e empurrões. Muitas vezes uma palavra, um gesto ou um olhar podem deixar marcas no corpo, as quais, apesar de não serem visíveis no corpo, podem, ainda assim, causar muita dor. Com isso conseguimos cernir o impasse da sexualidade exacerbada, nomeá-lo com as tentativas de localização, mantendo, no entanto, o furo como motor da conversação.
[1] Escreveram a vinheta prática: Gustavo Ramos da Silva (responsável pelo Laboratório Encontro de Saberes) e Patrícia Laura Torrigilia. Integrantes do Laboratório Encontro de Saberes: Adriana Farias Pereira, Marina Azevedo, Julian Silvestrin, Valesca Lopes, Maria Luiza, Fernanda Martinhago, Ana Maria Alves de Souza, Soledad Torres, Patrícia Torriglia e Gustavo Ramos da Silva.
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Entre o questionamento agressivo e a apatia depressiva, conversação como campo de mediação subjetiva
by cien_digital in Cien Digital #25, LABOR|a|tórios
Laboratório Digaí-Escola – CIEN-Rio – Bernadete Mara (coordenadora pedagógica e professora), Mirta Fernandes (psicanalista) e Pedro Araújo Marinho (coordenador pedagógico e professor)

Deep beneath the antílope canyon.
Photo by Ana Knezevic from Burst
Este recorte textual tem por objetivo apresentar a experiência da prática de conversação com jovens, ocorridas ao longo do segundo semestre do ano letivo de dois mil e vinte e dois com uma turma do ensino médio da Escola Alfa, em Macaé-RJ, composto por adolescentes entre 14 e 18 anos, três meninas e seis meninos.
Há a percepção, por parte dos professores, de uma resistência latente com as atividades escolares, tais como: atrasos frequentes, tanto na primeira aula como no retorno do recreio, não cumprimento de prazos na realização de atividades, e se recusar a permanecer em sala de aula, entre outros.
Na primeira conversação, poucas falas dos alunos foram recolhidas. A conversação se inicia com A., estudante mais velho do grupo, fazendo uma reivindicação; “Queremos aulas fora de sala de aula”, alguns colegas ratificam, e ressalta o fato de que todos se mantêm calados, que foram silenciados pela falta de respostas às suas demandas, mas eles continuam calados.
Depois dessa primeira fala A. continua e, num tom de crítica, acusa a escola de estúpida por não possuir um Grêmio como espaço de reivindicações e luta. Pedro, professor e membro da coordenação, interfere afirmando que a construção desse espaço pertence aos alunos e são eles que devem construí-lo. A. rebate, afirmando que a leitura de Marx seria indispensável para que tal espaço de discussão pudesse existir. Pedro continua e pergunta: “quem surge primeiro a teoria ou a ação?” Nesse momento, cessa o debate. A. parece ter sido atravessado por sua contradição e desvia o olhar.
Este primeiro encontro deixa algumas reflexões a serem feitas e nos convoca a um lugar de escuta. Existem resíduos de comunicação que não estão sendo escutados? Que falas estão deixando de ser ouvidas? Esses questionamentos nos convocam a pensar: o que fazer com isso?
Diante dos questionamentos, a equipe pedagógica se propõe a acolher a reivindicação dos estudantes de que todos os professores deveriam se envolver com a 17ª Feira de Ciências. Para isso foi proposto aos professores que buscassem se inserir nos projetos dos estudantes através dos conteúdos de suas matérias, aprofundando e orientando, sem, contudo, restringir a autonomia dos estudantes.
A segunda conversação se inicia a partir de demandas relativas ao trabalho pedagógico: definir tempos para construção dos projetos da Feira de Ciências nas aulas dos demais professores, com a inserção de seus objetivos naqueles projetos. Novamente poucos alunos se pronunciaram nessa conversação. Pontuações breves criticando as estratégias pedagógicas da maioria dos professores, exemplificadas no conteúdo no quadro da sala aula, e reclamações quanto às normas de convivência propostas pela instituição, como a impossibilidade de jogar futebol sem camisa na quadra. Manifestaram ainda insatisfação com o próprio processo da conversação, alegando que a escola oferece espaço de fala, mas não escutam.
E, nesse momento, o encontro é dominado por A., insatisfeito, insistindo que nada se fazia, nada mudava, enquanto os demais alunos se mantinham passivos, alguns no celular e outros apenas observando. Esse encontro se encerra com um impasse diante da atitude agressiva e desafiadora de A. para com os coordenadores, afirmando que os professores não mudavam, não trabalhavam com seus projetos, debochando quando a analista (Mirta) aponta as dificuldades e equívocos na comunicação, e a importância de confiar e acreditar nas possibilidades de mudança de ambas as partes (alunos e professores/escola). A. diz “se não consegue entender, então melhor mandar alguém que consiga”. Pedro já havia saído em função de seu horário de aula e Mirta encerra a reunião, apontando para o fato de que estava apenas “discutindo” com A. e os outros todos nos celulares.
Esse ponto de exasperação que resta deste encontro, para Mirta e Pedro, deixa dúvidas e questões sobre o manejo com os adolescentes, suas posições na relação com eles e uma grande incógnita sobre a função da conversação, esse espaço de escuta que é oferecido. Recolher os resíduos, suportar e acolher os equívocos, incluindo-se no impasse parece necessário.
Ocorrido o conselho de classe, diante da avaliação dos resultados da turma, há um consenso dos professores, coordenação e direção. Medidas disciplinares foram tomadas: aumento da censura ao uso do celular, terceiro atraso do mês como alerta para as famílias e suspensão no quarto atraso.
Num terceiro encontro, somente com Pedro, após a notificação à turma das medidas disciplinares que passariam a valer, aparecem diversas falas com relação às novas regras. A tônica era a dificuldade para chegar no horário. A pontualidade tornara-se difícil para a maioria desses jovens. Isso levou a direção, junto com a coordenação, a promover uma conversa sobre o assunto com a turma e, a partir principalmente das colocações de L. e de A., aceitas pelos outros alunos. A coordenação articulou com os professores envolvidos mudanças no horário para que eles pudessem chegar um pouco mais tarde à escola, o que alterou a rotina de professores e famílias, mas a reivindicação dos alunos foi atendida.
Ao longo da semana mudanças de postura foram percebidas, tais como: A. saiu de sua postura inabalável e superior, mostrando-se vulnerável para a turma, expondo suas dificuldades e se emocionando. Alguns alunos foram pontuais com o horário escolar comemorando explicitamente sua chegada no horário, se comprometeram diante da turma em apresentar o trabalho proposto para a escola e começaram a nomear incômodos com um professor.
Tendo em vista nossa experiência recente com a turma e o trabalho no laboratório, do que fica e não é necessariamente muito claro, fertilizam-se as ações. Ao suportar e acolher uma impossibilidade, produziu-se uma tomada de posição modificando a rotina pedagógica. A partir do impasse inicial colocado pelos professores, a falta de desejo e comprometimento dos alunos, e o não saber o que fazer com isso por parte dos professores, pode se localizar na conversação um impasse dos alunos diante do não-saber dos professores. Diante do que exaspera, ao fazer vacilar o lugar de cada profissional, abriu-se um espaço para construção de respostas singulares, dando lugar a algo novo e contingencial.
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Da maconha ao “campão”: as palavras como invenção
by cien_digital in Cien Digital #23, LABOR|a|tórios

Autor: Philipp Trubchenko- Imagem:
https://unsplash.com
Bárbara Snizek Ferraz de Campos[1]
Renata Silva de Paula Soares[2]
O Laboratório Ciranda de Conversa[3] foi solicitado para realizar conversações com a turma de 5° ano de uma Escola Municipal de Curitiba. Em um primeiro momento, as professoras da turma foram escutadas, trazendo inúmeras queixas, que variavam de dificuldades de aprendizagens à negligência, drogadição nas famílias e violência sofrida pelos alunos no ambiente social e familiar. O relato retratava a experiência da infância dentro de uma favela organizada, grande parte, em torno do tráfico de drogas e da violência. Relatavam a grande dificuldade em lidar com a agitação e a agressividade dos alunos, bem como o que suscitou a procura pelo Laboratório: um acontecimento insuportável para as professoras. Três alunas, Kika, Ana e Maria haviam sido flagradas fumando maconha no banheiro, durante o contraturno. Ou seja, mesmo em uma comunidade centrada no tráfico, a escola se propõe a ser um lugar de proteção, um refúgio. O ideal é que as drogas não contaminem a escola e a primeira infância, mas foi necessário um evento que furasse a barreira do ideal da escola.
Já nas apresentações, as meninas demonstram desconfiar do motivo pelo qual o Laboratório foi chamado, pois contam que aprontaram demais e não podem mais frequentar o contraturno. Contudo a conversação inicia com as crianças falando sobre o uso do celular. Um dos meninos toma a palavra: “eu não sei a hora de sair do celular, mas minha vó fica a noite toda namorando no celular. Fica de conversinha: oi querido”. Quando pontuamos sobre a dificuldade da criança em se regular sem um adulto que se responsabilize por lhe impor um limite, uma aluna diz que às vezes é a própria criança que tem que dizer: chega! Nesse momento, as crianças consentem com a oferta da palavra e não mais se colocam, apenas, a partir da agitação de seus corpos. As crianças que resolviam seus impasses com chutes, empurrões e socos, ousam falar sobre seu desamparo diante da inconsistência do Outro. Miquel Bassols[4] aponta que, da perspectiva lacaniana, devemos nos aproximar e escutar as crianças como sujeitos que podem se fazer responsáveis por suas experiências de gozo, e não apenas como objeto de gozo do Outro. Nesta ideia está o centro do que é uma invenção para a criança, tornando a elaboração de um saber inédito possível. Também está o cerne do CIEN, que ao oferecer o dispositivo da palavra às crianças, aposta em seu consentimento com o dizer.

Autor: José Fernando Carli
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Em uma conversação depois, um dos alunos diz: “eu sei o esconderijo de vários maconheiros”, e o resto da turma nos conta que “moiô”, “XL” e “cerveja” são gírias que funcionam como senhas, usadas também pelas crianças, para anunciar a chegada de policiais. Não mais no lugar passivo de vítimas do tráfico, mas como participantes da dinâmica da comunidade, as crianças seguem falando sobre seus encontros com a violência. Escutamos uma criança contar que a mãe limpou sangue de tiro na parede de sua casa, outra relatar que a polícia em uma operação, disse para ele: “sai da rua filho da puta”, e que ele, sabendo que não se provoca policiais, não respondeu. Todos têm uma história que envolve violência, armas, sangue, briga ou morte para contar. Demonstram conhecer e seguir os códigos do local e como se comportar para evitar conflitos e perigos, quando os embates acontecem. Já se mostram capazes de falar a partir de seus lugares de sujeitos em meio a uma estrutura social tão organizada em torno do tráfico. Logo em seguida, nos contam que na escola existem maconheiros de 12 anos. Ana parece bastante nervosa, fazendo sinal de silêncio para os colegas. Quando diz: “moiô” aos colegas, perguntamos: “moiô, Ana?” Kika chega bem nesse momento, escuta e faz cara de susto. Todos riem. Pontuamos que já entendemos que três meninas da sala fumaram maconha no banheiro, mas que ninguém vai nos contar quem foi, porque não se cagueta ninguém. Assim é que são as coisas na Vila. Kika diz: “fui eu, a Ana e a Maria. Eu acendi e já apaguei porque a tia chegou. Deixei no bolso e me levaram para a diretoria”. “Depende do lugar que você vai fumar, não dá nada. Aqui na escola deu”. No término dessa conversação, Kika se dirige a uma das participantes, pede para conversar separadamente e conta sobre impasses de sua existência.
É possível perceber um desajuste das identificações que deram lastro aos sujeitos[5]. Dar a palavra a garotos de uma Vila, “vítimas” do tráfico, para que pudessem falar de sua relação com o tráfico, sem pretensão educativa, foi a verdadeira aposta no dom da palavra e no alcance do dispositivo das conversações. A partir desse momento, as crianças, em uma clara mudança de posição, passam a dizer que estão “mais favoráveis” e a nos contar que o campeonato de futebol da escola vinha tomando uma importância central para a turma. A escola é localizada ao lado de um campo de futebol muito importante na comunidade, o “campão”, e eles discorrem sobre a importância de conseguirem jogar uma partida por lá. Enfim, eles estão falando da descoberta de possibilidades para a agitação de seus corpos. Há algo a ser feito com esses corpos que se chocavam indiscriminadamente com a violência.
Em uma das nossas últimas conversações, um dos meninos conta como controlou sua vontade de bater no irmão mais novo, trancando o menino no armário. Outro diz que está com mais paciência: “antes se tinha um empurro eu já brigava, agora eu converso, peço desculpa”. Quando um menino dos mais briguentos da turma diz que: “faz uns dois mês que não brigo”, outro colega retruca: “ele briga falando”. O menino traz, então, um saber inédito: “às veiz xingamento dói mais que tapa na cara”. As crianças mudaram sua relação com a palavra e entenderam que falar faz diferença, pois, ao mesmo tempo que pode doer mais do que um tapa na cara, a palavra pode lhes trazer um novo sentido à vida. “Um ganho de saber que abre para propostas inéditas, trazendo um a-mais de vida ali onde reinava a pulsão de morte.”[6] Assim, temos a invenção dessa turma, feita de palavras que valem muito, que às vezes doem, mas que valem a pena. Quem sabe, a invenção de maneiras de viver a vida, que como as partidas de futebol no campão, valham a pena serem vividas.